segunda-feira, 24 de novembro de 2008

A forma e o ensaio


Um dos ensaístas mais interessantes em atividade no País chama-se Francisco Bosco (foto acima). Filho do músico João Bosco, Francisco é editor da revista Cultura Brasileira Contemporânea, da Biblioteca Nacional, colunista da revista Cult, parceiro de composição do pai e doutorando em Teoria Literária. Em que pese a pouca precisão que o termo oferece ao tentar classificar um gênero específico de escritor em nossos dias, Bosco é um ótimo ensaísta na medida em que exerce como poucos aquilo que Adorno define como "forma" do ensaio. Ou seja, aquele tipo de escrita onde mais interessa interpretar do que "aceitar e classificar"; onde mais importante é entregar-se a "finuras", "implicando" onde aparentemente não há nada a explicar. "Ao ensaio, felicidade e jogo são essenciais. Ele não começa com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que se deseja falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer: ocupa, desse modo, um lugar entre despropósitos", diz a epígrafe (de Adorno) do livro que Bosco lançou no ano passado pela editora Objetiva, sintomaticamente chamado de Banalogias.
O drama dos "playboys" diante da passagem do tempo, o jogo de "dupla nudez" que se opera numa tatuagem, o afeto indireto que se esconde por trás do carioquíssimo "me liga", o golaço e sua antologia, a ética da gafieira, as tensões do convívio humano sublimadas a partir do uso de apelidos e diminutivos. Em seus escritos, Bosco ilumina supostas banalidades para os quais grandes filósofos jamais desviariam o olhar. Seu segredo, no entanto, é a originalidade com que dá uma dimensão inesperada a essas questões. A exemplo da definição de Adorno, o olhar arguto do ensaísta dá contornos surpreendentes a cada tema. Bosco encontra na "forma" a sutileza e o vigor para cada provocação. Cito dois exemplos. O primeiro é a análise sobre o chiste tipicamente carioca do "me liga" utilizado quando do encontro de dois amigos que há muito não se viam: "O afeto é verdadeiro, é uma positividade, mas há em sua formação uma perda, uma impossibilidade: a da intimidade perdida. Isto é, telefonar seria um erro, seria apostar na improvável recuperação do estado antigo da amizade".
O outro exemplo é o texto que fala do temperamento de certos compositores em sua relação com a alegria e com a tristezas, entendidas aqui a partir dos conceitos de Espinoza, segundo os quais, alegria maior não pode haver numa obra de arte do que a realização de sua potência. Tristeza, por outro lado, é a impossibilidade de criação e está ligada não ao andamento musical, mas a tudo aquilo que impede que as pessoas desenvolvam e realizem suas potências. Assim, uma música de Jorge Ben é tão alegre quanto uma música de Milton Nascimento, se compreendidas na plena realização da suas possibilidades.
"É fundamental saber que uma canção triste, ou a tristeza de que se origina uma canção triste, pode ser ao mesmo tempo e sobretudo algo alegre e afirmativo. E que, da mesma forma, uma canção alegre pode ser ao mesmo tempo algo triste: há sempre certa tristeza nas criações fracas, a tristeza de uma alegria forçada, sem base, como um cheque sem fundos", escreve Bosco, antecipando um arremate que me pareceu brilhante: "É precisamente essa espécie de alegria fake que a cultura de alta performance e do Prozac estimula: uma alegria sem espessura, evasiva, em fuga. Nossa cultura, esta do mercado financeiro, do Viagra, das celebridades e das academias recalca sistematicamente a tristeza - mas nem por isso é mais alegre".
Em seguida, Bosco cita Milton Nascimento. "Basta ouvir uma canção como 'San Vicente' para entender tudo o que está em jogo: a melodia que começa triste e a letra que se alude, fragmentariamente, como num 'sonho estranho', a um drama histórico da América Latina de repente irrompem em uma alegria irresistível (na primeira parte sem letra), que cede novamente a vez à tristeza, mas já aqui se trata nitidamente de uma terceira margem do afeto, alegretriste, tristealegre, que explode em sua irredutibilidade no vocalise final". E fecha: "Milton é o homem triste, por excelência. Mas não é fácil sustentar a tristeza na cultura contemporânea. É assim que Milton vem tentando, desde há algum tempo, flertar com a estética da alegria: usa roupas mais modernas, canta canções pop, procura movimentar-se mais no palco. Mas, ao fazê-lo, trai seu genius, que neste instante o abandona: sendo triste, Milton é o mais alegre dos homens - sendo alegre, é um homem triste".

Um comentário:

Dante Accioly disse...

Me liga, Araújo! :) Saudades sinceras de ti, meu irmão.