quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Poeminha de fim de ano

O funil da ampulheta
apressa, retardando-a,
a queda
da areia.

Nisso imita o jogo
manhoso
de certos momentos
que se vão embora
quando mais queríamos
que ficassem.


José Paulo Paes, em Elogio da Memória

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Egocentrismo do dia


"De uma vez por todas, tento resumir mais uma vez: Dom Casmurro não se martiriza por ter dúvidas a respeito de ter sido traído por Capitu ou não. Mas, em seu egocentrismo romântico, por saber que não se conhece e, logo, não foi capaz de conhecer Capitu. O livro é muito mais que uma charada".


Daniel Piza, em sua coluna Sinopse, no Estado de São Paulo do último domingo

Humano: demasiado efêmero


O blog abre espaço para uma colaboração do historiador Américo de Souza, que segue abaixo. Acima, cena de Vicky, Cristina, Barcelona, de Woody Allen.

Lembrando meu amigo Geraldo, que dizia serem livros e filmes são as melhores companhias em tempos de frustração e desalento, dei-me dois presentes neste último fim de semana. Primeiro A viagem do elefante, novo romance de José Saramago, depois Vicky, Cristina, Barcelona, novo filme de Woody Allen.
Para além de serem novidades, essas duas obras têm em comum o elogio ao que de mais humano há na vida: a condição do efêmero. Tendo como cenário uma Barcelona artística, boêmia, entregue aos prazeres da vida, imersa no colorido de Gaudi e no som vigoroso das guitarras, o filme de Allen conta uma história em que amor e desejo se confundem, se completam, se digladiam; casais se seduzem, sofrem, traem, enganam, separam, tentam de novo, num exercício intenso de exploração do dilema "não se pode estar junto, mas também não se pode ficar sem alguém", idéia que é apresentada não como uma condenação para ser lamentada, mas como condição própria das relações afetivas, porque humanas e, como tais, circunscritas ao caráter provisório e fugaz do ser e do fazer de homens e mulheres.
Saramago, por sua vez, narra, a seu modo, a história real de uma insólita viagem do elefante Salomão, que cruzou metade da Europa por extravagâncias de um rei e de um arquiduque, no século XVI. Irônico e sarcástico, como não poderia deixar de ser, o livro é em tudo e por tudo um exercício de compaixão e solidariedade pela fragilidade humana que a saga do elefante parafraseia. Assim como em Intermitências da morte e As pequenas memórias, a morte é reafirmada como destino único, comum e inevitável de todos os homens e que se reproduz em tudo que ele cria e experimenta. Ao virar a última página do livro temos duas opções: lamentar pela morte trágica de Salomão, ocorrida pouco depois de concluída a viagem, ou regozijar com a bela aventura da jornada. Ou seja, na vida podemos sentar e lamentar a certeza do seu fim ou aprendermos que o melhor modo de viver é conscientizar-se da provisoriedade humana, explorando ao máximo os momentos de alegria e beleza e tendo a certeza que, também para aqueles nem tão alegres, nem tão belos, o fim há de chegar.
Assim, torna-se impresindível a compreensão de que a mudança das coisas e dos sentimentos é, senão a única, a maior das verdades humanas. Por ironia, dois instrumentos de registro e preservação da criação humana, a escrita e o filme, são tomados por esses dois gênios do mundo contemporâneo como suportes para afirmação do efêmero como aquilo que de mais humano e belo há em todos nós.
Quanto a mim, sigo em frustração e desalento, mas agora acopanhado da certeza de que, como tudo na vida, isso um dia vai mudar.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Cristina Buarque


Manezinho da Flauta, um dos colossos do sopro brasileiro, foi convidado para tocar num show que, salvo engano, no início dos anos 70, fazia muito sucesso pelo País: Originais do Samba, Márcia e Baden Powell. Terminada a apresentação, do alto de sua simplicidade e ingenuidade em relação à fama internacional de Baden, disparou o convite: "Gostei muito do seu violão e estou precisando de um violonista para o meu regional. Você não quer tocar com a gente?".
Entre risos intermináveis e uma simpatia inabalável, essa foi uma das dezenas de histórias deliciosas que Cristina Buarque compartilhou com a gente no último fim de semana, durante sua passagem por Fortaleza. Aos 58 anos, Cristina é uma de nossas grandes cantoras e uma das principais pesquisadoras e divulgadoras de uma tradição de sambistas que, não fosse por ela, se enterraria no ostracismo. Seu repertório (praticamente infinito) é fruto de suas pesquisas e andanças (recentemente, gravou um trabalho lindo com o grupo Terreiro Grande, em São Paulo, uma turma especializada em sambas antigos das escolas do Rio de Janeiro). Já suas histórias são fruto da convivência com quase todo o olimpo do samba brasileiro: de Clara Nunes a Roberto Ribeiro, de João Nogueira e Nelson Cavaquinho, de Cartola a Clementina de Jesus.
Sempre agarrada ao cigarro e a um copo de cerveja, Cristina é uma senhora franzina, de passos rápidos e olhar melancólico. Seu bom humor e sua cordialidade, no entanto, são do tamanho de seu valor para a história do samba. Não reconheceu Fortaleza, que lhe pareceu "muito nova", quase vinte anos depois de sua última visita. Brahmeira fiel, se decepcionou com a Brahma da Cidade: "tem gosto de Skol!". Rendeu-se, então, temporariamente, à Antartica, servida com o devido mofo na roda de samba do Bar do Arlindo.
A roda de samba foi sua última escala musical na Cidade, num roteiro que começou na sexta com um show inesquecível no Anexo do Docentes e Decentes. Cristina saiu deixando uma penca de elogios aos músicos que lhe acompanharam - exceto, óbvio, pela minha performance na clarineta, mas isso é uma outra história... No domingo à tarde, um almoço maravilho do Onofre. Toinho e Juliana apareceram, Déborah e Fernando também. Minha mãe foi lá e se encantou com a conversa. Thales, Alfredo e Américo (que, mais uma vez, arrebentou nas fotos) completaram o time. No cardápio, histórias como aquela em que Chico Buarque achou um absurdo a crônica de Mário Prata segundo a qual Sérgio Buarque de Hollanda fazia uso terapêutico de maconha e que Dona Amélia, matriarca do clã, bebia uísque. "Minha mãe só bebe cachaça!", teria dito um Chico inconformado. E tome risos.
Em seguida, eu e minha esposa fomos deixá-la no aeroporto. Como o vôo atrasou, deu tempo para mais umas duas cervejinhas e mais um punhado de causos antes do embarque. Ora hilários, ora dramáticos, mas narrados sempre com leveza e com entusiasmo. Do lado de cá, ficou o desejo de um retorno em breve a Fortaleza. Do lado dela, o convite para conhecer Paquetá, onde Cristina foi se refugiar longe dos carros e da ebulição do Rio de Janeiro.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

A justiça segundo o futebol colombiano

Esse lance é simplesmente absurdo. Vejam esse pênalti que foi marcado num jogo do campeonato colombiano. O melhor de tudo é o malandro depois reclamando com o bandeirinha.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Para ouvir com capacete

Uma paulada inclemente na moleira. Foi assim que me soou pela primeira vez - e ainda continua a soar - a obra do austríaco Arnold Schoenberg (1874-1951). Inventor do dodecafonismo, ele estilhaçou a secular estrutura tonal da música ocidental, criando uma arquitetura musical completamente diferente - para uns, absolutamente abstrata e intangível; para outros rigorosa e cristalina. Para Júlio Medaglia, por exemplo, ela é as duas coisas ao mesmo tempo: "Schoenberg provocou um envenenamento na engrenagem das formas, levando-as ao superlativo da expressividade, ao conflito, a uma neurótica e impulsiva subjetividade onde o indivíduo situava-ase como centro absoluto, intérprete e juiz do universo", define o maestro em seu livro Música Impopular. Para mim, ela é permanentemente provocadora e jamais soa gratuita. Cerebral sem perder seu lastro de lirismo. Aliás, foi o próprio Schoenberg quem declarou certa vez que: "Aquele que não possuir o romantismo em seu coração é um ser humano decrépito".

Abaixo, duas interpretações marcantes da obra de Schoenberg. A primeira, "Fantasia", com dois gigantes: Glen Gould, um de meus pianistas peferidos, e o violinista Yehudi Menuhin. A segunda, o "Concerto para Piano", com a pianista Mitsuko Ushida e a Filarmônica de Rotterdam.

Uma dica: melhor ouvir com capacete. 




sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Calvin & Haroldo


As tiras de Calvin & Haroldo fizeram a cabeça de milhões de leitores em todo o mundo entre os anos 80 e 90. Em 1996, quando o cartunista Bill Waterson decidiu aposentar seus personagens mais famosos, eram impressionantes 2400 jornais em todo o mundo que reproduziam as historias deliciosas do pequeno garoto de cabelos espetados e seu amigo imaginário. Em inglês, a série se chama Calvin & Hobbes, em alusão ao teólogo protestante francês Jean Calvin e ao filósofo inglês Thomas Hobbes. No Brasil, a editora Conrad, que vem publicando coletâneas da dupla, lançou um volume com as primeiras tirinhas de Calvin & Haroldo, editadas originalmente em 1985.
Os quadrinhos de Waterson se inspiraram no trabalho de Charles Schulz, o autor do Snoopy. A mesma combinação entre humor e suave melancolia das tirinhas de Schulz é uma das marcas das histórias do garoto de imaginação grandiosa que arruma em seu tigre de pelúcia o amigo imaginário ideal para suas presepadas. "No começo da série, eu não era contra o merchandising, mas cada produto que pensei em criar parecia violar o espírito da tirinha, contradizendo a sua mensagem, e me afastando do trabalho que eu amava", diz Waterson em uma raríssima entrevista concedida a seus fãs e divulgada na internet, onde explica uma das características mais famosa a respeito de Calvin & Haroldo. Em mais de vinte anos, a dupla nunca gerou nenhum tipo de merchandising oficial.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Coltrane Supremo

No encarte do monumental A Love Supreme (1964), John Coltrane explica a motivação espiritual que cercou a gravação do disco. O saxofonista, que, no fim da década anterior, lançara o álbum Giant Steps, onde se afirmara como band-leader, solista e criador original; e passara a desbravar novos horizontes para o jazz, encerrava a primeira fase de sua revolução musical e voltava sua técnica para a exaltação de temáticas místicas. Sempre munido da impressionante extensão sonora de seu saxofone, que lhe permitia a mesma intensidade de som num arco que ia da nota mais grave que se pode obter no instrumento até aquela região agudíssima, umas três oitavas acima. "Durante o ano de 1957, experimentei, pela graça de Deus, um despertar espiritual que me levaria a uma vida mais rica, mais plena, mais produtiva. Naquele momento de gratidão, eu humildemente pedi que me fossem dados os meios e o privilégio de fazer os outros felizes por meio da música", ele escreveu. Os bastidores de gravação do disco - assim como a repercussão que o LP teve na carreira de Coltrane, que passou à condição de santo na Igreja Africana Ortodoxa de São John Coltrane em São Francisco, na Califórnia - são contados pelo escritor Ashley Kahn no livro A Love Supreme - A criação do álbum clássico de John Coltrane, que a editora Barracuda colocou nas livrarias.

Abaixo, o santo, digo, o homem em dois momentos antológicos. O primeiro é um vídeo raro de seu quarteto executando "Afro Blue", que não está no LP A Love Supreme mas é um dos melhores cartões de visita de Coltrane. Em seguida, vem uma releitura da primeira das quatro partes de "A love supreme", com o quarteto de Branford Marsalis.







segunda-feira, 24 de novembro de 2008

A forma e o ensaio


Um dos ensaístas mais interessantes em atividade no País chama-se Francisco Bosco (foto acima). Filho do músico João Bosco, Francisco é editor da revista Cultura Brasileira Contemporânea, da Biblioteca Nacional, colunista da revista Cult, parceiro de composição do pai e doutorando em Teoria Literária. Em que pese a pouca precisão que o termo oferece ao tentar classificar um gênero específico de escritor em nossos dias, Bosco é um ótimo ensaísta na medida em que exerce como poucos aquilo que Adorno define como "forma" do ensaio. Ou seja, aquele tipo de escrita onde mais interessa interpretar do que "aceitar e classificar"; onde mais importante é entregar-se a "finuras", "implicando" onde aparentemente não há nada a explicar. "Ao ensaio, felicidade e jogo são essenciais. Ele não começa com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que se deseja falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer: ocupa, desse modo, um lugar entre despropósitos", diz a epígrafe (de Adorno) do livro que Bosco lançou no ano passado pela editora Objetiva, sintomaticamente chamado de Banalogias.
O drama dos "playboys" diante da passagem do tempo, o jogo de "dupla nudez" que se opera numa tatuagem, o afeto indireto que se esconde por trás do carioquíssimo "me liga", o golaço e sua antologia, a ética da gafieira, as tensões do convívio humano sublimadas a partir do uso de apelidos e diminutivos. Em seus escritos, Bosco ilumina supostas banalidades para os quais grandes filósofos jamais desviariam o olhar. Seu segredo, no entanto, é a originalidade com que dá uma dimensão inesperada a essas questões. A exemplo da definição de Adorno, o olhar arguto do ensaísta dá contornos surpreendentes a cada tema. Bosco encontra na "forma" a sutileza e o vigor para cada provocação. Cito dois exemplos. O primeiro é a análise sobre o chiste tipicamente carioca do "me liga" utilizado quando do encontro de dois amigos que há muito não se viam: "O afeto é verdadeiro, é uma positividade, mas há em sua formação uma perda, uma impossibilidade: a da intimidade perdida. Isto é, telefonar seria um erro, seria apostar na improvável recuperação do estado antigo da amizade".
O outro exemplo é o texto que fala do temperamento de certos compositores em sua relação com a alegria e com a tristezas, entendidas aqui a partir dos conceitos de Espinoza, segundo os quais, alegria maior não pode haver numa obra de arte do que a realização de sua potência. Tristeza, por outro lado, é a impossibilidade de criação e está ligada não ao andamento musical, mas a tudo aquilo que impede que as pessoas desenvolvam e realizem suas potências. Assim, uma música de Jorge Ben é tão alegre quanto uma música de Milton Nascimento, se compreendidas na plena realização da suas possibilidades.
"É fundamental saber que uma canção triste, ou a tristeza de que se origina uma canção triste, pode ser ao mesmo tempo e sobretudo algo alegre e afirmativo. E que, da mesma forma, uma canção alegre pode ser ao mesmo tempo algo triste: há sempre certa tristeza nas criações fracas, a tristeza de uma alegria forçada, sem base, como um cheque sem fundos", escreve Bosco, antecipando um arremate que me pareceu brilhante: "É precisamente essa espécie de alegria fake que a cultura de alta performance e do Prozac estimula: uma alegria sem espessura, evasiva, em fuga. Nossa cultura, esta do mercado financeiro, do Viagra, das celebridades e das academias recalca sistematicamente a tristeza - mas nem por isso é mais alegre".
Em seguida, Bosco cita Milton Nascimento. "Basta ouvir uma canção como 'San Vicente' para entender tudo o que está em jogo: a melodia que começa triste e a letra que se alude, fragmentariamente, como num 'sonho estranho', a um drama histórico da América Latina de repente irrompem em uma alegria irresistível (na primeira parte sem letra), que cede novamente a vez à tristeza, mas já aqui se trata nitidamente de uma terceira margem do afeto, alegretriste, tristealegre, que explode em sua irredutibilidade no vocalise final". E fecha: "Milton é o homem triste, por excelência. Mas não é fácil sustentar a tristeza na cultura contemporânea. É assim que Milton vem tentando, desde há algum tempo, flertar com a estética da alegria: usa roupas mais modernas, canta canções pop, procura movimentar-se mais no palco. Mas, ao fazê-lo, trai seu genius, que neste instante o abandona: sendo triste, Milton é o mais alegre dos homens - sendo alegre, é um homem triste".

Deu no Blog do Noblat

Blog do Noblat - Ricardo Noblat: O Globo Online

Gente,

Tomei foi um susto. Mas o nosso glorioso talabarte foi parar no blog do Noblat. Divido minha alegria com vocês. Abração

domingo, 16 de novembro de 2008

Valeu, Moa!


Se pudéssemos ser sistemáticos diante da obra de Moacyr Luz, seria possível dizer que ele é 1. um dos grandes violonistas do País. 2. um compositor extremamente importante para o samba, parceiro que é de gente como Paulo César Pinheiro, Aldir Blanc, Luiz Carlos da Vila e outros. 3. um agitador cultural inquieto, capaz de montar e tornar um sucesso o samba do trabalhador, uma roda de samba que reúne, todas as tardes de segunda-feira (!), no Rio de Janeiro, entre 500 e mil pessoas.
Diante da figura de Moacyr, de sua generosidade e seu talento, no entanto, toda essa mesura analítica vira um discurso manco. Moa, como lhe chamam os amigos e como ele próprio gosta de ser chamado, é muito maior do que supõe a vã filosofia das resenhas musicais. O samba transborda de sua persona artística de maneira fluida, generosa. Talvez porque sabe que o bom samba - pela sua origem social e, por que não dizer, espiritual - reside na fraternidade, prerrogativa dos espíritos iluminados. 
E Moacyr é um deles. 
Faço minhas as palavras de uma linda homenagem a Nelson Sargento escrita por Aldir Blanc, que bem poderia ter escrito pensando em Moacyr. "Essa é a grandeza que o samba nos legou:/ Em cada tristeza erguer nosso corpo ao humor/ Se o riso é mais do que cansaço/ Mangueira cabe em nosso abraço/ E toda a dor deste mundo enfeita nossa fantasia..."
Obrigado, mestre!



P.S. - Ah, sim. A foto acima foi tirada pelo Américo no show de sexta-feira, no Amicci´s.

O Brasil de Rolando Boldrin

Na música e na biografia de Rolando Boldrin, repousa mais do que aquilo que alguns pesquisadores costumam chamar de "Brasil profundo", mas um efetivo projeto de nação, mais delicada, mais solidária e mais humana. Mais orgulhosa de sua própria grandeza. O Brasil que esse paulista projeta em seus discos e em seus programas de TV, no entanto, tornou-se um País irreal, milhas e milhas afastado do Brasil real, oficial, que optou por se perder de si mesmo, por cretinizar sua alma musical. Violeiro, disco de 1982, é um dos grandes momentos na discografia de Boldrin. Aqui, ele tem a companhia de então remanescentes de duplas caipiras famosas, como Ranchinho, Cascatinha, Corumba e Bentinho. Entre uma e outra dolorida moda de viola, como "Violeiro Triste" e "Chapéu de paia"; Boldrin interpreta algumas jóias do melhor humor caipira, como "Balagulá" e "O sapo no saco", regravada por Pedro Miranda. Em resumo: um belíssimo 3x4 da obra de um artista que construiu, como poucos, um retrato grandioso para o País.

Abaixo, Boldrin acompanhado de outro gigante, Sebastião Tapajós.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Senhor Violão


Na rica história do violão brasileiro, poucos ocuparão lugar tão importante quanto Turíbio Santos, seja pelo talento e pela técnica (premiados em concursos e centenas de gravações no Brasil e no exterior) seja pela dedicação à pesquisa, à divulgação e ao ensino de um dos traços mais relevantes da musicalidade nacional. Mistura Brasileira, o 65º disco da carreira Turíbio, saiu no começo do ano pelo selo Delira Música. Nesse trabalho, Turíbio faz releituras de temas populares de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e Tom Jobim. Quem quiser começar a descobrir o oceano de beleza e técnica que é a trajetória de Turíbio, uma boa dica é o site www.turibio.com.br, em que há partituras, gravações, discografia e fotos do violonista. Entre elas, essa foto de Turíbio ao lado de (ninguém menos!) Andrés Segóvia, em Santiago de Compostela, em 1965.

Abaixo, Turíbio e uma peça de Villa-Lobos.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Mingus Erectus

Uma chave para a compreensão da música de Charles Mingus é o espírito contraditório de sua personalidade, a alternância entre gentileza e agressividade que marcou sua trajetória e tensionou o músico em momentos decisivos. Um encontro de "ambigüidades", como define o crítico Augusto Pellegrini: da tradição com a vanguarda, da religiosidade com a contestação, da conformação com a revolta. Mestiço de negro e índio, Mingus sempre se considerou um marginalizado e afinou sua música no diapasão do ódio contra o preconceito e a perseguição racista, sentimento que constantemente fazia explodir em sua música - como é o caso da antológica "Haitian Fight Song". Seu estilo ao contrabaixo, ao mesmo tempo percussivo e ágil, já incorporava esse traço de sua personalidade. Dois de seus discos são considerados suas obras-primas: Pithecantropus Erectus (1956) e The Clown (1957). Nos dois, é possível encontrar a estética bem particular dessa fase de Mingus: a preocupação com os arranjos, resultado de sua adoração a Duke Ellington; e a expressão individual de cada músico nos solos, que remete ao seu interesse pelas propostas de Charlie Parker e Thelonious Monk.

Abaixo, a gravação de Haitian Fight Song.

Vereda do dia

"Deus existe mesmo quando não há . Mas o demônio não precisa de existir para haver"
Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

O simplório e o safado

Há uns dois anos, não foram poucos os "especialistas", os "teóricos" e os oportunistas que caíram em cima de mim quando tentei apontar o problema ético que embalava a performance de certo "artista contemporâneo" de Fortaleza e que consistia numa pegadinha patrocinada com dinheiro público. E, pior, chancela de uma instituição pública. O pau cantou e, da chacota aos discursos cavos ou oportunistas, lidei com todo tipo de desagravo. Raros foram aqueles que compreenderam a matriz ética da "polêmica", que antecedia às dimensões artísticas e - vá lá - estéticas da questão.
Bom, em sua coluna desta semana no suplemento Mais!, da Folha de S. Paulo, o professor e articulista Jorge Coli escreveu um texto que pode ser muito produtivo se iluminar outras "polêmicas" no campo da arte contemporânea - a exemplo da pilantragem do famigerado japonês. Ao analisar a Bienal Internacional de São Paulo, Coli critica duramente a "obra" em que se transformou o segundo andar do prédio da mostra, deliberadamente deixado vazio pela organização do evento. E começa lembrando que, há 50 anos, Yves Klein (1928-1962) pintara de branco uma galeria em Paria para expor o vazio, "provocando filas de gente querendo entrar para ver o que não havia".
"A Bienal de São Paulo está vazia. Vazia. Sem floreios ou firulas: vazia, irremediavelmente vazia, pateticamente vazia. Vazia de obras, de idéias, de vergonha. (...) Não adianta vir com história de que essa Bienal causa 'polêmica', palavra hedionda porque reduz argumentos e debates a um espetáculo de circo. Não pode haver polêmica com alguma coisa que se situa entre o simplório e o safado", escreve.
E completa: "Se é para perturbar a seriedade sagrada dos lugares reservados às artes, uma sugestão: instalar a próxima bienal no Playcenter. Tanya Barson, da Tate Modern (Londres), que lamentou, na Folha, ter voado 14 horas para ver a Bienal do Vazio, poderia ao menos se divertir na montanha-russa, no chapéu mexicano".

sábado, 8 de novembro de 2008

Drama: Ação

Este é um dos momentos mais bonitos e corajosos da longa e consagrada carreira de Bethânia. Trata-se do disco Drama, um pérola lançada em 1972 e que marcou decisivamente a transição da juventude para a maturidade artística da cantora. Produzido por Caetano Veloso, que acabara de retornar do exílio em Londres, o disco abre com um "Ponto" contra o autoritarismo da ditadura: "Sou eu que me deito tarde/ Sou eu que levanto cedo/ Sou eu que realço tudo/ Sou eu que não tenho medo". O tom se estendia por outras faixas, como "Negror dos tempos" e "Drama", ambas do próprio Caetano. "Drama/ e ao fim de cada ato/ limpo num pano de prato/ as mãos sujas do sangue/ das canções". A saudação "Iansã" é outro grande momento do disco: "Eu sou um céu para as tuas tempestades/ Deusa pagã dos relâmpagos/ Das chuvas de todo ano/ Dentro de mim". 
O disco traz ainda uma inusitada versão rock´n´roll para "Volta por cima", de Paulo Vanzolini. Na época de seu lançamento, Drama consagrou os sucessos "Estácio, holly, Estácio", de Luiz Melodia (que gravaria seu primeiro disco no ano seguinte); e "Anjo Exterminado", de Macalé e Waly Salomão - regravada por Adriana Calcanhoto em disco-tributo a Waly. Em tempo: drama significa "ação" em grego.

Abaixo, um vídeo da turnê de Bethânia de 1973, que era baseada no disco. Fico impressionado como os arranjos daquela época e mesmo a sonoridade de certos instrumentos ainda soam extremamente modernos. E como canta esta criatura!

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

A cachorrada se aquecendo

O nosso bloco, o glorioso - e inoxidável, como diria aquele poeta de Quixeramobim - Unidos da Cachorra, fechou uma parceria com o Sesc e está fazendo um ensaio aberto na Praia de Iracema todos os primeiros sábados de cada mês. Esse é um rápido registro da nossa apresentação no sábado passado. O som está meio ruizinho e não pega direito as marcações e as caixas. Mas os tamborins dão seu recado. Era o comecinho do ensaio. Uma hora depois ninguém conseguia mais andar nesse quarteirão. Nos demais sábados, o ensaio acontece no Amicci´s a partir das 14h. O pré-carnaval bate à porta...

Camerata Carioca

No famigerado ano de 1983, quando a economia brasileira foi à lona, um lançamento de música instrumental tornou-se um divisor de águas no Brasil. Tanto por reafirmar a riqueza de uma tradição que parecia se esfumaçar ante o avanço dos teclados, baterias eletrônicas e sintetizadores; quanto por retrabalhar os códigos do nosso processo musical de maneira absolutamente original até então. Capitaneada pela virtuose de Joel Nascimento, a turma da Camerata Carioca lançava o disco Tocar, um libelo a favor da música brasileira que reuniu alguns dos principais nomes do choro e da música erudita no País: além de Joel (bandolim), Joaquim Santos e Maurício Carrilho (violões), Luiz Otávio Braga (violão de 7), Henrique Cazes (cavaquinho), Beto Cazes (percussão) e Dazinho (sax e flauta). "É difícil destacar detalhes valorosos do disco, pois são muitos, mesmo assim valem citação especial: a balançadíssima participação de Radamés Gnatalli no 'Remexendo', os belíssimo arranjos de Maurício Carrilho - 'Fugata' e 'Choro de mãe' -, Luiz Otávio Braga - 'Terna saudade' e 'Lenda do caboclo' - e o timbre especial do sax-alto de Dazinho no solo de 'Valsa Triste'", lembra Henrique Cazes, no encarte da edição do disco em CD.

Abaixo, um vídeo de Henrique Cazes tocando "Minhas mãos meu cavaquinho", de Waldir Azevedo.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

A voz do dia

"Deixa falar todas as coisas visíveis
Deixa falar a aparência das coisas que vivem no tempo
Deixa, suas vozes serão abafadas.
A voz imensa que dorme no mistério sufocará a todas.
Deixa, que tudo só frutificará
na atmosfera sobrenatural da poesia".
João Cabral de Melo Neto

Marquinhos de Oswaldo Cruz

Um pouco antes da nova geração do samba da Lapa começar a ganhar prestígio nacional - a reboque sobretudo dos êxitos de Teresa Cristina -, o portelense Marquinhos de Oswaldo Cruz já pontuava como um nome valoroso do gênero. Em 2000, ele estreava em disco com o consistente Uma Geografia Popular, chamando atenção tanto para seu trabalho como compositor quanto para a tradição de grandes sambistas localizada na latitude lírica entre Madureira e Oswaldo Cruz. Seis anos depois, Marquinhos voltou à carga com um grande disco: Memórias de minh'alma, que saiu pela Cumba Discos. Depois de muito pelejar em lojas de discos - reais e virtuais - finalmente consegui meu exemplar. Valeu cada dia da espera. Marquinhos é dos raros compositores que sabem usar a poesia - em seu caso acompanhada de uma riqueza melódica  e harmônica que faz lembrar os grandes mestres portelenses - para esgrimir contra a vida dura dos trabalhadores suburbanos numa metrópole como o Rio de Janeiro. "Os olhos não podem ver", belo samba que abre o disco, antecipa esse sentimento de lírica resistência que dá o tom de boa parte do CD: "Um velho banco, antiga estação / Vou sentindo o que os olhos não podem ver / Nesta marmita, eu carrego os meus versos / Que alimentam de emoção meu dia a dia".
Segue-se um feliz pout-pourri de composições de dois grandes portelenses - Candeia ("Zé Tambozeiro" e "Samba da Antiga") e Manacéa ("Carro de boi") - que desagua, na faixa seguinte, na emocionante "Portela Canta", um samba de terreiro de Marquinhos inspirado no desastre do desfile da Portela de 2005, em que a Velha Guarda foi impedida de desfilar na Sapucaí em função do inchaço da escola. Medida, aliás, que salvou a maior campeã do carnaval carioca de um vexatório e histórico rebaixamento. 
Nas mãos do compositor, a tragédia virou uma antológica apoteose e, sem exageros, entra para a história como uma dos mais belos sambas de quadra de todos os tempos. "Mas a Portela canta/ Vai nessa noite sem luar/ Sem alma na cuíca chora/ E com a voz do seu terreiro/ Ocupará o seu lugar", canta Marquinhos acompanhado por um coro de primeira:  Áurea Maria, Agrião, Ircéia, Tantinho da Mangueira, entre outros. 
Só essas faixas de abertura valeriam por todo o disco. Mas Memórias de Minh'alma ainda reserva quatro destacadas parcerias de Marquinhos com L.C. Máximo ("Pé de Moleque", "Na rua, a varanda", "Verde Bandeira", "Memórias") e um desfecho em grande estilo com a belíssima "Éramos reis", que maltrata o coração da gente na voz crucial de Virgínia Rodrigues.  
Abaixo, Marquinhos numa edição especial do programa Sarau, da Globo News, sobre o pagode do trem. Ao lado dele, Xangô da Mangueira e Monarco.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Beatles e uma revolução pecuniária


Os Beatles e os Stones foram tão (des)importantes para a cultura jovem dos anos 60 quanto as Spice Girls nos anos 90. O argumento é do historiador David Fowler, professor da Universidade de Cambridge, para quem as duas bandas foram apenas fenômenos de publicidade movidos por desejos pecuniários.

"Os Beatles fizeram sucesso muito rápido, seu público era formado principalmente por adolescentes, mas não faziam conexões, não promoviam a cultura jovem como um opção de vida. Faziam apenas músicas simplistas, e não acho que promovessem nenhum tipo de mudança. Estavam ali apenas pelo dinheiro, não para mudar o mundo", defende o professor, que acaba de lançar o livro Youth Culture In Modern Britain - 1920-1970 (Ed. Palgrave).

Segundo Fowler, Beatles e Stones tinham a mesma ideologia das Spice Girls. Qual seja, buscavam segurança e dinheiro. Herói da cultura jovem, para ele, era Rolf Gardiner, estudante de Cambridge que, nos anos 20, começou a falar em "jungenkultur", ou "cultura jovem", uma onda de discussões políticas e musicais que começava a ganhar terreno em algumas universidades. Já a ação dos Beatles, teria sempre girado em torno da fama e do dinheiro, "que souberam aproveitar muito bem". Só uma curiosidade: "We´re only in it for the money", aliás, era o nome do disco que Frank Zappa lançou em 1968 num despudorado deboche a seus contemporâneos famosos.

O livro ainda não foi lançado no Brasil. Quando o for, terá trilhado um tortuoso caminho entre polêmicas, ataques e desagravos de beatles e stonemaníacos mundo afora. O que pode inclusive desvirtuar a discussão. Exageros pontuais à parte, essa é uma leitura que pode ajudar muito a compreender os caminhos cada vez mais caretas, auto-indulgentes e musicalmente redundantes que o rock vai trilhando em nossos dias.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Bíblia, a revista

Maior best-seller mundial - com cerca de 500 milhões de cópias vendidas anualmente -, a Bíblia acaba de ganhar uma curiosa (e brevemente polêmica, podem apostar) edição. Trata-se de uma versão pop dos textos sagrados editada em formato de revista (duas revistas, na verdade, uma para cada testamento) pelo sueco Dag Söderberg, que misturou as escrituras com fotos de celebridades e outras imagens, que vão do poético ao chocante. "Sensibilidades conservadoras podem sofrer um pouco. Eu adorei", escreve Luiz Felipe Pondé, colunista da Folha de São Paulo, que resenhou a revista do Novo Testamento.
Na Suécia, as revistas de Söderberg - uma espécie de encontro entre a Vogue e a Colors Magazine - foram responsáveis pela façanha de aumentar em 50% a venda da Bíblia: o mercado sueco, que vendia 60 mil exemplares anuais do livro sagrado, incorporou às suas planilhas mais 30 mil cópias do Velho e do Novo Testamento. Nos Estados Unidos, só a edição revistizada do Novo Testamento - com 288 páginas e preço de cerca de R$ 75 - ganhou tiragem inicial de 200 mil cópias e uma campanha de marketing orçada em meio milhão de dólares. A foto ao lado é da capa do Velho Testamento.
Mais informações sobre a polêmica e sobre o marketing feito em torno da publicação podem ser acessadas no site http://www.illuminatedworld.com/.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Cegueira do dia

"Onde estava todo esse dinheiro (desbloqueado para resgatar os bancos)? Estava muito bem guardado. Logo apareceu, de repente, para salvar o quê? vidas? Não, os bancos. Marx nunca teve tanta razão como agora. (...) Sempre estamos mais ou menos cegos, sobretudo, para o fundamental".
José Saramago, prêmio Nobel de Literatura, ao analisar a atual crise do sistema capitalista.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Marta, Kassab, Lurian e a filha de FHC

Confirmada a vitória de Kassab em São Paulo, é possível que a desastrada estratégia da campanha de Marta Suplicy - que quis saber de certas intimidades da vida pessoal do demista, como se o então candidato tinha filhos ou se era casado - acompanhe a ex-ministra por muito tempo, a exemplo do famigerado bordão "Relaxa e goza". No entanto, é sempre bom ficar atento para certos pesos e certas medidas com que a grande imprensa costuma embalar algumas coberturas, em especial o noticiário envolvendo protagonistas à esquerda dos interesses da Fiesp, da Febraban e quejandos. 
Nirlando Beirão, que assina a ótima coluna "Estilo" na Carta Capital, fez a melhor leitura do caso até aqui. Diz Beirão: "O clamor que a mídia de mão única suscitou a propósito de duas perguntas pessoais feitas pela campanha de Marta Suplicy acerca do evasivo prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, foi tamanho, tão propositadamente escamoteador (afinal, as duas perguntas não foram responsdidas), que deixou no ar uma interessante discussão. Como administrar judiciosamente a informação que os eleitores merecem e o direito ao resguardo íntimo de um homem público?"
E continua: "O Globo, o Estadão, a Folha, a mídia grandona já tem isso muito bem resolvido: devassa total na vida do adversário, transparência zero (e estupor injuriado) quando se trata de seu protegidinho. (...) O que faz um eventual prefeito debaixo dos lençóis não é da conta de seus constituintes, mas também estranha que se queira fazer tabu de tão blindada intimidade. Freud explica. É a sexualidade que incomoda os moralistas da política. O resto pode". 
Daí que eu me lembrei do alvoroço midiático em torno do caso Lurian, estopim da derrota de Lula nas eleições de 1989; e do silêncio marmóreo em torno da filha de FHC com a jornalista da Globo, caso milimetricamente abafado pelos jornalões nas eleições de 1998. 
Marta perdeu. E por motivos que estão para além da tomatada pontual de sua campanha. Tanto que terminou a campanha com os mesmos 40% que lhe apontavam as primeiras pesquisas. Mas é sempre bom ter cuidado quando se nada a favor da corrente da mídia; sob pena de se assistir pela televisão e pelos jornais às mais cretinas aulas de moral e cívica.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Desvairadamente

Raphael Rabello em uma versão "caseira" para "Desvairada", do Garoto. Se você algum dia pensou em desistir de tocar violão, sua oportunidade é agora.


Perguntas e respostas

É de Décio Pignatari, a observação segundo a qual, em nossos dias, a resposta esterelizante - "não vale a pena" - parece substituir a pergunta criativa - "e agora, que fazer?". No campo da música popular, a maior parte de nossos artistas parece engessado pela primeira e são raros os que enfrentam a segunda de maneira franca. Entre estes, são ainda mais raros os que conseguem propor algo efetivamente interessante sem cair em certos maneirismos; dos quais um dos mais perigosos, a meu ver, é aquele que vê na mistura aleatória de linguagens, no cruzamento atabalhoado de informações, uma tábua de salvação estética. Em geral, eles atuam como o cozinheiro que se encanta com uma enormidade de ingredientes para sua refeição, decide usar todos e, por fim, acaba por anular as particularidades de cada sabor, as nuances de cada elemento usado no prato, servindo ao seu desafortunado cliente uma comida que não tem gosto de nada.
Um disco lançado recentemente enfrenta de maneira corajosa a provocação do poeta concretista, fugindo dessa tentação da "mistura" e propondo novas abordagens para a música popular. Trata-se do segundo volume da série Brasilianos, do quinteto de Hamilton de Holanda. Nesse trabalho, Hamilton leva a um patamar ainda mais alto a tensão e as experimentações a que tem submetido não só a tradição da música instrumental no Brasil mas os próprios limites harmônicos e timbrísticos do bandolim. Não à toa, por exemplo, se notabilizou por utilizar um instrumento de dez cordas, duas além das oito tradicionais. 
Nesse Brasilianos 2, a virtuose é o caminho percorrido pelo quinteto para afirmar seu próprio texto, sua própria expressão. O que não significa apenas correria ou malabarismos cromáticos. Mas a elaboração de texturas, diálogos e contrapontos que fazem transbordar pelo disco uma enorme sensação de liberdade - que começa na pouco usual constituição do quinteto (contrabaixo, violão, gaita, bateria e bandolim). 
Em "A vida tem dessas coisas", uma das faixas mais representativas do estilo e do vigor de Hamilton de Holanda, o afro-samba recebe pitadas de Villa-Lobos entre os bordões do contrabaixo e do violão. Em "O mundo não se acabou", a vertigem do maculêlê faz a cama para a cascata de notas com tal exuberância que poderia fundir a cuca de um crítico de jazz mais careta. "Carolina de Carol" aproxima o ijexá da salsa e tenta traduzir a confusão de uma brincadeira entre várias crianças - como o são, afinal, Hamilton e seus escudeiros pela absoluta falta de medo do perigo, do desconhecido. "Tamanduá" e "Estrela Negra" entregam o que o samba "Ano bom", que abre o disco, prometia. Rara felicidade.
Hamilton e seu quinteto podem até nem responder devidamente à provocação de Pignatari. Mas, no mínimo, propõem novas perguntas que são tão ou mais interessantes que uma resposta pronta. 
Abaixo, o quinteto em ação.


Tome cinco, Brubeck

Primeiro disco de jazz instrumental a vender mais de um milhão de cópias, Time Out (1959), do mitológico quarteto de Dave Brubeck, registra a melhor fase do grupo. Aqui, Brubeck assume de vez as informações eruditas que contagiaram sua música e que, apesar do nariz torcido de parte da crítica mais ortodoxa, fizeram cravar a melodia de músicas como "Take five" e a frenética "Blue rondo a la turk" no imaginário dos fãs de jazz. "Take Five", aliás, chegou a quinta colocação na Billboard na categoria música adulta contemporânea. Seguido de Paul Desmond, Joe Morello e Gene Wright, Brubeck, a partir da utilização de métricas estranhas ao jazz mais tradicional (em especial a valsa), dá saltos corajosos nos improvisos sem perder a capacidade de comunicação com o ouvinte. Em 2005, o disco foi eleito pela Biblioteca do Congresso Norte-Americano como um dos 50 álbuns que formariam o Registro Nacional de Gravações dos Estados Unidos. Ano que vem, Time Out completa 50 anos, mas continua soando surpreendentemente moderno. Um ótimo ponto de partida para quem quer ingressar no universo do jazz e um fascinante ponto de chegada para muitos músicos.

A discoteca Gabeira

Nas eleições para a prefeitura do Rio de Janeiro, Gabeira pode até não sair vitorioso, mas já conseguiu a façanha de reunir uma constelação da MPB em torno de sua campanha. Ao todo, os marketeiros do Partido Verde usaram 13 músicas, cedidas por seus respectivos autores ou representes, além do jingle "O Rio de Gabeira". A informação é do blog do Ricardo Noblat.

Abaixo, o hit parade de Gabeira

1. Como uma onda - Lulu Santos
2.
Rio 40 graus - Fernanda Abreu
3.
Tudo Vale a pena - Pedro Luis
4.
Vem chegando o verão - Marina Lima
5.
Alagados - Paralamas
6.
Eu quero ir pra rua - Paula Toller
7.
Oito anos - Paula Toller
8.
Cariocas - Adriana Calcanhoto
9.
Saúde - Rita Lee
10.
Cidade Maravilhosa - Caetano Veloso
11.
Amanhã - Caetano Veloso
12.
Delírio dos Mortais - Djavan
13.
Samba do Avião - Tom Jobim
14.
O Rio de Gabeira

As músicas podem ser escutadas no seguinte link

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Cotação do dia

"Existem artistas que têm preço e os que têm valor. Quem tem preço, os caras têm dinheiro para comprar. Quem tem valor está sempre nas resistências"

Genival Oliveira Gonçalves, o rapper GOG, em depoimento reproduzido pela edição brasileira do Le Monde Diplomatique.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O Ponto Enredo de Pedro Luis e a Parede

Acabo de escutar Ponto Enredo, novo disco do Pedro Luis e a Parede. Trata-se do trabalho mais vigoroso do grupo carioca. A produção de Lenine explica em parte esse vigor. O músico pernambucano tem uma assinatura preciosa ao combinar timbres - ora espessos, ora bem pesados - de guitarras, cavacos distorcidos e contra-baixos com a riqueza dos ritmos afro-brasileiros, preservando a delicadeza de temas e letras que remetem, em sua maioria, ao universo religioso da umbanda e do candomblé.  
As letras e harmonias de Pedro Luis estão mais maduras e enxutas, o que lhe permite transitar com a mesma naturalidade entre diferentes parceiros: Roque Ferreira, Carlos Rennó, Suelly Mesquita, Lula Queiroga, Zé Renato, Lenine e até Manuel Bandeira, de quem musicou o poema "Cantiga" numa ótima versão com o grupo A Trombonada. 
Vale também registrar a presença de Zeca Pagodinho, que mostra que é um cantor de recursos muito mais amplos do que supõe o vão preconceito em relação aos seus "pagodes". Roberta Sá e Lenine também dão o ar da graça nos vocais. A primeira coroando com seu timbre adocicado a bela "Luz da Nobreza", parceria de Pedro Luis e Zé Renato. O segundo, em "4 Horizontes", fazendo o contracanto de uma melodia envolvente. "Estrada de quatro sentidos/ Encruzilhada de destinos/ Quanto mais flor, mais mulher/ Quanto mais velho, mais menino", cantam os dois parceiros num dos grandes momentos do disco. 
É, ao mesmo tempo, o mais elaborado e o mais pop dos trabalhos do grupo carioca.  Um disco que é não é simplesmente um disco de samba mas que mostra como o samba ainda é a grande força motriz da música brasileira. E ainda reafirma Pedro Luis como um dos grandes compositores de nossa época. 

Luiz Carlos da Vila

O samba perdeu Luiz Carlos da Vila. Discos-tributo e homenagens póstumas despontarão em breve, como sói acontecer nessas horas. E é bom que venham mesmo. O problema é repisar a velha narrativa do compositor popular de enorme talento que morre em dificuldades e sem o devido reconhecimento à sua obra. Eita Brasilzão!
Todos vão lembrar de "Kizomba, a festa da raça". Muitos vão lembrar de "O show tem que continuar". Mas Luiz Carlos deixa uma obra que vai muito além desses dois sucessos. Nos anos 70, ele foi um dos principais protagonistas do movimento que redesenhou instrumentalmente o samba no Brasil via Cacique de Ramos. Na onda que jogou aquela turma na celebridade (Jorge Aragão, Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal, etc), ele foi gravado por Beth Carvalho ("Doce refúgio") e chegou ao primeiro disco em 1983. Um belo registro que trazia "Bandeira da fé", "Solidão e gás" e "O sonho não acabou", uma homenagem a Candeia que, nos anos 90, transbordaria em um CD antológico.
Ao todo, foram oito discos de carreira - sem contar com sua participação em outros projetos como o "Esquina Carioca", que reuniu Moacyr Luz, Beth Carvalho, João Nogueira e Dona Ivone Lara - e dezenas de grandes composições que pavimentaram o caminho de Luiz Carlos ao olimpo do samba.
Abaixo, um vídeo do poeta.

Duas perguntas para Carlos Zilio

Cite um vício das artes plásticas que considera abominável.
Zilio - O aspecto mundano. É o aspecto da atividade artística que demanda uma exposição pública do artista e não somente da sua obra. É o lado da celebridade das artes, existe uma sociabilidade superficial. A vitrine vale mais do que o trabalho.

Que virtude mais preza na boa arte?
Zilio - Um bom trabalho de arte tem uma relação de integridade entre os meios e a poética.

Os trechos acima foram retirados de uma entrevista do artista plástico Carlos Zilio ao jornal Estado de São Paulo publicada no último dia 12 de outubro. Ao lado, a obra Visão Total, produzida por Carlos Zilio em 1966.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

A guerra segundo Kusturica

Não recordo o autor da frase, mas lembro que, na primeira vez que assisti a Underground - Mentiras de Guerra (1995), o comentário estampado na capa do VHS - segundo o qual aquele tratava-se do filme de guerra que Fellini não fizera - foi decisivo para me fazer encarar as quase três horas do longa-metragem do iugoslavo Emir Kusturica. Antes de mais nada porque sempre me pareceu que Fellini havia feito, sim, filmes de guerra. Ou pelo menos contemplado, a seu modo, o tema da guerra. Em particular, em La Nave Va e Ensaio de Orquestra. Mas depois de assistir ao filme do iugoslavo, percebi que não era apenas Fellini que não havia filmado a guerra como Kusturica. Na verdade, nenhum outro diretor havia feito um filme sobre a guerra - ou sobre o desatino da guerra - como Underground.
Recentemente, o filme saiu finalmente em DVD pela coleção Lume, da Lume Filmes. Se você tiver de escolher apenas um filme na filmografia desse diretor iugoslavo, nem hesite: é Underground. Agora, o difícil vai ser você, depois de conferir a saga tragicômica vivida por Ernst Stötzner e Lazar Ristovski (foto acima), querer ficar apenas num único de filme de Kusturica, que também dirigiu coisas sublimes como Vida Cigana (ou O tempo dos Ciganos, dependendo da versão) e O ano em que papai saiu em viagem de negócios.

Observatório do dia

"Se você chegar a um país e quiser saber da liberdade política que têm seus cidadãos, basta ler os jornais desse país. Se dizem que o governo é admirável, seus mentores maravilhosos, dignos e capazes, é porque os governantes são déspotas que liquidaram com a liberdade de expressão. Agora, se os jornais dizem que os governantes são incapazes, hipócritas e estão levando o país à ruína, o país está, pelo menos politicamente, muito bem".
Millôr Fernandes, em O livro vermelho dos pensamentos de Millôr.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Arte do encontro


Um show memorável. Moyseis Marques veio, viu e venceu. Quem foi ontem no Amici´s conferiu como o cara tem carisma e como é um dos grandes intérpretes do País em nossos dias. Simples, sem afetações, Moyseis mostrou seu trabalho e conquistou o público. Vou me permitir a indiscrição e, talvez embalado pela alegria pós-evento, dizer que saímos todos envaidecidos com os elogios tecidos à nossa banda, que aprendeu imensamente com mais essa jornada do projeto Policarpo Convida. Destaque para a perfomance do mestre Zé Renato, um dos maiores músicos do Brasil e que conquistou Moyseis logo na primeira bordoada. Pedro Miranda, Gallotti e, agora, Moyseis. Que honra tocar (e trocar informações) com essa rapazeada. E que honra também ser acompanhado de músicos tão talentosos e cheios de garra e de boa energia como os que formam o Policarpo. Ficam nossos agradecimentos para as mais de 200 pessoas que foram ao show. Isso só nos deu mais ânimo de seguir adiante com essa cruzada. Um tanto quixotesca é bem verdade. Mas que nos dá uma alegria danada a cada edição do projeto. Em novembro, teremos Moacyr Luz (!) e, em dezembro, Cristina Buarque (!!). Aliás, como diria o irmão da própria: tem mais samba no encontro que na espera.  No que diz respeito ao Policarpo, a gente tem trabalhado muito duro para fazer do samba uma feliz arte do encontro por essas bandas. 

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Adorno do dia


"A arte é a lembrança do possível contra o real que a oprime, alguma coisa como a compensação imaginária da catástrofe da história do mundo"

Theodor W. Adorno (foto), em Teoria Estética

O salvo-conduto do samba

Quase todo brasileiro - das mais diversas regiões do País - tem um samba para chamar de seu. Nem tanto uma música em especial, mas parte de um repertório ou de um determinado gênero de samba que consome e crê legítimo, puro, definitivo. Se essa onipresença revela a força seminal com que o ritmo se espalhou pelo Brasil, dialogando e assumindo traços que refletem as diferentes soluções culturais de cada Estado; também irriga um debate que, no mais das vezes, leva à segregação, à desinformação e ao bairrismo. Assim é que, para determinados ouvintes, samba é sinônimo de partido-alto ou de samba de enredo. Confunde-se também com o "pagode", termo que recebeu diversos e "equivocados" usos ao longo dos anos. Para outros, no entanto, samba "bom" é aquele que reflete uma sofisticação e um elitismo quase bossanovistas. Alguns ainda elegerão como autêntico o samba de certas manifestações caricaturais ou folclóricas espalhadas por ruas e terreiros do País.
Recentemente, um sambista carioca me falou que, a depender do local em que se apresentasse no Rio de Janeiro, tinha de escolher com muito apuro seu repertório sob pena de ser hostilizado pela platéia. Num samba da Zona Sul, por exemplo, valia o repertório de Chico, Gil, Gonzaguinha, Vinícius e outros "medalhões" da MPB. Composições de partideiros e versadores da Zona Norte ou mesmo de grandes intérpretes como João Nogueira e Roberto Ribeiro tinham de ser manejadas com muita discrição. "Ih, já vai tocar pagode!", poderia acusar um xiita mais apressado. Já do outro lado do Túnel Rebouças, a pressão era inversa e a apresentação de um samba do Chico, do Gil, do Gonzaguinha, etc, poderia, de maneria fulminante, ser tachado de "elitista" e "arrogante".
Esse apartheid musical não é exclusivo do Rio de Janeiro e também não é novo. Basta lembrar das casas das tias baianas que, no início do século, reuniam, na sala de estar, a aristocracia e a burguesia carioca; e, no quintal, os malandros e trabalhadores da então Capital Federal. Todos embalados por gêneros como o lundu, o maxixe e o recém-nascido samba, que assumiam sentidos diferentes em cada cômodo da casa. De lá pra cá, essa separação manteve-se a mesma, ganhando apenas outros matizes: como o caso clássico da bossa nova, que, no fim dos anos 50, se apropriando de procedimentos harmônicos do jazz e suavizando o batuque dos morros e subúrbios cariocas, instaurou o samba da Zona Sul. Ou ainda do pagode, que de reunião festiva de músicos virou gênero musical, conquistou importantes faixas de mercado nos anos 80 e reanimou o samba na Zona Norte.
Mesmo entre os grandes gênios do samba, não foram todos que receberam o salvo-conduto de se mover entre os dois lados da trincheira. Noel Rosa e Ismael Silva talvez tenham sido os primeiros. Zé Ketti, Nelson Cavaquinho e Paulinho da Viola vieram em seguida. Cartola foi o maior deles. Até hoje, o mestre mangueirense é um dos raros que têm cadeira cativa em qualquer samba do País, seja um samba "Zona Norte" ou um samba "Zona Sul". Os motivos para essa imunidade diplomática são vários. A começar da riqueza poética e harmônica de suas composições, que chegaram a impressionar "eruditos" como Villa-Lobos e Carlos Drummond de Andrade, para quem Cartola era "poeta maior"; e ganharam ampla repercussão popular.
Em 1940, o maestro Leopold Stokowski, então uma celebridade internacional, veio ao Brasil comandando uma missão folclorista que percorria a América Latina registrando ritmos e melodias típicas da Região. No Rio de Janeiro, teve como cicerone Villa-Lobos, que convocou, entre outros, Pixinguinha, Donga, Jararaca e Ratinho para a célebre gravação no navio Uruguai patrocinada pela Columbia. Cartola foi um dos convidados mais festejados, tanto pelo maestro quanto pelo povo da Mangueira, que cantou em uníssono suas músicas quando da visita de membros da comissão ao Morro. "Villa-Lobos era uma espécie de meu padrinho. Me convidava para tudo que é programa. Dizia sempre: 'esse pretinho vai longe'", afirmava o sambista.
Quando gravou seu primeiro disco, em 1974, Cartola conseguiu unir no coro dos elogios à obra comentaristas de posturas absolutamente divergentes em relação ao destino e aos sentidos da música brasileira. O conservador Tinhorão, por exemplo, em sua crítica no Jornal do Brasil, recomendou ao público "comprar com urgência o elepê de Cartola" e "atentar bem para certas passagens de sambas de Cartola e comparar sua hermonia com o que os compositores da geração bossa-nova afirmavam ter sido a maior contribuição do movimento à música popular brasileira". Já o bossanovista Nelson Motta, em texto para O Globo, registrou o LP como "primeiro disco individual, antológico, pesado 'de obra', desse extraordinário compositor popular. Elepê assutadoramente simples, direto e inundado de poesia em seus sentidos mais fortes e vitais".
Também a figura carismática de Cartola, já apontado como mito pela imprensa desde os anos 30, contribui para aparar arestas dos dois lados do Rebouças. No efêmero Zicartola, ele conseguiu aglutinar em antológicas rodas musicais toda a fauna artística e intelectual que se pulverizava em infinitas correntes políticas e estéticas: entre eles, os bossanovistas, os CPCistas e os cultores do samba tradicional. Malandros e "rapazes de bem". Vale dizer também que, em sua posteridade, Cartola foi gravado por um leque de intérpretes dos mais variados setores da música brasileiro, sempre saudado como gênio por cada um deles e aplacando as diferenças menores entre intérpretes da "Zona Norte" ou da "Zona Sul". O samba é ao mesmo tempo vários e um só.
Tentar legitimar apenas um ou outro gênero é tarefa conjuntural para os tolos ou desinformados. Os grandes mestres, como Cartola, pairam gloriosos sobre todos eles, ensinando gerações e gerações de sambistas a perceber no traço democrático do samba uma de suas grandes riquezas.

Texto publicado originalmente na edição de 11 de outubro do jornal O POVO (Fortaleza-CE)

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Retranca do dia


"O Brasil não forma mais meias, aquele jogador que organiza o time. Nos juvenis, já estão jogando no 3-5-2. O meia, com características brasileiras, tipo Gérson, não tem função neste esquema. São três zagueiros, dois alas, dois volantes, um jogador na criação e dois atacantes".

Paulo Autuori, técnico do Al-Rayan, do Qatar, ao comentar por que o futebol vai cada vez mais perdendo seu charme.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

O dia de um escrutinador

Listas são sempre um problema. Mas contrariando orientações mais sensatas, decidi montar minha relação dos melhores discos de todos os tempos. Nesse cânone pessoal e intransferível, no entanto, a relação não é fechada, mas dinâmica. Mesmo porque muitos dos melhores discos de todos os tempos ainda não foram gravados, tenho fé. Assim, minha lista começa com os cinco melhores discos de todos os tempos. Na semana que vem, serão os dez; na semana seguinte, os quinze; e assim por diante até sabe Deus quando. Acho que é mais justo com a história. E dá para passar um bom tempo brincando de escrutinador.

A brincadeira começa no post seguinte.

P.S. E também aceito sugestões.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

O uísque de Waldick

“O Frank Sinatra vem ao Brasil, canta com seu copo de uísque na mão, todo mundo acha lindo. Agora, se o Waldick toma seu uisquinho, aí ele é um cachaceiro!...”. A frase de Waldick Soriano foi lembrada por Zeca Baleiro em sua coluna na revista Istoé. O texto me chamou atenção para uma distorção que pauta o debate sobre música popular no Brasil. Artistas como Waldick Soriano, eminentemente popular desde um tempo em que não havia pirotecnias de marketing para promover alguém à condição de ídolo, são apreciados hoje sob um jogo de luz cult que transforma em heróis cantores outrora classificados como brega. Esse mesmo mecanismo iridescente - que vem acompanhado de discos-tributo, DVD, biografia, etc - redimiu, no altar do mercado, gente como Odair José, Fernando Mendes, Reginaldo Rossi, entre outros.

A questão é que o debate sobre o que é "brega" e o que é "chique" - ou outros termos que evidenciem a mesma dicotomia - na música brasileira é absolutamente vazio e apenas legitima uma pulsão teórica que vai reafirmar o mercado como senhor de todos os caminhos e conceitos. Poucos cantaram como Sinatra, mas poucos também cantaram com o vozeirão de Waldick. Os dois foram "malandros" e sustentaram seus personagens até o fim da vida. O principal produto que vendiam, a canção, era bem resolvida tanto no trabalho de um quanto no de outro. E o mais importante: a rigor, as letras cantadas por Waldick e Sinatra estão, na média, absolutamente niveladas, falam da dor e da delícia de ser homem, com iguais pitadas de chauvinismo, arrogância e grosseria em ambos os casos.

O livro Eu não sou cachorro não, de Paulo César de Araújo - o mesmo autor da biografia-problema de Roberto Carlos - tentou redimir ídolos como Waldick e Paulo Sérgio dentro da história oficial da MPB. E trouxe uma série de "revelações" difíceis de engolir para quem se acostumou a entender a história da nossa música apenas do ponto de vista dos nossos medalhões. No entanto, não conseguiu ir além da dicotomia brega/chique que deixa a conversa meio embeiçada. A grife não importa. O poder de comunicação da música costuma vazar pelo ladrão dos rótulos.
Baleiro erra feio ao escrever que Waldick talvez seja o mais brasileiro dos artistas brasileiros. Justamente porque sua música não é a mais brasileira. A música brasileira será sempre muito mais rica e surpreendente do que a medida do sucesso de fulano ou do poder de comunicação de cicrano. Esteja ele tomando o uísque do Waldick ou de Vinícius de Moraes. No entanto, Zeca acerta na mosca quando afirma que o cantor de "Eu não sou cachorro não" é uma face do Brasil que o Brasil não quer ver, que não reconhece como legítima, que folcloriza para reduzi-la.

Em resumo, é a profunda confusão em torno do mito "povo" - desde os tempos do CPC, inclusive - que esculhamba qualquer tentativa séria de levar adiante a discussão sobre música no Brasil. Daí porque limitar o debate ao fla-flu do brega x chique não vai nos levar a canto nenhum.
Um brinde, Waldick!

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Machado e a crise


"Não há bancos eternos. Todo banco nasce virtualmente quebrado; é o seu destino, mais ano, menos ano".

"As pessoas foram crianças, não esqueceram decerto a velha questão que se lhes propunha, sobre qual nasceu primeiro, se o ovo, se a galinha. Eu, cuja astúcia era então igual, pelo menos à de Ulisses, achava uma solução ao problema, dizendo que quem primeiro nasceu foi o galo. Esta semana lembrei-me do velho problema insolúvel. Com os olhos no chão, repeti o monólogo de Hamlet, perguntando o que nasceu primeiro, se a baixa do câmbio, se o boato. Se ainda tivesse a antiga astúcia, diria que primeiro nasceram os bancos".

"O mal do câmbio parece-se um pouco com o da febre amarela, mas, para a febre amarela, a magnésia fluida de Murray, que até agora só curava dor de cabeça e indigestões, é específico provado neste verão. (...) Que magnésia há contra o câmbio? Que Murray já descobriu o modo certo de acabar com a decadência progressiva do nosso triste dinheiro?"

Os trechos acima foram escritos por Machado de Assis em sua coluna "A semana", no jornal "Gazeta de notícias", na virada do século XIX para o século XX. Como se percebe, certas coisas permanecem até nossos dias: a genialidade do Bruxo do Cosme Velho e o cinismo de certas instituições financeiras.


Quem ferra o touro?


Deixa ver se eu entendi. O panfleto fascista chamado Veja saudou o pacotaço de U$ 700 bilhões que Bush ia colocar no colo dos banqueiros e agiotas quebrados de Wall Street e setenciou que o Governo Lula, a bem do Brasil, tinha, diante da crise, de parar com a "gastança pública" e apertar novamente o nó do superávit primário. Bom, a barrigada da Veja foi antológica: o Congresso americano disse não e o Tio Sam acabou sem socorrer ninguém. Ponto para a Carta Capital desta semana que colocou a metáfora no seu devido lugar. Ainda assim, a revista dos Civita saudou o banditismo do cassino financeiro mundial como o injetor de liquidez responsável pelo crescimento de países como o Brasil. E mandou o presidente repensar medicinalmente o "intervencionismo" do Estado no Brasil e seus "gastos". Naturalmente, a revista esqueceu de se referir ao Proer, à privataria tucana e à compra da reeleição do presidente FHC nos balcões do Congresso como evidências deste crescimento financiado com capital especulativo devidamente segurado por grana pública.

Sei não, mas depois que o delegado Protógenes, o juíz de Sanctis e o superintendente Paulo Lacerda foram eleitos "culpados" pela cobertura do episódio Daniel Dantas, é capaz da fatura da escumalha engravatada de Nova York estourar mesmo no colo de Lula e da esquerda latino-americana. Enquanto isso, o touro de Wall Street (foto) vai seguir sem ser ferrado. Eita imprensa!

Desabafo do dia


"Cada jornal e revista faz questão de ter uma entrevista exclusiva. Mas a pergunta é coletiva. Se eu pudesse, distribuía uma apostila com respostas para dez perguntas. O que mais as pessoas quisessem saber, aí eu dava uma exclusiva. Só que assim ninguém quer. Além disso, para não privilegiar nenhum veículo, os CDs chegam às redações no fim de um dia e as entrevistas são já no dia seguinte. Então, qualquer análise tem que ser rápida e, muitas vezes, superficial. Gostaria realmente de provocar uma reflexão sobre isso porque é um esquema ruim para o jornalista, ruim para o leitor, ruim para o jornal e ruim para o artista". Marisa Monte, em entrevista ao jornal O Globo no último domingo.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Salgadinho do dia


"Calma que nós somos muito novos!"
Ronaldo Salgado (foto), professor, jornalista, guru e amigo querido, sobre situações em que se precisa decidir entre a pressa e o vagar

Pregnância do dia


"A cultura norte-americana, com sua forte pregnância classificatória, insiste muito na separação entre 'art' e 'entertainment'. Simplificando: se é arte, é chato, se é gostoso, não é arte. Esse jogo preconceituoso é péssimo: ele faz engolir gato por lebre e recusar lebre por gato. Há certas obras que são apaixonantes, mas consideradas difíceis. É que o espectador não encontrou as boas chaves para elas. Procurá-las é um desafio: dificuldade não quer dizer tédio, mas estímulo. As artes foram feitas para oferecer prazeres dos tipos e gêneros diversos. Se eu me aborreço, é que alguma coisa está errada".

Jorge Coli (foto), crítico de arte na coluna Ponto de Fuga do caderno Mais!, da Folha

Moyseis Marques


Samba do bom, sem frescura. Uma divisão inacreditável. O nome do homem é Moyseis Marques. O Moyseis se escreve assim mesmo: batismo do cantor, do compositor e do disco de estréia. Pra falar dele é simples: canta muito! Mais um da nova geração da Lapa: Pedro Miranda, Gallotti, Tira Poeira, Anjos da Lua, Casuarina, essa rapazeada boa que vai levando o samba adiante com muito talento, garra e respeito.
Meu amigo Thales Catunda me ligou outro dia de Brasília me perguntando o nome de um samba que ele estava ouvindo por lá, "é um que fala nos nomes das favelas". Pois o nome é esse mesmo: "Nome de favelas", samba do Paulo César Pinheiro que abre o disco. O Elton Medeiros dá uma canja no disco, em "Quatorze anos", do Paulinho. Dois "Gordurinhas" pra cá, dois "Wilson Moreiras" pra lá e o homem registrou a impagável "Meu enxoval" (numa "suíte" que tem também "Falsa Patroa") e "O vendedor de caranguejo", do primeiro; e "Mocotó do Tião" e "Fidelidade Partidária", do segundo. Essas últimas, aliás, dois carimbos da parceria com Nei Lopes.
Jackson do Pandeiro ia ficar morrendo de orgulho de ver um cabra ter tanto suingue na voz: "Estou dormindo ao relento, valei-me nossa Senhora!/ O meu travesseiro é o Diário da Noite/ E o resto do corpo fica na última hora".
Tem também "Roda" do Gilberto Gil, onde Moyseis dá outro show de divisão. Tem uma coisa linda chamada "Minha Verdade", do Délcio Carvalho e da Dona Ivone Lara: "Eu tenho a minha verdade/ Fruto de tanta maldade que já conheci/ Me deixa caminhar a minha vida livremente/ O que desejo é pouco/ Pois não duro eternamente". O samba de breque se faz presente com "Baile na Piedade", do Jorge Veiga. E tem ainda uma do Luiz Carlos da Vila e do Sereno, "Profissão".
O resto do disco é da lira do cara: "Samba, ciência da graca", "Palpite de gafieira", "Receita de Maria", "Prece à inspiração" e "Branda Liberdade". Quando a coisa tá no sangue, é foda: até o fim da adolescência, o Moyseis mal sabia quem era Paulinho da Viola, Candeia, Gil, Elton Medeiros, Paulo César Pinheiro e outros lordes do gênero.
Discão!

Abaixo, o homem em ação...

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Baltar, a dama do novo samba

O samba não pára de frutificar grandes cantoras. Mariana Baltar, uma carioca de Copacabana de voz elegante e fina estampa, é mais uma delas. Depois de gravar, em 2005, seu primeiro CD, Uma dama também quer se divertir (Zambodiscos), ela foi indicada ao prêmio Tim de música de 2007 na categoria Revelação. Não levou e dizer que merecia talvez soasse como uma injustiça com seus pares de geração, como Mariana Haydar, Roberta Sá e Luciane Medeiros. Afinal, apesar de longe da mídia (a maioria), as novas cantoras de samba forma um time coeso que tem algumas características em comum, a exemplo do apuro técnico da emissão e da escolha pouco previsível do repertório. No caso particular de Baltar, a voz é de uma leveza e de um vigor muito especiais. No CD, o repertório foge do lugar-comum, seja na seleção ou mesmo nos arranjos, assinados por Evandro Lima, Alfredo Galhões, Paulão 7 Cordas e Eugenio Dale. Escoltada por esses arranjadores, Mariana vai ter com capítulos menos badalados - mas extremamente interessantes - da obra de Assis Valente ("Deixa Comigo"), João Bosco ("Bala com Bala"), Jorge Ben Jor ("Zumbi"), Cartola ("Fita meus olhos") e Billy Blanco ("O piston do Barriquinha"). Vale destacar também a versão - uma das melhores que a música já ganhou - de "Pressentimento", de Hermínio Bello de Carvalho e Elton Medeiros) e a grata surpresa de "Vai com Deus", um dos melhores sambas de Teresa Cristina (ao lado de João Callado) e que tem todo o jeito de um daqueles sambas arrasa-quarteirão da Velha Guarda da Portela.

Abaixo, uma canja da moça.


segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Estamos de volta

Caríssimo(a)s,
Sei que a crise econômica mundial se explica em parte pelos dias de ócio deste blog, que, por sua vez, se explicam por uma mudança de endereço que vem consumindo todas as energias deste missivista. Portanto, o Talabarte informa que está retomando suas atividades normais como forma de apaziguar os ânimos da ciranda financeira, de Wall Street ao Beco da Poeira - onde a quebra do Lehman Brothers, a aquisição do Merril Lynch, o desmantelamento da AIG e o pacote trilhonário do Bush repercutiram de forma dramática no preço de comoditties como a avoante, a buchada e o DVD ao vivo das Tigresas Cover. Em breve, novos posts.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Unanimidade do dia

"Pouco a pouco, o copy desk acabou fazendo do leitor outro idiota da objetividade. A aridez de um se transmite ao outro. Eu me pergunto se, um dia, não seremos nós, cem milhões de copy desk. Cem milhões de impotentes de sentimento".
Nelson Rodrigues, A Desumanização da Manchete

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Uma nova Esperanza

Ela é linda. Toca contrabaixo pra valer - não é só pose. Canta divinamente bem - o que é ainda mais difícil se combinado com o toque do contrabaixo. É compositora de rara felicidade melódica. E ainda tem um nome angelical: Esperanza. Esperanza Spalding. Uma nova diva do jazz e uma nova paixão na minha discoteca. A presença de "Ponta de Areia", do Milton e do Fernando Brant; e "Samba em prelúdio", do Vinícius e do Baden; no repertório de seu disco de estréia (Esperanza) me chamou atenção. Mas confesso que fui escutar meio receoso de me deparar com mais uma daquelas milhares de cantoras negras que carregam no oversinging - aquele maneirismo exagerado, cheio de gritos e miados, que virou uma praga entre a nova geração de intérpretes norte-americanas. Pelo contrário. Esperanza canta e encanta sem exibicionismos - mesmo seus scat singings conseguem equilibrar sobriedade e exuberância - e transita sem aperreios pelo português e pelo espanhol. Além de fazer de sua voz mais um instrumento na química dos arranjos, dialogando com seus músicos numa sintonia muito fina. 

Segue a diva: