terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Joshua Redman



O virtuosismo, a surpreendente criatividade para melodias e arranjos, e uma paixão que transpira a cada compasso fazem de Redman um de meus herois de uma geração que sacodiu o chamado "west coast jazz" nos anos 90. Essas marcas pontuaram seu trabalho não só naquele momento, mas ainda hoje fazem de Redman um dos compositores e intérpretes mais intensos do cenário do jazz. Independente da "coast" em questão...

Mais sobre o cara, aqui.


 

Desejo de Natal*



Meu caro Papai Noel, essa nossa conversa é, decididamente, uma impossibilidade. Já há muito tempo, não acredito em você. Se é que algum dia, convenhamos, acreditei. Sinceramente, não lembro. Eu não acreditando, você, em contrapartida, pode se considerar desobrigado de me considerar.

Afinal, como considerar alguém que não acredita em você? E não falo aqui no sentido de lhe achar honesto ou mentiroso. Mas de lhe achar crível, de lhe entender como uma possibilidade, um devir. Não, meu caro. Acreditar em você, numa altura dessas, é algo que realmente não convém.

A nosso favor, e a favor dessa missiva, entretanto, essa desconsideração mútua nos liberta de qualquer tipo de pudor ou melindre e nos leva à franqueza completa um com o outro. A franqueza, afinal, é a medida de nossa indiferença em relação ao outro.

Para mim, você é, como o Cavaleiro Inexistente de Italo Calvino, alguém que, perdão pela redundância, não existe e, pior, que não sabe muito bem o que quer ser. Qual o Agilulfo derivando-se entre a banalidade de seus atos supostamente nobres e importantes, supostamente heroicos, te vejo como um cavaleiro errante a derivar-se numa noite onírica, mítica, arrebatado por tantas falsas alegrias e por tanta hipócrita solidariedade.

O Aniversariante do dia deve também estar muito incomodado com essas cínicas sentimentalidades que brotam ao fim de cada ano – mas com Ele a conversa é mais complexa e sofisticada. Com você, o papo é reto.

Tu vais ficar terceirizando a culpa alheia até quando? Se eu fosse você, pegava tuas renas e seguia na contramão dos espíritos para jogar toda essa hipocrisia de volta na cara dos caretas. Essa turma que dá carrinho e bonequinha pra criança carente no fim do ano, mas é a favor da redução da menoridade penal e da pena de morte. Que reclama da segurança, mas que, no dia-a-dia, se lixa para o que acontece nas nossas periferias.

Essa turma que fala que o Brasil é um país injusto, mas adora criminalizar movimento social. Que brinda o julgamento do mensalão, mas conta vantagem por sonegar imposto e não sabe se socorrer sem privatizar o que é público. Que defende a democracia, mas compra voto.

Que diz que ama ou odeia Fortaleza, mas não sabe da Cidade mais do que seus muros e engarrafamentos.

Como diria Tom Zé, é uma turma que faz suas orações uma vez ao dia e depois manda a consciência, junto com os lençóis, para a lavanderia. Todo ano é a mesma coisa. E aí, no fim das contas, na hora do aperto final, lá vem você socorrer os falsos moralistas. O velhinho trazendo luzinhas, trenós e presentinhos pra tudo ficar lindo. Seria apenas engraçado, não fosse melancólico. Ou trágico mesmo. Você realmente não existe!

Cazuza pedia piedade. “Senhor, piedade!” Pra essa gente careta e covarde. Eu peço franqueza. Em nossa cidade, em nossos empregos, em nossos círculos de amizade, em nossas famílias. Em nossos amores. É duro, amigo, mas é assim.

A franqueza também é a medida de nosso compromisso em relação ao outro. É a medida da nossa coragem.

* Texto publicado no jornal O POVO - edição de 24.12.2012


terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Fascistada reunida

Gilberto Dimenstein menstruando na FdSP sobre um baiano assumir a secretaria de cultura de Sampa. "São, São Paulo, quanta dor!" E aí alguma coisa acontece no meu coração, pra citar outro baiano que de lá sabe tanto. E de nós sabe tanto também, por vias tortas. Penso o quanto estamos retrocedendo. E fico inquieto, aflito mesmo, com esse caldo neo-conservador-religioso-babaca-direitista-intolerante a nos levar a algo muito pior. Fascistada reunida. Do Morumbi a Atenas, via Fortal também. Fascismo de pobre dura pouco? E o cara fica naquela de "meu pai é cearense, minha mãe é baiana, meu avô é alagoano...". É que nem o lance do "tenho tantos amigos homossexuais". Preconceito recalcado. Alô Joaquinzão, "menino bom"! Pondo os lençóis da consciência da Casa Grande na lavanderia, não é malandro? Nessa altura do jogo, rapá?! Esse papo já tá qualquer coisa... Por ora, na mesma Folha, Xico Sá repõe alguma lucidez ao big picture.

http://xicosa.blogfolha.uol.com.br/2012/12/11/sp-precisa-sim-importar%C2%B4-gente-de-toda-parte/

domingo, 25 de novembro de 2012

Mr. P.C

Paul Chambers, o Mr. P.C. da música de Coltrane.

Alta Ajuda


Entrevista publicada com o ensaísta Francisco Bosco (jornal O POVO, caderno Vida & Arte, edição de  10 de novembro de 2012

O critério é ético. No sentido colocado por Espinosa, da ética como um modo de vida destinado a “encontrar os afetos da alegria e evitar os da tristeza”. Foi, portanto, mirando a alegria que Francisco Bosco escolheu os textos que compõem seu novo livro, Alta Ajuda, coletânea de ensaios publicada pela editora Foz. “Uma das tarefas de hoje é discernir entre certa euforia compulsória (do tipo animadores de auditório) e a verdadeira alegria, em presença da qual é a totalidade da vida que se afirma”, ele explica em entrevista ao O POVO. Munido desse compromisso, ele selecionou 35 textos – entre os mais de 200 ensaios publicados ao longo dos últimos seis anos em jornais e revistas de todo o país – nos quais percorre problemas e situações comuns do cotidiano com a sensibilidade analítica, a engenhosidade estilística e o repertório teórico que marcaram seus livros anteriores, como o ótimo Banalogias (2009). Doutor em teoria da literatura, o flamenguista Bosco encontrou em Barthes, objeto de sua tese na UFRJ, a principal referência para olhar o cotidiano entrelaçando grandes e pequenos temas: do esvaziamento das relações amorosas ao (des)prazer de viajar, da paixão pelo futebol às indiscrições do facebook. “Minha proposta é a de abordar com espírito filosófico os problemas da existência cotidiana, comuns a qualquer pessoa. A essa proposta, José Miguel Wisnik chamou, certa vez, de alta ajuda”, ele explica na apresentação do volume. “Conforme atesta o título do livro, assinei embaixo”.

O POVO - Qual a diferença entre o Francisco Bosco autor dos textos publicados em jornais e revistas e o autor que reescreveu “impiedosamente” – como você explica na apresentação - esses textos para o livro? Francisco Bosco - A felicidade da forma é perfeita; a da ideia, imperfeita. Quando se conquista a forma, ela é irretocável (um soneto de Shakespeare, um concerto de Mozart). Mas as ideias são sempre retocáveis, elas se aproximam infinitamente (da realidade? Da verdade?). Portanto a diferença entre as ideias que publico originalmente no jornal e o modo como elas aparecem no livro é que nesse último elas estão mais aprimoradas.

O POVO - Na apresentação do livro, você explica que há um critério ético para a seleção dos textos - no sentido dado por Espinoza, que entende a ética como um modo de vida destinado a “encontrar os afetos da alegria e evitar os da tristeza”. A alegria é uma força revolucionária para nossos dias? Francisco - Penso que existe sim um potencial revolucionário na alegria. O poder opera por meio do medo. O medo é uma forma de tristeza, como diz Espinoza, e a tristeza deixa os sujeitos sob controle. Mas uma das tarefas de hoje é discernir entre certa euforia compulsória (do tipo animadores de auditório) e a verdadeira alegria, em presença da qual é a totalidade da vida que se afirma.

O POVO - No ensaio “O Rei contra a realidade” (sobre as manias e a religiosidade de Roberto Carlos) você escreve que o idealismo religioso, seguido radicalmente, conduz a um recalque dos aspectos incômodos, porém constitutivos, da realidade. No Brasil, é evidente um acirramento de radicalismos de diversas ordens nesse campo. Qual a repercussão desse processo em nosso pensamento crítico? Francisco - Um dos modos de responder a essa pergunta é considerar que o fundamentalismo religioso é uma reação à angústia da liberdade, como diria Sartre. A época moderna é aquela do desmoronamento de todas as certezas. Ora, não é todo mundo que suporta um mundo aberto, pois é mais cômodo para o sujeito acreditar em princípios imutáveis e segui-los à risca. É uma forma perigosa de infantilidade e covardia, como se sabe. Penso que se deve lutar contra isso com todas as forças.

O POVO - Em sua origem, a imprensa libertou a educação do monopólio da Igreja, separando a figura do “homem de letras” da figura dos sacerdotes e fazendo o conhecimento circular para fora das bibliotecas dos mosteiros. Desde então, os meios de comunicação ajudaram a redefinir e a remanejar o papel do intelectual na sociedade. Quem precisa mais de quem em nossos dias: o jornalismo, dos intelectuais? Ou esses daquele? Francisco - Idealmente falando, imprensa e intelectuais cumprem a mesma função, fundamental para a democracia: fomentar o dissenso, propor novas ideias, impedir os excessos dos poderes constituídos. Na prática, a relação entre ambos é mais complicada. Um dos problemas é que o jornalismo passou a operar demais dentro de uma lógica da informação (superficial e de entretenimento), enquanto os intelectuais vivem sob a lógica do pensamento, que é densa, lenta, angustiosa. Eu, que me vejo constantemente entre essas lógicas, sei bem o quanto elas se estranham.

O POVO - Harold Bloom defende que “a verdadeira utilidade de Shakespeare ou Cervantes é aumentar nosso próprio eu crescente. O diálogo da mente consigo não é basicamente uma realidade social. Tudo o que podem nos trazer é o uso correto de nossa solidão, cuja forma final é nosso confronto com a mortalidade”. Você nada contra essa corrente e parece propor não a solidão, mas os encontros, a “afetividade da alegria”. Estou correto? Francisco - Eu concordo que a utilidade do cânone é “aumentar nosso eu crescente” (embora a frase seja um pouco redundante). Mas penso que isso tem consequências para a “realidade social”. Prefiro viver numa sociedade cheia de sujeitos pensantes, do que numa repleta de cabeças opacas. Isso tem consequências para a vida social. E talvez pudesse ter um impacto forte sobre o que considero a maior tragédia do Brasil, que é não se pensar coletivamente, como uma verdadeira sociedade, cujo bom funcionamento depende do respeito mútuo, do engajamento de todos.

O POVO - Teu trabalho como escritor é inegavelmente marcado por tua formação universitária e, no entanto, teus ensaios conseguem quebrar um tipo de postura insular que é recorrentemente denunciada entre os intelectuais da academia. Qual é o teu olhar para essa relação entre o ambiente universitário e o mundo fora da universidade? Francisco - Penso que é muito importante que a Universidade cumpra um papel, digamos, impopular: que nela se realizem pesquisas árduas, linguagens difíceis, pensamentos ambiciosos. E também é importante que haja ensaístas como eu, que proponham uma disseminação de ideias em maior escala quantitativa. A Universidade hospeda o risco da esterilidade e de uma hipertrofia teórica afastada da realidade. Mas escritores como eu convivem com o risco de limitar a intensidade de suas ideias por conta da proposta de um diálogo mais amplo. Hoje, especialmente, é preciso tomar cuidado com certa ideia de democratização: as experiências da arte e do pensamento podem deixar de ser elas mesmas quando submetidas a esse processo. E aí de nada vale democratizar algo que não vale nada.

O POVO - Por fim, como alguém tão “lúcido” pode ser flamenguista? (A pergunta foi feita em tom de brincadeira, mas o próprio Bosco insistiu para que fosse publicada) Francisco - Todo sujeito é feito de identificações, algumas “primitivas”, como dizia Freud, e outras formadas ao longo da vida (amigos, ideias etc.). Essas identificações estão sujeitas a mudanças: mudamos de ideias, de amores, de amigos. Só não mudamos de time. A identificação com um time é primitiva e costuma ser mediada pelo pai. Isso explica que a escolha de um time nada tem a ver com lucidez ou racionalidade. Como de resto todas as identificações primitivas e boa parte das que ocorrem na vida adulta. O problema, no caso, não é a falta de lucidez, mas a impossibilidade de romper a identificação. Nada é mais estranho e interdito para nós do que romper a identificação com um time: nem mudar de partido político, nem de religião, nem mesmo de sexo.

SERVIÇO Alta Ajuda O quê: novo livro de Francisco Bosco Editora: Foz (160 páginas) Quanto: R$ 34,90

Trecho 
“Roberto Carlos , então, descobre-se impedido por essa força estranha no seu psiquismo de falar e cantar certas palavras. (...) Na canção “É preciso saber viver”, o verso ‘se o bem e o mal existem’ chegou a ser substituído por ‘se o bem e o bem existem’. Não se trata de uma mera troca de palavras: é toda a dimensão negativa da experiência humana que é recalcada. O estreitamento da realidade tem como consequência necessária o estreitamento da arte. O que havia em Roberto , e que o fez merecer o título de Rei da juventude, e depois simplesmente Rei, na medida em que suas canções traduziram a experiência humana madura nos anos 70, o que havia, e se perdeu, era a aceitação da realidade. Não se pode ser artista recusando-se a olhar para ela”.

terça-feira, 31 de julho de 2012

Dylan, um começo



Pouco mais de U$ 400 de custo. Apenas dois microfones – um para o violão e outro para a gaita e o vocal. Três dias de gravação. Nessas modestas condições, entre 20 e 22 de novembro de 1961, Robert Allen Zimmerman ocupou algumas sessões do estúdio A da gravadora Columbia para gravar seu primeiro álbum – que seria lançado apenas no ano seguinte (em março, nos Estados Unidos; e em julho no Reino Unido). O nome do disco era apenas o de seu pseudônimo: Bob Dylan. O trabalho era formado por 13 faixas, a maior parte das quais, canções tradicionais do repertório de country blues norte-americano - apenas duas eram composições suas. Há 50 anos, portanto, Zimmerman (ou Dylan) iniciava sua carreira discográfica, apresentando-se ao grande público como um intérprete dinâmico e original do cânone folk e dando as primeiras pistas do compositor genial e prolífico que mudaria a música e as atitudes na segunda metade do século XX.

Anos mais tarde, já com a carreira consolidada e com a imprensa em seus calcanhares, Dylan concedeu uma entrevista à revista Beat Magazine em que comentou sobre aquele início de carreira. “Se eu começasse pelo álbum um, lado um, eu poderia verdadeiramente ver Bob Dylan evoluir (ao longo de sua discografia)?”, perguntou-lhe o repórter. “Não, você veria Bob Dylan rir consigo mesmo. Ou veria Bob Dylan atravessando mudanças”, respondeu o compositor. De fato, a auto-indulgência nunca foi uma marca evidente nos trabalho de Dylan, que sempre preferiu a auto-ironia e a desmistificação, em especial quando confrontado com o estigma de guru intelectual de sua geração ou de porta-voz de alguma tradição musical.

Village
Nesse marco inicial de sua carreira, nesse “disco um” ao qual se referiu o jornalista Paul Jay Robbins, no entanto, é possível ouvir um Dylan ainda muito reverente ao universo musical que marcou sua formação. Se, hoje, o cantor é um setentão que soa velho e cansado em seus shows e em seus discos – mas que, apesar disso, consegue soar renovado em suas letras -, o Dylan de 20 anos era um artista que trazia interpretações renovadoras para um repertório que começava a soar cansado para a indústria musical da época.

“You´re no good”, a faixa de abertura do álbum, é a releitura de uma composição do lendário bluesmen Jesse “Lone Cat” Fuller. Bem-humorada, a versão de Dylan antecipa seu estilo vigoroso ao violão e à gaita. “Talkin´ New York”, uma composição própria, vem em seguida. Em meio a citações a Woody Guthrie, seu folk hero que dizia “matar fascistas com seu violão”, Bob esbanja vivacidade e astúcia relatando suas experiências na cena folk de Nova York, em especial do Greenwich Village, onde aportara em 1961, ainda como um jovem de classe média um tanto ingênuo vindo de uma pequena cidade do Meio-Oeste. O confronto com a competição e a sofisticação da metrópole marcariam de forma decisiva seus primeiros anos de carreira.

“In my time of dyin´” foi creditada a Dylan, mas o próprio encarte trata de desmentir o crédito ao relatar que ele não lembrava onde e quando ouviu esse blues tradicional pela primeira vez – Led Zepellin também gravaria a música no LP Physical Graffiti. Bob gravou arranjos seus para outras canções tradicionais da cultura folk, como “Pretty Peggy-O”, “Gospel Plow” e, principalmente, “Man of Constant sorrow”. Sobre essa última gravação, Brian Hinton, organizador de um excelente volume com a discografia comentada de Dylan (lançado pela Larousse), escreve: “A intensidade que Bob extrai deste antigo standard já o afastava dos pares que se apresentavam no Village”.

“Fixin´to die”, de Bukka White; “Highway 51”, de Curtis Jones; “See that my grave is kept clean”, de Blind Lemon Jefferson; e “Baby, let me follow you down”, de Ric Von Schmidt; completam o rol de tributos. Apesar da diversidade de referências, é Woody Guthrie o grande “homenageado” do disco. Para ele, Dylan compôs “Song to Woody”. “Dylan tinha ido a Nova York especificamente para a conhecer seu herói, que estava morrendo no Greystone Hospital”, escreve Hinton. “Bob canta com gravidade sincera, como uma despedida, num momento em que um novo mundo estava prestes a nascer; um mundo que Dylan ajudaria a moldar”.

Mudanças
As tradicionais “Freight train blues” e “House of the risin´ sun” – que ganharia dezenas de gravações e versões mundo afora - completam o repertório. Sobre essa última música, um lamento de uma prostituta narrado do ponto de vista feminino, ajudou Dylan (segundo ele próprio conta em sua Biograph) a encarnar o papel de outras pessoas em suas músicas.

Sobre o que era Nova York naquela época em que o disco foi lançado, o jornalista Howard Sounes, autor de uma biografia de Dylan, escreve: “Por volta de 1961, quando Bob chegou a Nova York, os turistas estavam descobrindo que muitos dos beatniks tinham ido embora e que no lugar deles havia uma geração de músicos jovens cantando música folk. A seriedade e a integridade da música folk agradou aos turistas que faziam questão de ir ao Village nessa época, em parte porque ela parecia estar em harmonia com os sentimentos a favor da transformação social nos Estados Unidos”.

Como a história tratou de mostrar, a integridade de Dylan não estava na persona do defensor radical do folk norte-americano. O próprio cantor, já em meados dos anos 60, tratou de desconstruir essa “responsabilidade”. Integridade, em seu caso, foi a honestidade com que lidou com seu próprio desejo de mudança. Afinal, em 50 anos de carreira, a despeito da grita dos fãs, ele foi vários: um jovem cantor folk (presente aqui nesse antológico disco de estreia), um roqueiro, um hippie, um pastor evangélico e um judeu reconvertido.

Mudando a si, Dylan ajudou a mudar o mundo.

Texto publicado originalmente no caderno Vida & Arte, do jornal O POVO

Domingos



Cada domingo em que me despeço dela, perco um pedaço de mim, faltam-me chão e forças para o próximo passo. Vem o baque, vem a tristeza, vem a culpa pelos erros, vem o peso das decisões tomadas e o amargo das opções feitas. Vêm as cinzas da vida. Mas saber que daqui a alguns dias, tornarei a vê-la, renova no peito a esperança, acende na alma a lembrança do calor que só aquele abraço pequenino me traz, o gosto daquele beijo estalado no rosto. Saber que ela vai de novo encher o apartamento de luz e de brincadeiras e de bagunça, que vai desfilar na casa toda com aquele passinho trôpego, que vou sentir de novo seu cheiro, que vou ouvir mais uma sua voz e, principalmente, sua gargalhada inigualável, faz-me seguir adiante. Saber que vou poder escutar seus sonhos novamente - ali no berço, ao lado da minha cama -, faz com que eu consiga dormir. Ontem, ouvi pela primeira vez em alto e bom som: "papaiiiiiiii!". A partir daí, tudo mudou. Não teve coração pra tanta alegria. Não houve boca pra tanto riso, nem corpo pra tanto arrepio. O que transbordou virou lágrima. E também essas palavras. Vamos seguir, filha, que o mundo não é fácil. Mas prometo estar sempre a teu lado, cuidando de ti, olhando por ti. Pra te amparar e, muito mais até, ser amparado por ti. Porque é por você que, como cantaria o poeta, eu volto a dizer sim à vida cada vez que me despeço! Te amo!

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Silêncio

Quem manda no mundo



Leitura obrigatória: dossiê "Quem manda no mundo", do DiploBrasil. Intrigante e perturbador. Como li num artigo recente do Slavoj Zizek, a Europa está como aqueles personagens de desenho animado que correm para o abismo e seguem flutuando no ar. Só caem quando olham pra baixo. Pois bem, a Grécia e a Espanha já olharam pra baixo. A Itália olhará logo, logo. A grande questão, no entanto, é que, dado o quadro de bestialidade do sistema financeiro internacional, o abismo está sob os pés de todos nós, de toda a humanidade. Nós apenas não olhamos pra baixo. Ainda... 



Chagas aberto



Benfica, essa ilha. Essa promessa de vida e felicidade no coração de Fortaleza. Assediado permanentemente pela violência, é fato. Mas quem sabe do bairro não abandona suas ruas. Essas características do bairro não explicam, mas ajudam a entender por que são vários os bares tradicionais localizados naquele quadrilátero formado pela Marechal Dedodoro, Avenida da Universidade, 13 de Maio e Eduardo Girão. Estabelecimentos como o Nonato, o Bar do Luiz e, o mais tradicional de todos, o Bar do Chaguinha, que há 56 anos fincou bandeira na esquina da rua Padre Francisco Pinto com a rua João Gentil.
O Chaguinha é nosso Lamas, o nosso Capela, de tal modo encravado na geografia do bairro e tão firmemente incorporado ao imaginário de seus convivas que não se imagina o Benfica sem a cerveja, a música ou os petiscos do local. A infantaria do cardápio é formada pela panelada, um das mais famosas da Cidade; e pelo carneiro cozido, outro de reputação igualmente celebrada. A mão de vaca e a costelinha de porco também merecem algo de bom a ser dito. Os valores são módicos, embora a experiência de viver Fortaleza a partir dos encontros que se dão no bar não tenham preço. Às sextas-feiras, tem seresta. Os sábados começam com samba – comandado por Zé do Cavaco (o canhoto mais rápido deste meridiano). Tudo na base da espontaneidade, sem amarração. Meio dentro do bar, meio na calçada. A vida, afinal, pulsa melhor quando sai à rua, enfrentando de peito aberto suas contradições e colocando seus fantasmas para secar ao sol. Ou para desidratar sob as estrelas.
Texto publicado originalmente na coluna Papo de Botequim, caderno Comes & Bebes, jornal O POVO (13.07.2012).

O tempo de Zé Ramalho




Depois de cinco anos dedicados a tributos a outros artistas, Zé Ramalho volta a lançar um disco de inéditas. Em Sinais dos Tempos, o cantor e compositor paraibano retoma sua produção autoral e também as sonoridades lisérgicas e a poética surrealista que impregnaram suas melhores composições e seus melhores trabalhos. O novo CD, o vigésimo sexto disco de carreira, chega ao mercado pelo selo Avôhai Music, criado por Zé em parceria com a esposa, Roberta Ramalho.

“Depois que passei dos 60, parece que os anos estão correndo. Me vejo num mundo louco, rápido e cruel e tendo de me inspirar nele para fazer minha obra de arte”, ele explica no material de divulgação do CD. “Os fãs vinham cobrando um disco autoral, mas passei os últimos cinco anos refletindo sobre mudanças que ocorreram e fazendo músicas aos poucos”.

Ao longo desse período, Zé travou um longa batalha na justiça para poder gravar seus próprios sucessos. Ao lado de artistas como Roberto e Erasmo Carlos, brigou contra um grupo de editoras musicais que tentou aumentar as taxas cobradas das gravadoras para a utilização das músicas em CDs e DVDs. Moveu uma ação contra a editora EMI Songs – que fazia parte do grupo denominado Associação Brasileira dos Editores de Música (Abem) – e tentou rescindir os contratos através dos quais cedeu os direitos patrimoniais de suas canções.

Em 2005, ao lançar o CD e o DVD Ao Vivo, com que comemorava seus 30 anos de carreira, Zé teve os produtos tirados de circulação – apenas a primeira tiragem foi vendida. O cantor partiu, então, para uma série de homenagens a outros artistas, como Bob Dylan, Beatles, Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, até conseguir a vitória nos tribunais.

No novo CD, o desgaste do período de litígio é lembrado na faixa “Indo com o tempo”, em que ele canta: “Não perdoarei a quem me trouxe dor”. Mas as incursões pela obra de seus ídolos e alguns episódios de sua vida pessoal - como o nascimento dos netos e a parceria profissional com a esposa - fizeram o artista sublimar a mágoa das editoras e se inspirar para os novos vôos registrados no disco. “Estão no álbum lembranças e vivências, algumas de forma mais aberta e outras mais enigmáticas”, explica.

Robertinho do Recife
O álbum é dirigido e produzido por Robertinho do Recife e pelo próprio Zé Ramalho. A Banda Z escolta o paraibano em todas as gravações: Chico Guedes (contrabaixo), Edu Constant (bateria), Dodô de Moraes (teclados), Toti Cavalcanti (sopros) e Zé Gomes (percussão). A cantora Roberta de Recife, filha de Robertinho; e o guitarrista norte-americano Jesse Robinson fazem participações especiais no disco.

“É um album para pessoas que estavam aguardando novas produções musicais minhas, sem maiores pretensões. É a continuidade do meu trabalho, minha leitura do mundo atual e minha maturidade como homem e compositor. É a vontade de continuar levando essa vida de shows, estúdio, gravações e de oferecer o que crio”, explica.

Todas as 12 faixas são de sua autoria. As letras alternam referências a outros ídolos do compositor - como Pink Floyd e Carlos Drummond de Andrade -, que é citado em “Lembranças do primeiro” (“No meio do caminho há uma pedra. Deixe-a, não a remova”); e a canções que marcaram a trajetória do paraibano - como “A terceira lâmina”, “Beira-Mar” e “A noite preta”, lançada em seu disco de estreia e que recebe agora o contraponto poético em “A noite branca”.

“Há uma crueldade em relação à máquina do mundo hoje em dia, com toda essa correria. Mas não deixo pra trás nada do que eu sou”, afirma. Inquietações filosóficas que volta e meia vão dar no tema da morte também permeiam o CD. Sobretudo em “Olhar alquimista”, em que ele canta: “Aonde me viram não mais verão os alquimistas e os anciões”. “A morte é uma coisa sobre a qual já comecei a pensar. Ela está também na primeira faixa, quando canto: ‘será que chegarei à terra prometida ou atravessarei o túnel de luz’. Não que eu me sinta perto de morrer, mas tenho uma curiosa especulação e penso muito nisso hoje em dia”, avalia.

Ao deixar de lado o caminho dos discos-tributo e voltar a produzir um CD de inéditas, Zé Ramalho muda para permanecer o mesmo: eloqüente e claro em seus enigmas.

Matéria publicada no caderno Vida & Arte, do jornal O POVO, edição do dia 18 de julho.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Poeira nos olhos - Vicente Barreto


"Jogo poeira nos olhos
que é pra me aventurar
caminhei muitas léguas 
sem lei e nem trégua 
que possa lembrar
procurando amor puro
que é em porto seguro
que vou sossegar

Só de pensar
se me fecham a cancela
uma fera eu posso virar
jogo o corpo
num rabo-de-arraia
que vou lhe mostrar

Mas no mais eu sou manso que dói
ajo como se fosse um herói

Andei, andei
andei por aí
andei , andei 
andei por aí"

P.S. - Essa vai para um moça lá em Istambul...


Ele é o samba*




O poeta está chegando aos 70. Mas prefere não antecipar as comemorações. “As pessoas têm falado muito sobre isso. Inclusive, já me convidaram para várias entrevistas e especiais. Eu falo: ‘Olha gente, se Deus permitir, deixa eu completar os 70 anos antes’. Festejar antes não é bom!”, explica, por telefone, aos risos. Oficialmente, o aniversário é apenas em novembro, dia 12. “Tenho evitado tocar nesse assunto. Mas, acontecendo isso, eu fazendo 70, aí vou falar à vontade”.

Até lá, Paulinho da Viola deixa a efeméride de lado e diz que prefere seguir trabalhando. Gravando – sim, há perspectiva de um novo disco em breve – e fazendo shows, como o que apresenta logo mais no Aterro da Praia de Iracema. O espetáculo foi pensado especialmente para a ocasião. Nos últimos anos, o sambista tem se apresentado num formato mais intimista, com um time de músicos mais enxuto. Resultado tanto do show acústico, que deu origem ao DVD da MTV; quanto de uma temporada que fez em São Paulo para inauguração do teatro da Fundação Álvares Penteado. O show em Fortaleza abriu uma exceção nessa rotina de perfil quase camerístico.

“É uma festa de aniversário”, justifica. Em conversa com a produção do evento, Paulinho decidiu por um show com uma sonoridade mais encorpada e com um repertório que prioriza seus grandes sucessos. Para isso, reforçou seu time de músicos: Cristóvão Bastos (piano), Mário Séve (sopros), Dininho (contrabaixo), Hércules (bateria), Celsinho Silva (percussão) e Esguleba (percussões).

Além deles, também sobem ao palco os filhos João Paulo Rabello (violão) – que substitui o avô César Farias como escudeiro de Paulinho no seis cordas - e Beatriz Faria (vocal) – destaque no elenco dos musicais Sassaricando e É com esse que eu vou, dois sucessos de público assinados pelo jornalista e escritor Sérgio Cabral.

Com quase 50 anos de carreira, Paulinho da Viola prefere falar de si no coletivo, avaliando e enaltecendo o legado de sua geração para a música brasileira. Uma geração em que alguns dos principais medalhões nasceram no mesmo ano (além dele, Benjor, Caetano, Gil e Milton, por exemplo, também são de 1942) e atualizaram, se não no campo da política e da economia, pelo menos no campo da música, a utopia do escritor austríaco Stefan Zweig – falecido em fevereiro daquele mesmo 1942 - e de seu País do Futuro.

“Fico feliz que o pessoal da minha geração, principalmente através dos festivais, tenha tido essa preocupação com as mudanças que vinham ocorrendo na cultura e no País como um todo”, afirma. “No período pós-bossa nova, houve muita mudança na música. Os festivais foram muito importantes porque eles não só deram oportunidade a toda uma geração de mostrar ideias novas, como também houve uma oportunidade de uma discussão sobre aquilo que estava acontecendo no País, na cultura”.

Maior referência viva do samba – pela qualidade, pela quantidade e pela popularidade de sua obra -, o compositor não reivindica a posição de reserva moral do gênero ou qualquer outro predicado do tipo. Em resumo, não se anima com nenhum protagonismo que lhe implique responsabilidades de preservação ou de manutenção de uma suposta pureza de nossa música.

“Preservação” e “pureza”, aliás, são expressões que considera inúteis dentro da dinâmica da música popular. “Nunca houve uma forma pura (de samba). Não dá pra ficar interferindo nas coisas e dizendo como elas têm de ser”, defende. “Eu não faço meu trabalho querendo preservar nada porque isso é uma bobagem e é desnecessário. Quem toma conta das coisas somos nós, é o nosso povo. Eu passei toda minha vida ouvindo em muitos momentos: ‘Ah, esse negócio acabou. É preciso acabar com isso. Isso é negócio de velho. E não sei o que’. E por que não acabou? Porque nosso povo não deixa”.

O sambista prefere falar em paixão pela arte do que em ativismo. “Eu sempre fui ligado a escolas de samba, a blocos de Carnaval, a música instrumental, ao choro. Isso é uma coisa da minha vida. Em nenhum momento, eu quis fazer uma revolução dentro disso. E não é porque tenha assumido uma postura de defesa disso ou daquilo. Não. É uma coisa muito simples. O que eu fiz, o que tenho feito, é uma coisa por amor”. Logo mais, Paulinho divide com Fortaleza algumas célebres canções que resultaram desse seu permanente amor ao samba e à vida. E também ao tempo presente.

* Texto publicado no jornal O POVO, edição do dia 13 de abril de 2012, por ocasião da programação de comemoração do aniversário de Fortaleza.

terça-feira, 8 de maio de 2012

O passado não é mais como era antigamente



Os movimentos de revisão da tradição escreveram a história da música brasileira. Hoje, com a revolução dos acervos de MP3, a tradição reinventa a modernidade. (Texto publicado na edição número 1 da revista O POVO Cenário)

Em se tratando de música brasileira, nada é tão moderno quanto o passado. No campo da canção popular, essa aparente contradição é ainda mais hegemônica. Noves fora alguns esforços vanguardistas na seara da chamada “música erudita”, a história de nossa música é contada por movimentos cíclicos de revisão da tradição que se dão à luz das noções de modernidade correntes na economia simbólica de determinada época. Desde o fim do século XIX, nossa música foi pensada (por teóricos e artistas) como uma longa suíte de temas que deságuam sempre no mesmo coda: o tempo presente emitindo notas de um mundo pretérito (re)idealizado.
Nas primeiras décadas do século XX, entre as urgências reivindicadas pela arte moderna, estava a necessidade de modernização, pelas vias de um nacionalismo atrevido, de uma cultura brasileira considerada “primitiva”. Desse prato, como se sabe, serviram-se Tarsila do Amaral, Oswald e Mário de Andrade. E também Heitor Villa-Lobos e Radamés Gnattali. No caso do samba, seu “primitivismo” foi usado com bandeira de nossa nacionalidade e, sob a batuta populista de Getúlio, ganhou o estatuto de música nacional. Sobre o tema, vale conferir o belo ensaio Modernidades Primitivas – tango, samba e nação, da argentina Florencia Garramuño.
A partir daí, “modernismos” e “primitivismos” voltariam a se entrelaçar e a se reinventar em outros ciclos de nossa música. Na bossa nova, como se sabe, houve o desejo de alinhar nosso cânone a novidades harmônicas e rítmicas que chegavam do exterior. Aquele novo samba já não era mais batido na palma da mão nem costurado pelas baixarias seresteiras dos mestres do violão de 7 cordas. João Gilberto estilizou nosso batuque nas cordas de seu violão e os músicos deixaram os regionais, refugiando-se nos trios daquele meio jazz tupiniquim – ou nas salas e varandas dos convescotes nos apartamentos de Ipanema.
A tropicália recolocou narcisos na frente do espelho e espelhos na frente de recalques. O rock nacional dos anos 80 achou (quase) tudo muito feio e, ainda de ressaca pela repressão militar, renegou taxativamente o diálogo com a geração anterior e a tradição não-roqueira; embora um Cazuza mais maduro transasse Nelson Cavaquinho sem grandes grilos. Um conflito de gerações estava posto.  Eis que, em meados dos anos 90, surge Chico Science e novamente “primitivismos” e “modernidades” voltam a se comunicar. E a se justificar mutuamente. Não tardou para grupos de maracatu se espalharem pelo País, DJs internacionais incorporarem batuques afro-brasileiros em seus sets e o público jovem se reaproximar de suas músicas locais (as guitarradas paraenses, os bois e o tambor de crioula do Maranhão, o samba carioca, etc). A cultura musical brasileira foi reanimada num intenso processo de reencontro.
Chico "modernizou o passado" e fez sua "evolução musical", como anunciava em “Samba Makossa”. Desde então, a música brasileira caminha pra trás – no melhor sentido da expressão. Com as possibilidades tecnológicas da revolução dos acervos de MP3, essa sanha de modernizar nossa tradição se inverteu. Hoje, reinventamos a modernidade através da tradição e de nossos “primitivismos”. É o ponto onde estamos. Olhando pra trás, nunca fomos tão modernos. 

Poemetes Araújos - XX



Calma que
a vida não vai acabar no
próximo relatório.
O sol ainda vai estar por aqui.
Assim como os rouxinóis, os sabiás e a Grécia.
O Parque do Cocó vai estar por aqui.
A vida não vai se apagar na próxima
reunião.
Por isso, não reserve todo seu ar.
Enfrente os mesquinhos, os medíocres
e os hipócritas. Mas saiba respirar.
Há outros ares e outras cores e outros sons.
E eles estarão todos por aqui
quando você chegar.
E mesmo que você morra
Mesmo que você corra
Mesmo que você salte do décimo andar
Eles estarão por aqui.
Os domingos se renovarão nas mesas dos bares,
nos estádios e nos gritos de gol.
O mar seguirá lavando a areia de nosso espírito.
E, apesar de tanto lixo rondando nosso ouvido e nossa alma,
os discos de Clara Nunes seguirão tocando -
ou mesmo os concertos de Brahms.
A vida não vai, calma,
se encerrar na próxima planilha.
Calma que não existe método pra tudo.
A vida vai além.
Nós, não sei.
Enquanto recorrermos a alucinógenos -
deus, diabo, dinheiro, pó -
para
seguir tocando em frente, não sei.
Mas a vida vai.
O melhor que farás é encher teu peito
de amor e de bem e de paz e
dividir sorrisos e manhãs
com os teus.
Então, calma,
que não será você a estancar
o sangue que corre nos campos de batalha,
nos esgotos de Wall Street
e nos olhos da criança africana.
Mas dessa vale a pena cuidar:
porque a infância vai seguir.
Nós, não sei.
Calma.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Raimundo do Queijo: encontros que reinventam domingos




Nas manhãs de domingo, pode-se saber do Centro pelo aboio alucinado dos camelôs e suas infinitas confecções: fitas e cores de um cruel imaginário. Ou pelos passos maltrapilhos e noiados de seus moradores de rua. Ou ainda pelo silêncio e pela solidão de suas esquinas, exceção que comprova a regra da agitação e da vitalidade do bairro durante a semana.
Mas também se pode saber do Centro pelos sorrisos. Pela conversa espirituosa e pelas piadas boêmias. Pela cerveja gelada e pelos tijolinhos de queijo coalho derretendo na boca. Pela boa música e pela dança dos coroas. Pode-se saber desse um berço da cidade através de encontros e abraços. A delicadeza está nos olhos de quem vê.
Esse último Centro – entre tantos outros possíveis no umbigo mais carismático (e problemático) de Fortaleza – se espreguiça aos domingos na Travessa Crato. Estabelecimento 44, para ser mais preciso. Mas nem carece de tanto detalhe. Ao entrar na General Bizerril, vindo da inércia da Castro e Silva, em poucos passos já é possível saber do Raimundo do Queijo. O “Seu” Raimundo do Queijo, endereço de boemia vespertina que desde 1978 descortina gentilmente uma outra Cidade no Centro.
Faça chuva ou sol. Tudo sob o comando de Raimundo Oliveira Araújo, comerciante, 77 anos, natural de Chaval, que fincou bandeira por aqui em meados dos anos 70. No início, eram apenas os queijos, pimentas, doces e quitutes do sertão. Em seguida, veio a clientela fidelizada - “tudo gente de família, um pessoal tranquilo” -, que fez vingar o comércio e pediu o acompanhamento da cerveja. Há 12 anos, veio a música. Nada de paredões, forró-lixo e suas típicas grosserias sexistas. A música, ali, se escuta com o coração e com os encantos da memória, não com os rins.
Valdecir, cego que comanda um trio pé de serra muito popular no local, se reveza com regionais de choro e samba e grupos que tocam o repertório da jovem guarda. Consta que, certa feita, gritaram à chegada do sanfoneiro: “Todo cego é corno!” Ao que o próprio, gênio da raça, respondeu: “E todo corno é cego!” E fez-se a risadaria geral no ambiente.
Falcão anda por lá, o que assanha os mais espirituosos a se atreverem em “duelos” de piada. Do alto de seus 105 anos, Valdemar Caracas, que fundou o Ferroviário Atlético Clube e, pelo andar da carruagem coral, é capaz de fechá-lo, tem cadeira cativa. A prefeita já dividiu o balcão com seus eleitores e o ex-governador Lúcio Alcântara também dá o ar da graça de quando em quando. Outras “celebridades” da casa circulam entre as mesas, pedindo colaboração pra “interar” o cachê dos músicos ou sendo ironicamente ovacionadas ao microfone.
Há alvinegros e tricolores, que, não raro, dividem mesas e, por ali, são apenas torcedores pacatos que contam vantagem para o rival. Há gente de esquerda e gente “reaça”, que tira folga da política (ou nem tanto) para apenas exercer a doce boemia. Há idosos e crianças. Há os que chegam da boemia do dia anterior e há os que chegam para começar o dia.
Há outros dias em que a casa (e a travessa) também funciona(m). Mas no Raimundo do Queijo, há, sobretudo, o domingo, essa promessa de Cidade em nosso coração.


Texto publicado na edição do jornal O POVO do dia 13 de abril, caderno A cidade das delicadezas, que homenageou a cidade de Fortaleza pelo seu aniversário de 286 anos. Foto de Ethi Arcanjo. 




Verdade Tropical: Caetano responde a Schwarz que responde a Caetano




Roberto Schwarz recolocou em perspectiva o livro Verdade Tropical (1997), de Caetano Veloso, em um dos ensaios que compõem o volume Martinha versus Lucrécia, recentemente lançado pela Companhia das Letras. No texto chamado "‘Verdade tropical’: um percurso de nosso tempo", escrito em 2011, o crítico literário analisa o livro, evidenciando suas contradições e chamando atenção para o que considera um certo entusiasmo de Caetano em relação não só ao golpe militar de 64, mas também à presença da direita no poder e à consolidação da hegemonia do capitalismo em âmbito mundial. O baiano, claro, não gostou nada da revisão de sua obra e deu uma entrevista ao Globo respondendo a Schwarz, que por sua vez, manifestou sua tréplica em nova entrevista à Folha de São Paulo. Abaixo, um trecho dessa última entrevista do crítico ao jornal paulista.

Folha – Como leu a entrevista de Caetano?
Roberto Schwarz – Ele mudou de assunto. Em vez de comentar o meu artigo, que é o que estava em pauta, Caetano falou da Coreia do Norte, da União Soviética, de Cuba, da USP, da esquerda obtusa, de Mangabeira Unger etc. Parece piada. Ao contrário do que a entrevista faz supor, não escrevi para pegar em Caetano o rótulo de direitista, e muito menos de esquerdista, mas de herói representativo e problemático. Procurei acompanhar de perto a sua prosa, concatenar e compactar as suas posições, de modo a tornar visíveis as questões de fundo que estão lá e não são óbvias. Tomei o cuidado de sempre apresentar as próprias formulações de Caetano, para que o leitor possa refletir a respeito e tirar conclusões com independência. É o que [Bertolt] Brecht chamava de apresentar os materiais.
Como crítico literário, sou sensível à força estética do livro, naturalmente para analisá-la. No caso, fazem parte inseparável dela as atitudes mais controvertidas do autor, tais como a autoindulgência desmedida, o confusionismo calculado e os momentos de complacência com a ditadura (os militares tomaram o poder “executando um gesto exigido pela necessidade de perpetuar essas desigualdades que têm se mostrado o único modo de a economia brasileira funcionar”, “Verdade Tropical”, pág. 15), o que não exclui a simpatia pela guerrilha. É ler para crer. À maneira dos romances narrados em espírito de provocação -por exemplo, as “Memórias Póstumas de Brás Cubas”- “Verdade Tropical” deve muito de seu interesse literário a certa desfaçatez camaleônica em que Caetano, o seu narrador, é mestre. Penso não forçar a mão dizendo que a representatividade histórica do livro passa por aí. E o seu caráter problemático também, já que o quase romance não deixa de ser um depoimento.

Folha - O sr. vê fundamento na cobrança de Caetano de que a esquerda comente temas como a Coreia do Norte?
Schwarz - É claro que a reflexão informada e crítica sobre as experiências do “socialismo real” é indispensável à esquerda, e aliás ela existe. [Theodor] Adorno, que Caetano absurdamente menciona como inimigo da liberdade, é uma grande figura dessa reflexão no campo estético. Dito isso, penso que, no caso, o interesse pela Coreia do Norte é sobretudo cortina de fumaça para não falar de meu livro.

Folha - Por que o ensaio vem à tona 15 anos depois do livro de Caetano?
Schwarz - Logo que o livro saiu, vi que era notável à sua maneira e merecia discussão. Como não tenho pressa, levei 15 anos para sentar e escrever. Ainda assim, espero não ter perdido o bonde.

Folha - Em que medida o texto aprofunda os argumentos sobre a Tropicália expostos em seu ensaio “Cultura e Política: 1964-1969″?
Schwarz - “Cultura e Política” foi escrito em 1969, na hora pior da ditadura e logo após a eclosão da Tropicália. “Verdade Tropical”, de Caetano, que reapresenta aqueles tempos, foi publicado 30 anos depois, em pleno triunfo neoliberal. Já “Um Percurso de Nosso Tempo”, redigido em 2011, tem a ver com a crise atual do capitalismo. São três momentos distintos. A Tropicália do fim dos anos 60 debochava -valentemente- do Brasil pós-golpe, quando a ditadura buscava conjugar a modernização capitalista ao universo retrógrado de “tradição, família e propriedade”. A fórmula artística dos tropicalistas, muito bem achada, que juntava formas supermodernas e internacionais a matérias ligadas ao atraso do país patriarcal, era uma paródia desse impasse. Ela alegorizava a incapacidade do Brasil de se modernizar de maneira socialmente coerente. Era uma visão crítica, bastante desesperada, de muito interesse artístico, à qual se misturava certa euforia com a nova indústria cultural, que estava nascendo. Ao retomar o assunto em 1997, nos anos FHC, Caetano atenuou o anterior aspecto negativo ou crítico e deu mais realce ao encanto dos absurdos sociais brasileiros, tão “nossos”. Um tropicalismo quase ufanista e algo edificante. No ensaio procurei acompanhar e discutir estes deslocamentos.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Poemetes araújos - XIX



Apesar de tudo,
apesar de tanto, de tanto tempo. Apesar desse outrora em mim, dos erros velosos 
e das confusões
buarques,
meus e de 
tantos eles -
pequenas
e indecisivas 
postas.


Por querer
firmar essa luz,
descobrir poesia
percorrendo  
intensidades dela,
em carne 
e beijo,
em (mais) 
amiga e
parceira, maior
e mais
bela que este.


É de luz Buenos Aires,
e será margem 
de nosso instante.
E apesar desse 
sempre, 
nosso tango.


Apesar e por
isso.


Ao amor, ao meu
amor, a ela: ergo meu "GilGal em Bethania".



terça-feira, 13 de março de 2012

Inside Job: por dentro do maior crime financeiro da história


Inside Job - ou Trabalho Interno, na tradução para o português -, de Charles Ferguson, é um filme ao mesmo tempo didático e devastador. Didático porque pega seu espectador pela mão e vai explicando, com riqueza de detalhes e uma clareza constrangedora para a grande imprensa que "cobriu" o crash de 2008, quem foram os protagonistas e as artimanhas usadas no maior crime financeiro da história. Devastador porque expõe o quanto estamos reféns da mentalidade conservadora e despudorada que comanda os grandes organismos financeiros internacionais - e que estende seus tentáculos não apenas no campo da política (comprando parlamentares e financiando campanhas no executivo), mas também na área acadêmica, moldando corações e mentes dos novos economistas em instituições "consagradas" como Harvard e Columbia.
Engana-se quem acha que o debate está apenas na bandeira da desregulamentação econômica - defendida a ferro e fogo (e gorjetas milionárias) por economistas, parlamentares reacionários (e também por certos  "progressistas"), grandes conglomerados de imprensa e quejandos. A falta de punição aos criminosos engravatados, a recorrência de seus nomes no staff do governo Obama (no caso específico dos Estados Unidos), a permanência das bonificações extravagantes para os agentes da débâcle securitária e, principalmente, a alucinação consumista e ostentatória em que essas lideranças financeiras estão mergulhadas tornam a perspectiva para a economia global ainda mais dramática.
Um filme absolutamente essencial para entender nossa época e tentar projetar nosso futuro.

domingo, 11 de março de 2012

Ted Curson

Poemetes araújos XVIII

Miguel Rondón - Aqui e agora (2010)

Carrego certo
orgulho de meus
erros.
Aqueles que me põem
em perspectiva, os que sabem
bem de mim;
e por mim optaram.
Descaminhos, encruzilhadas,
decepções: propostos ao tempo.
Trago-os sempre
no alforje outrora
rouco de
minha garganta.

Carrego certos erros
de meu orgulho.
Aqueles que não me
inteiram, me duvidam,
me incompletam.
Há, porém, inegável hipocrisia e
almas pequenas
a cortejar nossa travessia.
Mas preferi seguir: experiência.
Em que pese.
Resisto não
mais
às imprecisões do instante.
Este oceano inteiro
que me navega.
Esse oco da palavra,
vagando entre silêncios.

Nem menos nem mais
do que eu, meço a grandeza
do agora.
Há, por demais,
o vivido e o por viver
embotando o nosso sorriso:
quero o aqui e agora.
Meus erros também - aqui e agora.

Sento-me à mesa e
faço os brindes devidos.

Sobre times e clubes


No futebol, há dois tipos de gestão: de time e de clube. A primeira, ligada às questões mais comezinhas do dia a dia, indo apenas “da mão pra boca” e raramente divisando algum horizonte além das demandas prementes das quatro linhas. A segunda, mais consistente e complexa, lida com projetos de longo prazo, voltados ao fortalecimento institucional dessas “empresas” esportivas.
No futebol cearense, esse secular fracasso administrativo (mas pelo qual, ressalto, sou apaixonado), sempre imperou a lógica da gestão de time. Ou seja, veja-se quem há para colocar em campo, fé em Deus e pé na tábua. Esse modelo, alimentado pela paixão dos torcedores (e pela ingenuidade dela decorrente de modo inexorável), fez a glória de inúmeros demagogos e oportunistas de plantão (certos radialistas e profissionais de imprensa, alguns líderes de torcida organizada, dirigentes corruptos, políticos, etc).
Apenas de uns anos pra cá, nossos principais clubes dão sinais de que estão dispostos a traçar caminhos mais consistentes em termos de planejamento e gestão. O Ceará, sob a batuta de Evandro Leitão, renasceu das cinzas. O jovem presidente organizou a casa alvinegra, saneou suas dívidas, retomou o prestígio nacional do clube e vem semeando ações de longo prazo. O Fortaleza não quis ficar pra trás e ensaia voos semelhantes, incluindo a perspectiva de um centro de treinamento moderno e bem estruturado na Região Metropolitana e uma forte campanha de marketing em torno do sócio-torcedor.
Outro dia um interlocutor me fez a provocação: em nosso futebol, o que se chama de “boa estrutura” é pagamento em dia. Não deixa de ser uma incômoda verdade. Entre alvinegros e tricolores, tudo ainda é muito incipiente no terreno da gestão de clube. E contentar-se com o que está posto é denunciar nosso complexo de vira-latas. Mas é importante saudar - até para que não voltemos mais uma vez à estaca zero - o que vem sendo feito. O que nos separa dos grandes clubes do País é a continuidade dessa opção.
Clubes com uma gestão fortalecida produzirão times mais qualificados - nunca o contrário. Mesmo porque futebol é jogo, e um jogo onde, mais do que todos os outros esportes, sempre se pode contar com o imponderável. Times perdem e ganham, sobem e descem de divisão. É do jogo. Já os clubes, não. Aqueles bem estruturados ganham sempre - independente do resultado dentro de campo.

Publicado na seção de Opinião do jornal O POVO, edição de sexta-feira, 09.03.2012

sábado, 7 de janeiro de 2012

A grandeza e o silêncio




Durante a entrevista, as lembranças da família e da infância no Interior do Ceará levaram-lhe às lágrimas. A recordação da amizade e das jornadas intelectuais com Antonio Cândido, idem. Faltou-lhe voz. Minha falta de jeito diante de tão surpreendente manifestação de emotividade só não era maior do que o fascínio por meu interlocutor. Eu que, confesso, nunca rezei pela cartilha do ceticismo programático tão cara a muitos de meus pares de profissão, passava a acreditar ainda mais na grandeza intelectual de meu entrevistado: um homem sabidamente discreto e simples, mas que ali, naquele momento, se despia da frieza protocolar da academia.  
Eu estava diante de José Aderaldo Castello, o professor emérito da USP. O sucessor de Sérgio Buarque de Holanda na direção do Instituto de Estudos Brasileiros (que comandou por mais de 20 anos). O pesquisador incansável que fora um dos primeiros a usar microfilmagens em seus trabalhos. O intelectual que passara a limpo a evolução de nossa literatura e que se tornara parceiro de Antonio Candido em Presença da Literatura Brasileira. Esses e inúmeros outros predicados “oficiais”, que tanto me intimidavam na produção da entrevista. Mas eis que, depois de algumas boas horas de conversa, vem sua tocante revelação de amor ao Ceará e suas origens sertanejas.
“De que maneira o fato de ser cearense, de ter nascido no Nordeste, influiu em sua visão de literatura?”, perguntei. “Isso foi fundamental. Eu sou do sertão. O sertão tem um peso enorme na nossa formação”, respondeu já com a voz embargada pelas lágrimas. Aos 90 anos, Castello morreu em dezembro passado. Sua morte teve repercussão discreta na imprensa. Pediu que suas cinzas fossem jogadas ao mar, assim como as da filha que perdera em 2004. Desde aquele encontro, em 2001, lembro de Castello através das palavras de Rohden: “O grande homem é silenciosamente bom. É genial - mas não exibe gênio. Rasga caminhos novos – sem esmagar ninguém”.