quarta-feira, 28 de abril de 2010

Culpa dos meus cigarros

O texto que segue me foi enviado pelo amigo Lúcio Flávio Chaves Holanda e é de autoria de uma jovem escritora chamada Camila Lopes de Mattos Brito, de apenas 17 anos e que, com esse conto, venceu um concurso literário de seu colégio aqui em Fortaleza. Fiquei impressionado com a segurança da escrita de Camila e com a poética leveza de suas reflexões. Tirem suas conclusões.

Eu era equilibrado. Juro que tentava parar de balançar os pés debaixo da mesa quando ela chegava perto de mim, mas quem é que consegue calar os pensamentos? Tem gente que não consegue nem calar a boca. Sou um afortunado.
Não, não sou. Eu me desconcertava todo quando ela ficava de pé, pegava um copo de plástico e enchia de café. Aliás, eu sempre achei estranho que café (preto do jeito que é) nunca deixasse bigode, diferente do leite.
Eu não posso beber café. Sempre fui hiperativo, desde que nasci. Tenho um turbilhão de pensamentos e consigo ouvi-los mesmo no centro da cidade, com todas aquelas vozes de diferentes alturas e tons. Acho que por isso escolhi morar num apartamento barulhento, onde posso me distrair de mim mesmo, observando a rua e as cores dos carros. Soa até poético, mas não, não é. Eu devo ter perdido algum pedaço de mim no asfalto quando era criança, porque, juro, meus olhos não conseguem se despregar dele quando eu dirijo. Deve ser por isso que me tiraram a carteira de motorista depois da quarta vez que bati o carro.
Mas meu problema era ela. Sabe, eu não sou de reclamar de pequenas coisas. E ela não era pequena. Ela calçava todos os dias uns saltos vermelhos e observava a todos sem baixar o queixo. Aqueles (malditos) olhos castanhos analisavam os cartazes que nós fazíamos, alegando nossas maiores perdições, mas não julgava. Era a única ali que não julgava.
Nas manhãs de sábado, Victor e eu ficávamos encarando o microondas com preguiça de esquentar qualquer coisa pra almoçar. Mentira, eu não sei pra onde é que Victor olhava. Ele sempre foi meio vesgo. Aliás, Victor é meu papagaio.
Eu só a via às segundas-feiras, porque era o dia que eu costumava fumar mais cigarros. Lembro que no primeiro dia, ela me fez apagar um deles na metade. Não sei se fazia parte do tratamento. Mas eu não dava a mínima para o tratamento ou para a terapia em grupo. No dia em que ela me disse para parar de fumar, eu parei. Parei de beber também. Não via mais televisão com medo de ver alguma propaganda de calçado vermelho ou de café. Porque quando eu me lembrava dela, eu tinha insônia. Tomava calmante e enfiava a cabeça no travesseiro, mas o Victor parecia saber e começava a assobiar a música que tocava o dia todo na rádio e que de algum modo era dela.
Com o passar dos dias, tudo foi sendo dela. Eu fui me perdendo para cada pedaço de parede e me vendendo aos meus próprios objetos e me trocando, me trocando por ela. No meu carro, tinha um adesivo com um símbolo bonito que parecia com o símbolo de uma blusa dela. O adesivo tanto desgosto me deu que eu o arranquei de lá, mas aí ficou aquele resto de cola chato e eu não tenho algo que tire aquele resto dali. Ou talvez eu não queira.
Minha última decepção foi quando eu contei ao Victor como os cabelos dela caíam nos ombros e que quando ela andava, eles ondulavam e faziam desenhos infinitos no ar. Contei a ele que na semana passada, ela tinha trocado os sapatos, mas que ainda eram vermelhos. Contei que ela agora só bebia café descafeinado, porque estava sofrendo de insônia. Contei quase tudo, quase, porque tinha coisa que era minha e eu tenho ciúmes dos meus pensamentos. Mas aí quando eu levantei os olhos para ver se ele prestava atenção, ele estava dormindo. Logo ele, logo Victor. Mas eu o perdoei e quase me odiei por isso. Eu sou tão fácil.
Eu odiava ter que tomar o ônibus para ir à clínica dela. Sempre chegava lá com cheiro de assento e de corrimão. Cheiro do povo. E, sem preconceito algum, eu não gosto dos cheiros que o mundo tem. Por exemplo, sabonete de banheiro público poderia ser neutro. E todo ônibus deveria ter desodorizador. Aí, sim, eu teria gosto em pagar meus impostos.
Ela tinha cheiro de roupa nova, de livro exposto na vitrine, cheiro de cinema. Ela tinha um cheiro só dela e às vezes eu a invejava por isso. Porque eu tenho cheiro de mundo e sou confundido por aí. Eu tenho certeza que ela, com aqueles olhos, nunca foi comparada a ninguém.
Agora, eu preciso contar a verdade, porque eu ainda tenho consciência e não quero deixar os outros com a idéia de que eu teria um amor platônico pelo resto da vida. Eu poderia dizer que nós nos casamos e que tivemos dois filhos e que arrumamos uma namorada para o Victor. Mas não.
Eu me declarei, sim, pra ela. Já tinha decidido fazer isso na noite anterior, foi quando eu consegui dormir. Acordei, tomei banho e levei um vidrinho com um pouco do meu perfume no bolso da frente da calça, para não chegar lá com o mesmo cheiro. Eu queria chegar lá diferente, mas ela, ela tinha de ser igual.
Esperei que a terapia acabasse. Todos saíram da sala. Ela ficou de pé, apagou o sorriso do rosto e foi até a mesa de café. Sabia que não podia beber daquele café, então só tomou dois goles de água e quando se virou e me viu ali parado, encarando-a, sorriu outra vez. Mas eu sabia que não era o sorriso dela.
Ela estava usando os cabelos presos e eles já não tocavam os ombros com toda aquela delicadeza. Ela me olhou, baixando o queixo, do jeito que nunca faria, e seus olhos pareciam opacos. Eu não acreditei. Mudei-me de lugar, e os olhos continuavam do mesmo jeito. Ela chamou meu nome, meio com medo. Não, ela não tinha medo.
- Carlos?
Eu pisquei duas vezes e me aproximei. Vi a mão dela tremer, quando eram as minhas que deviam. Enfiei metade dos dedos no bolso, procurando pelas palavras que eu tinha ensaiado mais cedo, mas descobri que não eram elas que eu devia dizer.
- Eu não te amo mais. Baixei meus olhos aos sapatos dela, esperando ver um par de saltos vermelhos, mas o que eu vi foi a confirmação de que eu estava certo. Os sapatos eram verde-escuro.
Voltei-me para a porta e saí da sala. Tomei o ônibus, rodei pela cidade toda, inspirando e trazendo para dentro de mim todos os odores que eu pudesse. Por que eu me sentia vazio. Tomei um sorvete de limão e retornei para casa. Victor me esperava, assobiando a velha música. Eu descobri que não me importava.
Naquele dia, eu a vira ruir diante dos meus olhos. Deitei na cama e fechei os olhos, mas não dormi. Eu ainda era o mesmo e ainda tinha insônia. A verdade é que a gente nunca ama a carne e o osso de alguém. A gente ama as roupas que ela veste, os sapatos que ela usa, as palavras que ela diz. A gente ama o modo como os olhos dela se reviram em ironia ou como penetram na alma da gente quando nos encara, ama o corte de cabelo dela, o modo com que ela pisa no chão. Ama o som do espirro dela, o jeito que ela se despede e as olheiras pequeninas dela. A gente ama os atos, as coisas que a envolve. Ama o sorriso, o coração, os olhos. Mas não a carne e os ossos. Porque aí, essas pessoas que a gente ama iriam ser iguais a nós. E elas não são. Nunca são.
Cansei-me de pensar. Levantei, tomei um banho, fumei meio cigarro e escovei os dentes. Coloquei uma lasanha pra descongelar no microondas. Victor olhou para mim e para a porta ao mesmo tempo. Sentei no sofá e liguei a televisão. Estava passando um comercial de café.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Um chorão chamado Zé

Foto: Américo Souza

O texto abaixo me foi enviado pelo historiador Américo Souza, professor da Universidade Federal do Piauí e amigo do violonista Zé Renato. Outro que presta sua homenagem - delicada e poética - ao nosso saudoso Zé.

“O homem, o mito, o 7 cordas mais rápido do Nordeste”, essa era a deixa dada pelo jornalista e músico Felipe Araújo para os solos inebriantes de Zé Renato nas apresentações do “Policarpo e a Estrela de Madureira”. Puro deleite.
Dono de uma técnica apurada e de uma sensibilidade melódica incomum, Zé Renato dividiu o palco com grandes expoentes da música popular como Domiguinhos, Marinês, Cristina Buarque e Moacir Luz. Todavia, era nas rodas de choro e samba de bares como “O Arlindo” e “Marcão das Ostras”, ao lado de músicos-amigos como, David Gouveia, Marinaldo, Bruno Goyanna, Shaloon Araújo, Luís e Ecinho, que seu talento emergia com mais fulgor. “Aqui, com esses meninos, me sinto mais livre para sentir a música”, me confidenciou certa vez.
Versátil, tocava de tudo, e bem, mas era na execução do chorinho que mais se realizava e encantava. Foi nas rodas desse gênero, tão expressivo como o próprio Zé, que ganhou o epíteto de “poeta das baixarias”, pela fusão inequívoca de precisão e exuberância de seus improvisos ao violão de 7 cordas.
Generoso e militante, usava suas apresentações como um misto de palanque e sala de aula, defendendo o choro como expressão maior da música brasileira e ensinando ao público sua história e seus segredos. Dele aprendi que, para meu espanto, o violão de 7 cordas, instrumento tão caro ao choro e ao samba, é de origem russa.
A morte de Zé Renato, no último dia 06 de abril, mês em que, por ironia, se celebra o dia nacional do choro (23/04), é por certo uma perda irreparável para os que com ele conviveram e ainda maior para os que não terão mais essa chance. No entanto, como historiador, afirmo: a alma nada sabe sobre a história, o encadeamento dos eventos no tempo que acontecem uma vez e nunca se repetem. Na história a vida está enterrada no “nunca mais”. A alma, ao contrário, é o lugar onde o que estava morto volta a viver. A alma desconhece o “nunca mais.”
O Cronista Rubem Alves certa feita escreveu: “temos dois ouvidos. Com um escutamos os ruídos do tempo, passageiros, que desaparecem. Com o outro ouvimos a música da alma, eterna, que permanece.” Era para esse segundo ouvido que as bordoadas de Zé Renato soavam e continuarão a soar para os que souberem apurá-lo.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Saudades de Zé Renato


Em dezembro de 2006, escrevi esse texto sobre o violonista Zé Renato em minha, na época, coluna no jornal O POVO. Hoje, perdemos o Zé e o vazio provocado por essa perda é imenso, doloroso. A partir de agora, em todas aquelas mesas, as melhores mesas de samba e de choro da Cidade, estará faltando ele. Vá com Deus, grande Zé!

"Gênio do improviso e senhor das bordoadas. Em suas mãos, mesmo a mais simples das harmonias vira um discurso de exuberância técnica, ganha contornos ensolarados, impressionistas. Da matemática de suas cordas, ele extrai uma filosofia particular, que se dirige ao mundo questionando seus rigores, seus limites. E também ironizando sua tristeza. Nada é impossível nas "baixarias" precisas de seu 7 cordas, instrumento com que milita há mais de três décadas no mundo do samba e do choro. Em apenas uma frase de poucas notas, pode ir da doída melancolia de um tom menor à falsa euforia de um acorde perfeito maior. Democrata radical e sincero, seu sorriso e seu entusiasmo são os mesmos tanto no bar mais sofisticado quanto na roda de esquina mais espontânea. E segue por aí, virtuoso, gravando, acompanhando grandes intérpretes. E também ensinando, generoso, aos novos candidatos a sambistas e chorões.
No Dia Nacional do Samba, comemorado hoje, o violonista Zé Renato personifica - ao lado de outros bambas da Terrinha (como Sardinha, Zivaldo, David 7 Cordas, Ângelo do Pandeiro, Carlinhos Palhano, Bruno Goyana, Ribamar, Luiz José e tantos mais) - a alegria cada vez mais clandestina da boa música por essas bandas. Parabéns ao samba. Salve Zé Renato!"