terça-feira, 31 de julho de 2012

Dylan, um começo



Pouco mais de U$ 400 de custo. Apenas dois microfones – um para o violão e outro para a gaita e o vocal. Três dias de gravação. Nessas modestas condições, entre 20 e 22 de novembro de 1961, Robert Allen Zimmerman ocupou algumas sessões do estúdio A da gravadora Columbia para gravar seu primeiro álbum – que seria lançado apenas no ano seguinte (em março, nos Estados Unidos; e em julho no Reino Unido). O nome do disco era apenas o de seu pseudônimo: Bob Dylan. O trabalho era formado por 13 faixas, a maior parte das quais, canções tradicionais do repertório de country blues norte-americano - apenas duas eram composições suas. Há 50 anos, portanto, Zimmerman (ou Dylan) iniciava sua carreira discográfica, apresentando-se ao grande público como um intérprete dinâmico e original do cânone folk e dando as primeiras pistas do compositor genial e prolífico que mudaria a música e as atitudes na segunda metade do século XX.

Anos mais tarde, já com a carreira consolidada e com a imprensa em seus calcanhares, Dylan concedeu uma entrevista à revista Beat Magazine em que comentou sobre aquele início de carreira. “Se eu começasse pelo álbum um, lado um, eu poderia verdadeiramente ver Bob Dylan evoluir (ao longo de sua discografia)?”, perguntou-lhe o repórter. “Não, você veria Bob Dylan rir consigo mesmo. Ou veria Bob Dylan atravessando mudanças”, respondeu o compositor. De fato, a auto-indulgência nunca foi uma marca evidente nos trabalho de Dylan, que sempre preferiu a auto-ironia e a desmistificação, em especial quando confrontado com o estigma de guru intelectual de sua geração ou de porta-voz de alguma tradição musical.

Village
Nesse marco inicial de sua carreira, nesse “disco um” ao qual se referiu o jornalista Paul Jay Robbins, no entanto, é possível ouvir um Dylan ainda muito reverente ao universo musical que marcou sua formação. Se, hoje, o cantor é um setentão que soa velho e cansado em seus shows e em seus discos – mas que, apesar disso, consegue soar renovado em suas letras -, o Dylan de 20 anos era um artista que trazia interpretações renovadoras para um repertório que começava a soar cansado para a indústria musical da época.

“You´re no good”, a faixa de abertura do álbum, é a releitura de uma composição do lendário bluesmen Jesse “Lone Cat” Fuller. Bem-humorada, a versão de Dylan antecipa seu estilo vigoroso ao violão e à gaita. “Talkin´ New York”, uma composição própria, vem em seguida. Em meio a citações a Woody Guthrie, seu folk hero que dizia “matar fascistas com seu violão”, Bob esbanja vivacidade e astúcia relatando suas experiências na cena folk de Nova York, em especial do Greenwich Village, onde aportara em 1961, ainda como um jovem de classe média um tanto ingênuo vindo de uma pequena cidade do Meio-Oeste. O confronto com a competição e a sofisticação da metrópole marcariam de forma decisiva seus primeiros anos de carreira.

“In my time of dyin´” foi creditada a Dylan, mas o próprio encarte trata de desmentir o crédito ao relatar que ele não lembrava onde e quando ouviu esse blues tradicional pela primeira vez – Led Zepellin também gravaria a música no LP Physical Graffiti. Bob gravou arranjos seus para outras canções tradicionais da cultura folk, como “Pretty Peggy-O”, “Gospel Plow” e, principalmente, “Man of Constant sorrow”. Sobre essa última gravação, Brian Hinton, organizador de um excelente volume com a discografia comentada de Dylan (lançado pela Larousse), escreve: “A intensidade que Bob extrai deste antigo standard já o afastava dos pares que se apresentavam no Village”.

“Fixin´to die”, de Bukka White; “Highway 51”, de Curtis Jones; “See that my grave is kept clean”, de Blind Lemon Jefferson; e “Baby, let me follow you down”, de Ric Von Schmidt; completam o rol de tributos. Apesar da diversidade de referências, é Woody Guthrie o grande “homenageado” do disco. Para ele, Dylan compôs “Song to Woody”. “Dylan tinha ido a Nova York especificamente para a conhecer seu herói, que estava morrendo no Greystone Hospital”, escreve Hinton. “Bob canta com gravidade sincera, como uma despedida, num momento em que um novo mundo estava prestes a nascer; um mundo que Dylan ajudaria a moldar”.

Mudanças
As tradicionais “Freight train blues” e “House of the risin´ sun” – que ganharia dezenas de gravações e versões mundo afora - completam o repertório. Sobre essa última música, um lamento de uma prostituta narrado do ponto de vista feminino, ajudou Dylan (segundo ele próprio conta em sua Biograph) a encarnar o papel de outras pessoas em suas músicas.

Sobre o que era Nova York naquela época em que o disco foi lançado, o jornalista Howard Sounes, autor de uma biografia de Dylan, escreve: “Por volta de 1961, quando Bob chegou a Nova York, os turistas estavam descobrindo que muitos dos beatniks tinham ido embora e que no lugar deles havia uma geração de músicos jovens cantando música folk. A seriedade e a integridade da música folk agradou aos turistas que faziam questão de ir ao Village nessa época, em parte porque ela parecia estar em harmonia com os sentimentos a favor da transformação social nos Estados Unidos”.

Como a história tratou de mostrar, a integridade de Dylan não estava na persona do defensor radical do folk norte-americano. O próprio cantor, já em meados dos anos 60, tratou de desconstruir essa “responsabilidade”. Integridade, em seu caso, foi a honestidade com que lidou com seu próprio desejo de mudança. Afinal, em 50 anos de carreira, a despeito da grita dos fãs, ele foi vários: um jovem cantor folk (presente aqui nesse antológico disco de estreia), um roqueiro, um hippie, um pastor evangélico e um judeu reconvertido.

Mudando a si, Dylan ajudou a mudar o mundo.

Texto publicado originalmente no caderno Vida & Arte, do jornal O POVO

Domingos



Cada domingo em que me despeço dela, perco um pedaço de mim, faltam-me chão e forças para o próximo passo. Vem o baque, vem a tristeza, vem a culpa pelos erros, vem o peso das decisões tomadas e o amargo das opções feitas. Vêm as cinzas da vida. Mas saber que daqui a alguns dias, tornarei a vê-la, renova no peito a esperança, acende na alma a lembrança do calor que só aquele abraço pequenino me traz, o gosto daquele beijo estalado no rosto. Saber que ela vai de novo encher o apartamento de luz e de brincadeiras e de bagunça, que vai desfilar na casa toda com aquele passinho trôpego, que vou sentir de novo seu cheiro, que vou ouvir mais uma sua voz e, principalmente, sua gargalhada inigualável, faz-me seguir adiante. Saber que vou poder escutar seus sonhos novamente - ali no berço, ao lado da minha cama -, faz com que eu consiga dormir. Ontem, ouvi pela primeira vez em alto e bom som: "papaiiiiiiii!". A partir daí, tudo mudou. Não teve coração pra tanta alegria. Não houve boca pra tanto riso, nem corpo pra tanto arrepio. O que transbordou virou lágrima. E também essas palavras. Vamos seguir, filha, que o mundo não é fácil. Mas prometo estar sempre a teu lado, cuidando de ti, olhando por ti. Pra te amparar e, muito mais até, ser amparado por ti. Porque é por você que, como cantaria o poeta, eu volto a dizer sim à vida cada vez que me despeço! Te amo!

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Silêncio

Quem manda no mundo



Leitura obrigatória: dossiê "Quem manda no mundo", do DiploBrasil. Intrigante e perturbador. Como li num artigo recente do Slavoj Zizek, a Europa está como aqueles personagens de desenho animado que correm para o abismo e seguem flutuando no ar. Só caem quando olham pra baixo. Pois bem, a Grécia e a Espanha já olharam pra baixo. A Itália olhará logo, logo. A grande questão, no entanto, é que, dado o quadro de bestialidade do sistema financeiro internacional, o abismo está sob os pés de todos nós, de toda a humanidade. Nós apenas não olhamos pra baixo. Ainda... 



Chagas aberto



Benfica, essa ilha. Essa promessa de vida e felicidade no coração de Fortaleza. Assediado permanentemente pela violência, é fato. Mas quem sabe do bairro não abandona suas ruas. Essas características do bairro não explicam, mas ajudam a entender por que são vários os bares tradicionais localizados naquele quadrilátero formado pela Marechal Dedodoro, Avenida da Universidade, 13 de Maio e Eduardo Girão. Estabelecimentos como o Nonato, o Bar do Luiz e, o mais tradicional de todos, o Bar do Chaguinha, que há 56 anos fincou bandeira na esquina da rua Padre Francisco Pinto com a rua João Gentil.
O Chaguinha é nosso Lamas, o nosso Capela, de tal modo encravado na geografia do bairro e tão firmemente incorporado ao imaginário de seus convivas que não se imagina o Benfica sem a cerveja, a música ou os petiscos do local. A infantaria do cardápio é formada pela panelada, um das mais famosas da Cidade; e pelo carneiro cozido, outro de reputação igualmente celebrada. A mão de vaca e a costelinha de porco também merecem algo de bom a ser dito. Os valores são módicos, embora a experiência de viver Fortaleza a partir dos encontros que se dão no bar não tenham preço. Às sextas-feiras, tem seresta. Os sábados começam com samba – comandado por Zé do Cavaco (o canhoto mais rápido deste meridiano). Tudo na base da espontaneidade, sem amarração. Meio dentro do bar, meio na calçada. A vida, afinal, pulsa melhor quando sai à rua, enfrentando de peito aberto suas contradições e colocando seus fantasmas para secar ao sol. Ou para desidratar sob as estrelas.
Texto publicado originalmente na coluna Papo de Botequim, caderno Comes & Bebes, jornal O POVO (13.07.2012).

O tempo de Zé Ramalho




Depois de cinco anos dedicados a tributos a outros artistas, Zé Ramalho volta a lançar um disco de inéditas. Em Sinais dos Tempos, o cantor e compositor paraibano retoma sua produção autoral e também as sonoridades lisérgicas e a poética surrealista que impregnaram suas melhores composições e seus melhores trabalhos. O novo CD, o vigésimo sexto disco de carreira, chega ao mercado pelo selo Avôhai Music, criado por Zé em parceria com a esposa, Roberta Ramalho.

“Depois que passei dos 60, parece que os anos estão correndo. Me vejo num mundo louco, rápido e cruel e tendo de me inspirar nele para fazer minha obra de arte”, ele explica no material de divulgação do CD. “Os fãs vinham cobrando um disco autoral, mas passei os últimos cinco anos refletindo sobre mudanças que ocorreram e fazendo músicas aos poucos”.

Ao longo desse período, Zé travou um longa batalha na justiça para poder gravar seus próprios sucessos. Ao lado de artistas como Roberto e Erasmo Carlos, brigou contra um grupo de editoras musicais que tentou aumentar as taxas cobradas das gravadoras para a utilização das músicas em CDs e DVDs. Moveu uma ação contra a editora EMI Songs – que fazia parte do grupo denominado Associação Brasileira dos Editores de Música (Abem) – e tentou rescindir os contratos através dos quais cedeu os direitos patrimoniais de suas canções.

Em 2005, ao lançar o CD e o DVD Ao Vivo, com que comemorava seus 30 anos de carreira, Zé teve os produtos tirados de circulação – apenas a primeira tiragem foi vendida. O cantor partiu, então, para uma série de homenagens a outros artistas, como Bob Dylan, Beatles, Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, até conseguir a vitória nos tribunais.

No novo CD, o desgaste do período de litígio é lembrado na faixa “Indo com o tempo”, em que ele canta: “Não perdoarei a quem me trouxe dor”. Mas as incursões pela obra de seus ídolos e alguns episódios de sua vida pessoal - como o nascimento dos netos e a parceria profissional com a esposa - fizeram o artista sublimar a mágoa das editoras e se inspirar para os novos vôos registrados no disco. “Estão no álbum lembranças e vivências, algumas de forma mais aberta e outras mais enigmáticas”, explica.

Robertinho do Recife
O álbum é dirigido e produzido por Robertinho do Recife e pelo próprio Zé Ramalho. A Banda Z escolta o paraibano em todas as gravações: Chico Guedes (contrabaixo), Edu Constant (bateria), Dodô de Moraes (teclados), Toti Cavalcanti (sopros) e Zé Gomes (percussão). A cantora Roberta de Recife, filha de Robertinho; e o guitarrista norte-americano Jesse Robinson fazem participações especiais no disco.

“É um album para pessoas que estavam aguardando novas produções musicais minhas, sem maiores pretensões. É a continuidade do meu trabalho, minha leitura do mundo atual e minha maturidade como homem e compositor. É a vontade de continuar levando essa vida de shows, estúdio, gravações e de oferecer o que crio”, explica.

Todas as 12 faixas são de sua autoria. As letras alternam referências a outros ídolos do compositor - como Pink Floyd e Carlos Drummond de Andrade -, que é citado em “Lembranças do primeiro” (“No meio do caminho há uma pedra. Deixe-a, não a remova”); e a canções que marcaram a trajetória do paraibano - como “A terceira lâmina”, “Beira-Mar” e “A noite preta”, lançada em seu disco de estreia e que recebe agora o contraponto poético em “A noite branca”.

“Há uma crueldade em relação à máquina do mundo hoje em dia, com toda essa correria. Mas não deixo pra trás nada do que eu sou”, afirma. Inquietações filosóficas que volta e meia vão dar no tema da morte também permeiam o CD. Sobretudo em “Olhar alquimista”, em que ele canta: “Aonde me viram não mais verão os alquimistas e os anciões”. “A morte é uma coisa sobre a qual já comecei a pensar. Ela está também na primeira faixa, quando canto: ‘será que chegarei à terra prometida ou atravessarei o túnel de luz’. Não que eu me sinta perto de morrer, mas tenho uma curiosa especulação e penso muito nisso hoje em dia”, avalia.

Ao deixar de lado o caminho dos discos-tributo e voltar a produzir um CD de inéditas, Zé Ramalho muda para permanecer o mesmo: eloqüente e claro em seus enigmas.

Matéria publicada no caderno Vida & Arte, do jornal O POVO, edição do dia 18 de julho.