quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Konstantinos Kaváfis


"A cada pouco jura começar vida nova.
Mas quando a noite vem com seus conselhos,
seus compromissos, com suas promessas;
mas quando a noite vem com sua força
(o corpo quer e pede), ele de novo sai,
perdido, atrás da mesma alegria fatal"

Konstantinos Kaváfis, Jura

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Poemetes araújos - V

Nega, vamos pra longe

Vamos pra onde a alegria é certa

Longe dessa gente careta

Longe da covardia, dessa treta

Vamos cantar de peito limpo e cara aberta

 

Nega, vamos pra longe

Vamos pra onde o samba impera

Longe dessas gravatas

Longe da solidão, dessas bravatas

Vamos dançar que o sol nos espera

 

Nega, vamos pra longe

Que o amor há de ser grato

Com quem ilumina uma noite dessa

Comigo não há falta, não há pressa

Tenho apenas o samba

Que tudo inicia

Que tudo irradia

Que tudo cessa


                                    Fortaleza, outubro de 2009

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Nelson: Freire


Abaixo, um texto que escrevi em 2004 para o jornal O POVO e que falava sobre o filme, então recém-lançado, de João Moreira Salles sobre Nelson Freire. Nos últimos dias, tenho escutado repetidas vezes - e com o espírito cada vez mais assombrado - o CD em que ele executa, com dramaticidade e vigor inigualáveis, os 12 "études" de Chopin (op. 10), a "Barcarolle" e a "sonata no. 2 para piano". Daí que resolvi visitar meus discos do Nelson, bem como o documentário.  
 
Menino prodígio egresso do interior de Minas, Nelson Freire deu seu primeiro recital aos quatro anos. Aos oito, embasbacou todo o Rio de Janeiro ao solar um concerto de Mozart. Aluno de Nise Obino, Lúcia Branco e Bruno Seidlhofer, teve uma das carreiras mais vitoriosas da música erudita brasileira - com medalhas em pelo menos três continentes - e chegou ao posto de um dos mais importantes concertistas mundiais. 
Exaltar, portanto, sua arte somente a partir de seu virtuosismo (como foi o caso de filmes que abordaram outros pianistas famosos) é por demais tentador. No contexto do documentário de João Moreira Salles, porém, essa esquematização chega a parecer um tanto óbvia e beira a desimportância. Em 
Nelson Freire, o filme, o assombro dos dedos sobre o piano é apenas uma das pinceladas que o diretor usa para reconstituir em aquarela o perfil do pianista. 
O documentário tem pouco mais de uma hora e meia de duração, ao longo da qual esse decantado virtuosismo se mistura a uma série de outras perspectivas sugeridas pela figura de Nelson: sua serenidade e sua imaginação poderosa diante de uma peça erudita, o frisson que suas apresentações despertam mundo afora, seu rigor técnico e sua disciplina quase sufocantes, ou ainda seu fascínio pelos mestres Guiomar Novaes e Artur Rubinstein. 
No roteiro sinuoso do documentário, a vertigem do piano dilui-se, fundamentalmente, num sentimento de abandono e de entrega que pontua cada nota das interpretações de Nelson. É esse viés que forma o matiz mais forte do quadro pintado por Salles. Criança doente, criada no isolamento dos estudos e das partituras, longe dos primos e das brincadeiras de rua, Freire teve a música como sua principal interlocutora. E foi a partir desse diálogo solitário que conseguiu orientar e dar sentido a todo seu universo de desejos e emoções. 
Sua ética, por exemplo, não pertence ao terreno movediço da pabulagem e da fama. Para Nelson, poucas coisas são mais embaraçosas do que a badalação dos fãs nos camarins ou o burburinho da imprensa. A música é sua razão última e sem ela nada se justifica, nada se movimenta. Nem memória nem afetos. Nem mesmo o mundo verbal parece guardar algum sentido em sua vida. Na verdade, as palavras lhe são quase um não-dizer, dão-se sempre numa expressão tímida, contida. 
O verbo de Nelson é outro. Sua sintaxe se dá entre claves, compassos e colcheias. Nessa gramática, ele tenta traduzir a seu modo toda a história da humanidade em busca do sublime. No filme de Salles, esse esforço de vida inteira se dá entre o prolixo Rachmanioff e o caudaloso Villa-Lobos, entre o Chopin fundamental e o Schumann da 
Fantasia em dó maior. Entre catedrais, enfim, da cultura humana que acabaram por justificar sua própria existência. E que estão permanentemente a legitimar a nossa.



Stefan Zweig e o banquete de brasilidade

O caderno Mais!, da Folha de S. Paulo, em sua edição do último domingo trouxe uma capa que acenava com uma discussão que me ganhou de imediato: o Brasil teria deixado de ser o eterno País do Futuro, na expressão cunhada por Stefan Zweig (foto acima), e - com a conquista da sede das Olimpíadas e da Copa do Mundo, além de perspectivas econômicas virtuosas e de uma posição consolidada no cenário dos Bric - atualizado essa sua secular potência? Há chegado nossa hora? À sedução do tema do debate se somou um time de colaboradores que permitia antever uma discussão das mais produtivas: José Murilo de Carvalho, Marcelo Coelho, Hermano Vianna, Ronaldo Vainfas, entre outros.
Atravessando o dossiê, uma frustração: o jornal não entregou o que vendeu na capa. Há, é fato, uma bela retrospectiva em torno do livro de Zweig (Brasil - um país do futuro, de 1941), que disseca a percepção do autor em relação à história e à paisagem (humana e natural) brasileira e que situa a produção da obra no contexto da Segunda Guerra Mundial, evidenciando os pudores e as motivações intelectuais (e de sobrevivência) que deram publicidade mas também carregaram o livro de imprecisões e platitudes sobre o País. 
"O povo brasileiro (segundo Zweig) seria dotado de um caráter congênito em que sobressairiam a tolerância, sobretudo a racial, o espírito de conciliação, a tendência à solução pacífica dos conflitos internos e externos", pontua Murilo de Carvalho. "A essas qualidades se acrescentava o dom de uma natureza rica e generosa. Com tais atributos, o Brasil estava, segundo ele, destinado a apresentar ao mundo, sobre os escombros da Europa, um novo modelo de civilização. O Brasil era o país do futuro". 
Em temas não muito variantes ao longo do caderno, esse foi o tom da apreciação da obra de Zeig feita pela Folha de S. Paulo. Valeu como dossiê específico sobre o autor, não sobre o Brasil de hoje. Poucos descortinaram idéias sobre a proposta vendida pela capa. O mesmo Murilo - que foi mais longe entre seus pares nesse desafio de entender o Brasil do presente - destacou o cuidado para se evitar um oba-oba com um momento histórico favorável para o País. "Não haverá milagres. Nem pessimismo nem euforia levam a lugar nenhum". 
Hermano Vianna termina sua colaboração resgatando a impressão de Zweig sobre os favelados cariocas dos anos 40, a quem o embevecido austríaco havia classificado de "uma enorme reserva para o futuro". "E não é que ele estava com a razão? Hoje essa gente deixou de ter vida 'pouco influenciada pelo progresso da técnica'e virou mercado de consumo apontado até na 'The Economist' como chave para a recuperação da economia mundial pós-crise. Uma gente dinâmica e barulhenta, acostumada tanto com o metralhar de AR-15 quanto com o subgrave do forró no som automotivo, vira garantia de futuro, muito além do fim da história e de qualquer choque de civilizações", afirma Hermano.
Essas são duas senhas - pouco exploradas pelo caderno - para que o Brasil possa efetivamente se afirmar com altivez no presente: o equilíbrio entre o ufanismo e o ceticismo (algo por demais óbvio para merecer qualquer desdobramento), e o reencontro da "pátria" com seu povo real. Lembro que Glauber Rocha costumava dizer que o povo era um mito besta, alimentado pelo romantismo e pela ingenuidade de sociólogos, artistas e escritores de diversos matizes. Vis à vis com seu povo, o Brasil de hoje não é nada do que sonhou nenhum campo da expressão artística ou da intelectualidade. Eis um choque que resulta em certa intolerância por parte da nossa inteligência mais conservadora e do nosso suposto bom gosto burguês. E também no profundo incômodo que um governo como o de Lula provoca na grande mídia e nos setores mais conservadores do País. Lula, afinal, pode deixar como a principal marca de sua gestão - repleta de problemas e omissões, registre-se - o reencontro de grandes parcelas do povo brasileiro com a mesa em que se serve esse banquete amorfo (e agridoce) chamado brasilidade. 
O Brasil sempre foi refém de um futuro que poderia ter sido e que não foi. E nunca vai ser. Nem quando publicações internacionais nos chamam - como fez recentemente a revista Wallpaper - de "novo establishment". Quanto mais gente estiver sentada à mesa desse banquete de brasilidade, negociando mutuamente a forma e a extensão do etos desta nação (para adaptar uma expressão da professora Maria Alice Rezende de Carvalho, que também participa do dossiê falando do etos de cidade), aí sim, estaremos mais perto do melhor futuro. Mais perto estaremos do melhor Brasil possível. 

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Céu embaixo

"Janelas, escancaradas janelas do décimo sétimo andar, aqui vou eu, aqui vai toda essa minha nossa estúpida vontade de apagar a luz, única maneira decente de apagar a dor".
Paulo Leminski, Céu Embaixo.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O planeta politicamente incorreto


"Maluf se entrega à polícia”. “Nelson Ned é o novo Menudo”. “Paulo Francis na presidência da Funai”. “Newton Cruz prende Deus”. Essas e outras manchetes esdrúxulas estampavam a capa da primeira edição do Planeta Diário, um jornaleco criado pelos humoristas Hubert, Reinaldo e Cláudio Paiva e auto-intitulado “o maior jornal do planeta”. Terminava o ano de 1984 e o Brasil apenas começava a sacudir a poeira da ditadura, esperando dar a volta por cima do autoritarismo, da quebradeira econômica, do obscurantismo moral, etc. Toda uma geração, que passara a adolescência debaixo das barbas dos generais, chegava à maturidade (ou quase) sem saber direito o que fazer com aquele novo clima de liberdades individuais. Os três “editores” do Planeta também não. Na dúvida, resolvem sair esculachando, literalmente, com Deus e o mundo. Para bem e para o mal, nascia um novo formato de humor no Brasil.

“Candidatos epiléticos se debatem na TV”. “Acidente nuclear: cadáveres de Goiânia estão fora de perigo”. “Cai a estabilidade no emprego: Sarney é demitido por justa causa”. “113,7% dos eleitores acham que pesquisas estão erradas”. “Afif prometeu aos que o mandaram à merda que ‘juntos chegaremos lá’”. “Até japoneses acham o mínimo ridículo”. “Mala estava vivo: Oswaldo Montenegro encontrado a salvo na bagagem do boeing”. Entre o besteirol mais cretino e o politicamente incorreto mais despudorado, esse era o tom das manchetes do jornal. Nos editoriais, algumas das bandeiras e compromissos da “instituição”: “O povo brasileiro, que já é meio burro, não está entendendo nada: o presidente não usa mais aliança e cueca, Jânio Quadros parou de beber e na União Soviética o comunismo, o pão, o açúcar e a batata acabaram”.

Já os leitores interessados em economia não podiam perder seções de serviço como “Seu dinheiro... porque o meu já acabou” ou “Economia popular: formas alternativas de sobrevivência”. Os mais descolados podiam acompanhar discussões sobre a depressão de Zé Ramalho ou o legado de On the Road (devidamente traduzido para “Abre a rodinha”).

A editora Desiderata – que tem lançado ótimos títulos de Millôr Fernandes, Ivan Lessa e congêneres – montou uma coletânea com o melhor (o melhor?) das 77 edições do Planeta Diário, que conseguiu sobreviver até 1991, quando dois de seus editores se juntaram ao Casseta Popular, outro “periódico” canastrão da época, e, numa fusão nada murdochiana, formaram o Casseta & Planeta. Cláudio Paiva virou redator da Globo. Hoje, Hubert, Reinaldo e cia. estão plenamente domesticados pelos padrões globais de produção, por seus próprios clichês e pelo “trocadilhismo”, a doença infantil do humor. Na época do Planeta Diário, no entanto, suas edições cuspiam abelha – e não raro cometiam o que hoje seriam considerados “excessos” de deixar a turma do Pânico na TV! pouco à vontade. 

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Água, terra, ar e Montarroyos


Márcio Montarroyos (1949-2007) foi uma das grandes eminências do instrumental brasileiro. Seu estilo preciso e arrojado, além da defesa tenaz da música instrumental made in Brazil, lhe projetaram internacionalmente e chamaram atenção de músicos do quilate de Stevie Wonder, Sarah Vaughan, Carlos Santana e Ella Fitzgerald, com quem dividiu palcos e estúdios. Por aqui, seus solos figuram em discos de quase todos os grandes medalhões da MPB, de Jobim a Gismonti, Caetano a Maria Bethânia, numa extensa galeria a perder de vista. De sua discografia solo, destacam-se discos como Sessão Nostalgia (1973), Stone Alliance (1977) e Terra Mater (1989). Em 1989, Montarroyos participou do álbum duplo Concerto Planeta Terra, um registro de show antológico realizado no Parque do Ibirapuera ao lado do pianista Nelson Ayres, do guitarrista Toninho Horta e do saxofonista Nivaldo Ornelas, tendo como banda de apoio ninguém menos que Carlos Bala na bateria, Zeca Assumpção no baixo e a orquestra sinfônica de Campinas. No disco, cada músico do quarteto principal interpreta uma peça de próprio punho. Nelson ficou com "Água"; Ornellas, com "Ar"; e Toninho, com "Terra". Montarroyos, o que dá bem a medida de seu estilo, ficou com "Fogo". 

Abaixo, o homem em ação. Destaque para o baixo de Zeca Assumpção e a bateria de Zé Eduardo Nazário. 

Em busca da auto-literatura

Lançado há dois anos, é um dos grandes livros da década.  Ou pelo menos um grande livro para aqueles que, como eu, não acreditam em fórmulas mágicas de sucesso, em receitas transcendentais de felicidade nem em workshops sobre crescimento profissional ministrados por picaretas de vários matizes. Trata-se de 35 segredos para chegar a lugar nenhum, uma deliciosa coletânea organizada por Ivana Arruda Leite (e prefaciada por Machado de Assis, através de psicografia de Desdêmona de Antioquia). São 35 exemplos do melhor daquilo que Ivana define como literatura de baixo-ajuda. Um conjunto de pequenas reflexões, elaboradas com doses inclementes de ironia e sarcasmo, que arejam a vista, "desopilam o fígado" e fazem valer a máxima de Freud segundo a qual o humor é "a vingança do princípio do prazer contra o princípio da realidade". José Roberto Torero, Marcelino Freire, Fernando Bonassi, Xico Sá, Nelson de Oliveira são alguns dos autores convidados ao "empreendimento". Além do cearense Jorge Pieiro.  
Em vez do "segredo do meu sucesso", do "como se tornar um líder" e outras platitudes de espírito, o leitor vai encontrar dicas bem mais produtivas. Coisas do gênero "Como procurar trezentos espetos de picanha desaparecidos" (Cíntia Moscovich), "Como a classe média deve tratar os ricos no Brasil" (Antonia Pellegrino), "Livros de auto-ajuda: como largar este vício" (André Laurentino), "Como maximizar o uso do músculo lingual" (Jorge Pieiro), "Como não escrever um bilhete de suicida" (Xico Sá) e assim por diante. Mas bem adiante mesmo. Em "Como ser feliz sem chegar ao topo", Marcelo Carneiro da Cunha dá preciosas dicas para os milhares de homens e mulheres do nosso tempo que "sofrem com a demanda injusta e sem sentido de atingir um objetivo qualquer". 
Há também a revolucionária (mas perfeitamente factível) cartilha sobre "Como fazer sexo (seguro) na fila do banco", de Luiz Paulo Faccioli; e o produtivo manual sobre "Como escrever um cartão-postal", de José Roberto Torero, que recomenda uma missiva com péssimas recomendações sobre os destinos da viagem do que um pequeno libelo-exaltação dos locais por onde o viajante passa.  
Em resumo, à literatura de auto-ajuda - como indica Andréa Del Fuego, autora de "Como ganhar um Jabuti" (imprescindível, aliás, para aqueles que acabaram de levar o prêmio homônimo pra casa) -, prefira sempre a alta-ajuda. Ou, pelo menos, a auto-literatura.