O funil da ampulhetaapressa, retardando-a,
a queda
da areia.
Nisso imita o jogo
manhoso
de certos momentos
que se vão embora
quando mais queríamos
que ficassem.
José Paulo Paes, em Elogio da Memória


Uma paulada inclemente na moleira. Foi assim que me soou pela primeira vez - e ainda continua a soar - a obra do austríaco Arnold Schoenberg (1874-1951). Inventor do dodecafonismo, ele estilhaçou a secular estrutura tonal da música ocidental, criando uma arquitetura musical completamente diferente - para uns, absolutamente abstrata e intangível; para outros rigorosa e cristalina. Para Júlio Medaglia, por exemplo, ela é as duas coisas ao mesmo tempo: "Schoenberg provocou um envenenamento na engrenagem das formas, levando-as ao superlativo da expressividade, ao conflito, a uma neurótica e impulsiva subjetividade onde o indivíduo situava-ase como centro absoluto, intérprete e juiz do universo", define o maestro em seu livro Música Impopular. Para mim, ela é permanentemente provocadora e jamais soa gratuita. Cerebral sem perder seu lastro de lirismo. Aliás, foi o próprio Schoenberg quem declarou certa vez que: "Aquele que não possuir o romantismo em seu coração é um ser humano decrépito".
No encarte do monumental A Love Supreme (1964), John Coltrane explica a motivação espiritual que cercou a gravação do disco. O saxofonista, que, no fim da década anterior, lançara o álbum Giant Steps, onde se afirmara como band-leader, solista e criador original; e passara a desbravar novos horizontes para o jazz, encerrava a primeira fase de sua revolução musical e voltava sua técnica para a exaltação de temáticas místicas. Sempre munido da impressionante extensão sonora de seu saxofone, que lhe permitia a mesma intensidade de som num arco que ia da nota mais grave que se pode obter no instrumento até aquela região agudíssima, umas três oitavas acima. "Durante o ano de 1957, experimentei, pela graça de Deus, um despertar espiritual que me levaria a uma vida mais rica, mais plena, mais produtiva. Naquele momento de gratidão, eu humildemente pedi que me fossem dados os meios e o privilégio de fazer os outros felizes por meio da música", ele escreveu. Os bastidores de gravação do disco - assim como a repercussão que o LP teve na carreira de Coltrane, que passou à condição de santo na Igreja Africana Ortodoxa de São John Coltrane em São Francisco, na Califórnia - são contados pelo escritor Ashley Kahn no livro A Love Supreme - A criação do álbum clássico de John Coltrane, que a editora Barracuda colocou nas livrarias.
Na música e na biografia de Rolando Boldrin, repousa mais do que aquilo que alguns pesquisadores costumam chamar de "Brasil profundo", mas um efetivo projeto de nação, mais delicada, mais solidária e mais humana. Mais orgulhosa de sua própria grandeza. O Brasil que esse paulista projeta em seus discos e em seus programas de TV, no entanto, tornou-se um País irreal, milhas e milhas afastado do Brasil real, oficial, que optou por se perder de si mesmo, por cretinizar sua alma musical. Violeiro, disco de 1982, é um dos grandes momentos na discografia de Boldrin. Aqui, ele tem a companhia de então remanescentes de duplas caipiras famosas, como Ranchinho, Cascatinha, Corumba e Bentinho. Entre uma e outra dolorida moda de viola, como "Violeiro Triste" e "Chapéu de paia"; Boldrin interpreta algumas jóias do melhor humor caipira, como "Balagulá" e "O sapo no saco", regravada por Pedro Miranda. Em resumo: um belíssimo 3x4 da obra de um artista que construiu, como poucos, um retrato grandioso para o País.
No famigerado ano de 1983, quando a economia brasileira foi à lona, um lançamento de música instrumental tornou-se um divisor de águas no Brasil. Tanto por reafirmar a riqueza de uma tradição que parecia se esfumaçar ante o avanço dos teclados, baterias eletrônicas e sintetizadores; quanto por retrabalhar os códigos do nosso processo musical de maneira absolutamente original até então. Capitaneada pela virtuose de Joel Nascimento, a turma da Camerata Carioca lançava o disco Tocar, um libelo a favor da música brasileira que reuniu alguns dos principais nomes do choro e da música erudita no País: além de Joel (bandolim), Joaquim Santos e Maurício Carrilho (violões), Luiz Otávio Braga (violão de 7), Henrique Cazes (cavaquinho), Beto Cazes (percussão) e Dazinho (sax e flauta). "É difícil destacar detalhes valorosos do disco, pois são muitos, mesmo assim valem citação especial: a balançadíssima participação de Radamés Gnatalli no 'Remexendo', os belíssimo arranjos de Maurício Carrilho - 'Fugata' e 'Choro de mãe' -, Luiz Otávio Braga - 'Terna saudade' e 'Lenda do caboclo' - e o timbre especial do sax-alto de Dazinho no solo de 'Valsa Triste'", lembra Henrique Cazes, no encarte da edição do disco em CD.
Um pouco antes da nova geração do samba da Lapa começar a ganhar prestígio nacional - a reboque sobretudo dos êxitos de Teresa Cristina -, o portelense Marquinhos de Oswaldo Cruz já pontuava como um nome valoroso do gênero. Em 2000, ele estreava em disco com o consistente Uma Geografia Popular, chamando atenção tanto para seu trabalho como compositor quanto para a tradição de grandes sambistas localizada na latitude lírica entre Madureira e Oswaldo Cruz. Seis anos depois, Marquinhos voltou à carga com um grande disco: Memórias de minh'alma, que saiu pela Cumba Discos. Depois de muito pelejar em lojas de discos - reais e virtuais - finalmente consegui meu exemplar. Valeu cada dia da espera. Marquinhos é dos raros compositores que sabem usar a poesia - em seu caso acompanhada de uma riqueza melódica e harmônica que faz lembrar os grandes mestres portelenses - para esgrimir contra a vida dura dos trabalhadores suburbanos numa metrópole como o Rio de Janeiro. "Os olhos não podem ver", belo samba que abre o disco, antecipa esse sentimento de lírica resistência que dá o tom de boa parte do CD: "Um velho banco, antiga estação / Vou sentindo o que os olhos não podem ver / Nesta marmita, eu carrego os meus versos / Que alimentam de emoção meu dia a dia".
"Onde estava todo esse dinheiro (desbloqueado para resgatar os bancos)? Estava muito bem guardado. Logo apareceu, de repente, para salvar o quê? vidas? Não, os bancos. Marx nunca teve tanta razão como agora. (...) Sempre estamos mais ou menos cegos, sobretudo, para o fundamental".
Confirmada a vitória de Kassab em São Paulo, é possível que a desastrada estratégia da campanha de Marta Suplicy - que quis saber de certas intimidades da vida pessoal do demista, como se o então candidato tinha filhos ou se era casado - acompanhe a ex-ministra por muito tempo, a exemplo do famigerado bordão "Relaxa e goza". No entanto, é sempre bom ficar atento para certos pesos e certas medidas com que a grande imprensa costuma embalar algumas coberturas, em especial o noticiário envolvendo protagonistas à esquerda dos interesses da Fiesp, da Febraban e quejandos.
É de Décio Pignatari, a observação segundo a qual, em nossos dias, a resposta esterelizante - "não vale a pena" - parece substituir a pergunta criativa - "e agora, que fazer?". No campo da música popular, a maior parte de nossos artistas parece engessado pela primeira e são raros os que enfrentam a segunda de maneira franca. Entre estes, são ainda mais raros os que conseguem propor algo efetivamente interessante sem cair em certos maneirismos; dos quais um dos mais perigosos, a meu ver, é aquele que vê na mistura aleatória de linguagens, no cruzamento atabalhoado de informações, uma tábua de salvação estética. Em geral, eles atuam como o cozinheiro que se encanta com uma enormidade de ingredientes para sua refeição, decide usar todos e, por fim, acaba por anular as particularidades de cada sabor, as nuances de cada elemento usado no prato, servindo ao seu desafortunado cliente uma comida que não tem gosto de nada.
Primeiro disco de jazz instrumental a vender mais de um milhão de cópias, Time Out (1959), do mitológico quarteto de Dave Brubeck, registra a melhor fase do grupo. Aqui, Brubeck assume de vez as informações eruditas que contagiaram sua música e que, apesar do nariz torcido de parte da crítica mais ortodoxa, fizeram cravar a melodia de músicas como "Take five" e a frenética "Blue rondo a la turk" no imaginário dos fãs de jazz. "Take Five", aliás, chegou a quinta colocação na Billboard na categoria música adulta contemporânea. Seguido de Paul Desmond, Joe Morello e Gene Wright, Brubeck, a partir da utilização de métricas estranhas ao jazz mais tradicional (em especial a valsa), dá saltos corajosos nos improvisos sem perder a capacidade de comunicação com o ouvinte. Em 2005, o disco foi eleito pela Biblioteca do Congresso Norte-Americano como um dos 50 álbuns que formariam o Registro Nacional de Gravações dos Estados Unidos. Ano que vem, Time Out completa 50 anos, mas continua soando surpreendentemente moderno. Um ótimo ponto de partida para quem quer ingressar no universo do jazz e um fascinante ponto de chegada para muitos músicos.
Nas eleições para a prefeitura do Rio de Janeiro, Gabeira pode até não sair vitorioso, mas já conseguiu a façanha de reunir uma constelação da MPB em torno de sua campanha. Ao todo, os marketeiros do Partido Verde usaram 13 músicas, cedidas por seus respectivos autores ou representes, além do jingle "O Rio de Gabeira". A informação é do blog do Ricardo Noblat.
Acabo de escutar Ponto Enredo, novo disco do Pedro Luis e a Parede. Trata-se do trabalho mais vigoroso do grupo carioca. A produção de Lenine explica em parte esse vigor. O músico pernambucano tem uma assinatura preciosa ao combinar timbres - ora espessos, ora bem pesados - de guitarras, cavacos distorcidos e contra-baixos com a riqueza dos ritmos afro-brasileiros, preservando a delicadeza de temas e letras que remetem, em sua maioria, ao universo religioso da umbanda e do candomblé.
O samba perdeu Luiz Carlos da Vila. Discos-tributo e homenagens póstumas despontarão em breve, como sói acontecer nessas horas. E é bom que venham mesmo. O problema é repisar a velha narrativa do compositor popular de enorme talento que morre em dificuldades e sem o devido reconhecimento à sua obra. Eita Brasilzão!
Não recordo o autor da frase, mas lembro que, na primeira vez que assisti a Underground - Mentiras de Guerra (1995), o comentário estampado na capa do VHS - segundo o qual aquele tratava-se do filme de guerra que Fellini não fizera - foi decisivo para me fazer encarar as quase três horas do longa-metragem do iugoslavo Emir Kusturica. Antes de mais nada porque sempre me pareceu que Fellini havia feito, sim, filmes de guerra. Ou pelo menos contemplado, a seu modo, o tema da guerra. Em particular, em La Nave Va e Ensaio de Orquestra. Mas depois de assistir ao filme do iugoslavo, percebi que não era apenas Fellini que não havia filmado a guerra como Kusturica. Na verdade, nenhum outro diretor havia feito um filme sobre a guerra - ou sobre o desatino da guerra - como Underground.
"Se você chegar a um país e quiser saber da liberdade política que têm seus cidadãos, basta ler os jornais desse país. Se dizem que o governo é admirável, seus mentores maravilhosos, dignos e capazes, é porque os governantes são déspotas que liquidaram com a liberdade de expressão. Agora, se os jornais dizem que os governantes são incapazes, hipócritas e estão levando o país à ruína, o país está, pelo menos politicamente, muito bem".
Quase todo brasileiro - das mais diversas regiões do País - tem um samba para chamar de seu. Nem tanto uma música em especial, mas parte de um repertório ou de um determinado gênero de samba que consome e crê legítimo, puro, definitivo. Se essa onipresença revela a força seminal com que o ritmo se espalhou pelo Brasil, dialogando e assumindo traços que refletem as diferentes soluções culturais de cada Estado; também irriga um debate que, no mais das vezes, leva à segregação, à desinformação e ao bairrismo. Assim é que, para determinados ouvintes, samba é sinônimo de partido-alto ou de samba de enredo. Confunde-se também com o "pagode", termo que recebeu diversos e "equivocados" usos ao longo dos anos. Para outros, no entanto, samba "bom" é aquele que reflete uma sofisticação e um elitismo quase bossanovistas. Alguns ainda elegerão como autêntico o samba de certas manifestações caricaturais ou folclóricas espalhadas por ruas e terreiros do País.





Caríssimo(a)s,
Ela é linda. Toca contrabaixo pra valer - não é só pose. Canta divinamente bem - o que é ainda mais difícil se combinado com o toque do contrabaixo. É compositora de rara felicidade melódica. E ainda tem um nome angelical: Esperanza. Esperanza Spalding. Uma nova diva do jazz e uma nova paixão na minha discoteca. A presença de "Ponta de Areia", do Milton e do Fernando Brant; e "Samba em prelúdio", do Vinícius e do Baden; no repertório de seu disco de estréia (Esperanza) me chamou atenção. Mas confesso que fui escutar meio receoso de me deparar com mais uma daquelas milhares de cantoras negras que carregam no oversinging - aquele maneirismo exagerado, cheio de gritos e miados, que virou uma praga entre a nova geração de intérpretes norte-americanas. Pelo contrário. Esperanza canta e encanta sem exibicionismos - mesmo seus scat singings conseguem equilibrar sobriedade e exuberância - e transita sem aperreios pelo português e pelo espanhol. Além de fazer de sua voz mais um instrumento na química dos arranjos, dialogando com seus músicos numa sintonia muito fina.