quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A paixão de Catulo


“I o sangue de Jesus Cristo / Sangui pisado de dô / Nus pé du maracujá  / Tingia todas as flor // Eis aqui seu moço / A estoria que eu vi contá / A razão proque nasce roxa  / A flor do maracujá” (Flor do Maracujá, Catulo da Paixão Cearense).

Até o início do século XX, tocar violão era um ato de heresia nos salões da alta sociedade. Instrumento de chorões, boêmios e malandros, só começou a ser reabilitado para a boa moral e os bons costumes da aristocracia brasileira quando, em 1908, Catulo da Paixão Cearense realizou um recital no Instituto Nacional de Música a convite do maestro Alberto Nepomuceno. “Músicos, literatos, médicos, jornalistas, advogados, engenheiros, professores, diplomatas, misturaram-se a populares”, espantou-se Catulo ao comentar a recepção ao recital, que fez um enorme sucesso. Tanto que ajudou a afirmar pelo País não só a imagem do violão como aquele que seria o principal suporte criativo da música brasileira, mas também a fama do cantor, teatrólogo e poeta nordestino. Em 1914, Catulo surpreenderia novamente o andar de cima ao fazer um recital no Palácio do Catete, a convite da primeira-dama Nair de Teffé (aquela que adotaria o pseudônimo da caricaturista Rian). É possível que tenha apresentado, na ocasião, a linda "Flor Amorosa", polca de Joaquim Callado que recebeu letra sua.
Nascido em São Luis , em 1863, Catulo mudou-se para o sertão cearense ainda criança e em seguida partiu para o Rio de Janeiro, onde sua família se estabeleceu. Na adolescência, quando já convivia com chorões como Viriato, Anacleto de Medeiros e Quincas Laranjeiras, tentou apresentar uma composição numa seresta na República de Estudantes mas foi impedido pelo pai, que quebrou-lhe o violão na cabeça pois não queria o filho envolvido na boemia. Fez-se poeta, editor de cordéis de modinhas e lundus, mas nunca abandonou a música, dono que era de um timbre de barítono e de uma dicção impecável com que interpretava seus poemas - muitos deles, escritos a partir de melodias dos compositores da época. Entre esses compositores, estava João Pernambuco, com quem travou uma briga jurídica pela autoria da melodia de “Luar do sertão”, sua letra mais célebre. Os tribunais decidiram a favor de Pernambuco, que passou a ser reconhecido como autor da música – embora alguns pesquisadores ainda defendam que tratava-se, na verdade, de um tema folclórico adaptado por Catulo.
Aos que quiserem mergulhar nos versos caudalosos do compositor, uma alternativa é vasculhar os sebos e a internet em busca de CDs como Catulo da Paixão Cearense na voz de Vicente Celestino e Paulo Tapajós, que o selo Revivendo lançou em 1994 a partir de fonogramas anteriores; ou a antológica História da Música Brasileira, lançada pela abril nos anos 70. Outra alternativa é o acervo do Instituto Moreira Salles, onde é possível encontrar vasto material de Catulo gravado por diversos cantores.

Poemetes Araújos - X

Minhas esperanças já não dobram
o eixo desta luz.
Não enviesam manhãs
nem
sugerem tardes oblíquas.
Meu peito até
parece
se conformar
com o anverso retilíneo
desta noite.
Não se pergunta:
de que tinta, de que matéria,
este amanhecer?

Não quero a cidade;
o sertão, não quero.
Não há mais sertão nem cidades possíveis.
Sou movido apenas
pela gravidade, fecundando
de horas esse
leito morto: espuma terçã
de pedras, Jaguaribe.

A canção que não há;
a pintura que não há;
a poesia que não há.
Ceci n'est pas une poème!

Mas ainda há o pandeiro,
meu couro rasgando essa tristeza
e fazendo tilintar em platinelas
a vontade de superar a pedra,
de superar o bicho,
de superar o Jaguaribe.

Importa;
cultura é: distanciamento
da natureza,
o homem inventando o homem,
criando novas medidas,
novas tristezas,
para se suportar.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

A batuta do IMS


Uma das notícias mais animadoras para a cultura brasileira nos últimos anos tem data para acontecer: o próximo dia 31 de agosto. É quando o Instituto Moreira Sales (foto acima) inaugura oficialmente a sua Rádio Batuta.  Trata-se do escoadouro em formato digital do acervo de cerca de cem mil fonogramas de música brasileira - a maior parte, discos de 78 rotações - arquivados e preservados pelo IMS.
A rádio tem coordenação do ensaísta Francisco Bosco, o que por si só também é outra notícia animadora. Intelectual com vasto espectro de interesses estéticos - além de parceiro rotineiro de composição com seu pai, João Bosco -, ele tem proposto uma formato cheio de vitalidade para um acervo que, nas mãos erradas, poderia virar um anódino armazém de secos e molhados. Sua gestão à frente da "emissora" propões novas relações e novos interesses para esse leito extenso de artistas e composições sobre o qual se transcorreu a história fonográfica de nossa música - desde os primeiros registros realizados no Brasil, ainda na primeira década do século passado; até a recente e decantada "crise da canção", que colocou em perspectiva - e numa produtiva oposição - os pensamentos de José Miguel Wisnik e Chico Buarque.
A rádio - que já pode ser ouvida em caráter experimental no site da instituição carioca - é apenas uma das interfaces do IMS e de seu tesouro com o público. O instituto carioca (que mantém "filiais" em São Paulo, Belo Horizonte e Poços de Caldas) também publica livros e revistas (como a ótima Serrote, pilotada por Paulo Roberto Pires), promove exposições e edita partituras - entre elas, a iminente caixa Pixinguinha na pauta: 36 arranjos para o programa 'O pessoal da Velha Guarda', que vai reunir partituras que evidenciam o lado arranjador do chorão-soberano.
Abaixo, algumas ideias de Bosco sobre a música popular, "uma criação cultural brasileira extremamente vigorosa e afirmativa", como ele define nessa entrevista ao programa Entrelinhas.

domingo, 22 de agosto de 2010

And I say: "no, no, no!"


A sensacional - e irônica - versão dos Jollyboys para "Rehab", de Amy Winehouse. Aqui, o soul da cantora inglesa virou um delicioso mento, espécie de pai - ou avô - do reggae e de outros ritmos jamaicanos. Os Jollyboys são decanos da música na Jamaica, com uma carreira que remonta a meados dos anos 40, quando até os grandes astros de Hollywood iam assistir a seus shows no Caribe. Entre eles,  o ator Errol Flynn, que teria dado o nome ao grupo.

sábado, 21 de agosto de 2010

Um meteoro chamado Clifford Brown


A essência da genialidade de Miles Davis estava em sua permanente inquietação com o, literalmente, "estado da arte" no campo do jazz. Movido por esse sentimento, ele formou grupos antológicos, gravou discos referenciais (com texturas singulares) e reinventou a música pelo menos umas três vezes no século XX. No entanto, Miles não era "o" virtuose do trumpete - o que, aliás, lhe causava certo embaraço pessoal. Do ponto de vista estritamente técnico, atravessou mais de meio século de carreira à sombra de nomes como Dizzy Gillespie, Lee Morgan, Freddie Hubbard e, principalmente, Clifford Brown.
"(Clifford) é uma mina de ideias melódicas, tanto nas baladas (com um lirismo que Wynton Marsalis luta para igualar) quanto nos dedilhados frenéticos (mas que fazem sentido) nos temas em tempo rápido. Tudo isso a bordo de um som cheio e redondo do trompete, de uma beleza que, digamos, Dizzy Gillespie não quis procurar e Miles Davis não conseguiu encontrar", define Ruy Castro no livro Tempestade de ritmos. Ao contrário de Davis, Clifford teve muito pouco tempo para mostrar trabalho. Sua carreira foi tão curta quanto igualmente impactante no mundo do jazz. Ao morrer em 1956, aos 26 anos, num acidente de carro que também vitimaria o pianista Richie Powell, ele tinha meteóricos cinco anos de carreira e apenas três de gravações - em que produziu discos em torno dos quais continuam a orbitar os candidatos a trumpetista.
São basicamente dois os conjuntos mais marcantes de gravações de Brown. O primeiro para a francesa Vogue, com discos gravados em Paris, às escondidas do então patrão Lionel Hampton. Nessa série, CB foi acompanhado por nomes como Quincy Jones, o trompetista Art Farmer, o sax-alto Gigi Gryce e o trombonista Jimmy Cleveland. O segundo é a antológica parceria com Max Roach no que entraria para a história do jazz como o Clifford Brown-Max Roach Quintet. Foram 63 faixas registradas para a gravadora EmArcy - hoje, espalhadas em CDs ainda possíveis de serem encontrados em qualquer boa antologia do gênero.
Esses três anos ao longo dos quais Clifford dedicou-se às gravações foram de tal forma intensos que o guia da Penguin lista nada mais nada menos que 25 discos no currículo de Brown. Alguns desses discos, principalmente aqueles resultados de apresentações ao vivo, infelizmente, têm uma péssima qualidade de som - não raro, com uma forçada tentativa de dar mais proeminência à bateria de Roach. Ainda assim, a força do som de CB incendeia os registros e chama logo a atenção do ouvinte.
Se Miles levou mais de meio século promovendo suas revoluções no mundo do jazz, Clifford Brown precisou de apenas cinco anos para reinaugurar a história do gênero. Miles era a teoria, CB, a prática.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O valor da liberdade de expressão


O sociólogo Demétrio Magnoli é um aríete do neoliberalismo, espécie de viúva de FHC (que, aliás, chegou a escrever a apresentação de um de seus livros) a quem os jornalões pagam um apanágio de projeção midiática. Difere-se do tom irresponsável e canastrão de Reinaldo Azevedo e Diogo Mainardi apenas pela rala plumagem acadêmica que lhe serve de biombo para o tatibitate de rasteiras ideias. Mas é igualmente irresponsável e canastrão. É o típico intelectual sabujo, para usar uma expressão de Mino Carta, com particular fôlego para falar bobagens sobre, por exemplo, a questão racial no Brasil.
Ontem, durante evento da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Magnoli - que, a depender da biruta de quem lhe paga, pode falar sobre qualquer assunto fazendo-se passar por um especialista - saiu-se com uma pérola de fazer corar mesmo o mais "integrado" dos jornalistas. Ao falar da sobrevida dos jornais impressos diante das novas possibilidades de produção e disseminação da informação, defendeu que o impresso é "mais importantes do que nunca" porque impede a "desconstrução" da opinião pública que estaria em curso nos incontáveis palanques de debates criados pela internet. Segundo Magnoli, a credibilidade dos jornais impressos - pasmem! - está associada à ideia de valor, ao dinheiro necessário para publicá-los. "Publicar na internet não custa nada" e por isso, na lógica alucinada do sociólogo, não tem valor.
Ora, ora. O mesmo analista que vive a questionar as tentativas legítimas de controle social da mídia em nome da suposta "liberdade de expressão", que vive tentando colar (de modo ardiloso e cínico) a pecha de anti-democrático no governo Lula, é o mesmo que não sabe conviver com a profusão de tribunas da internet. É por essas e outras que o debate sobre a grande imprensa no Brasil anda tão atravancado e distorcido.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O canto contra a loucura


Elza Soares nasceu há 73 anos na favela de Água Santa, subúrbio de Engenho de Dentro, Rio de Janeiro, "planeta da Fome", como desagravaria diante de um Ary Barroso estupefato em seu programa de rádio. Filha de uma lavadeira e um operário. Aos 12 anos, já era mãe. Aos 18, viúva. Casou-se novamente, viveu uma relação tumultuada com Garrincha, perdeu um filho. O canto, como definiria seu biógrafo José Louzeiro, era seu remédio diante de tantas tragédias. Elza cantava - e ainda canta - para não enlouquecer. Sua voz rouca, rascante, se impregnou da intensidade de sua biografia. Ceder à tentação de compará-la a cantoras como Billie Holiday ou Bessie Smith (pela força do canto e pela trajetória caótica) ou ainda Ella Fitzgerald (pelos scats virtuosos) seria uma injustiça com uma voz que, seja no samba ou no jazz, inaugurou uma trilha própria, que percorreu seu caminho movida apenas por seus músculos e vísceras. Seus discos - que, em geral, falam em alegria, em samba, em carnaval -, são o testemunho de sua crença na música, a arte à qual se entregou como pouquíssimas cantoras brasileiras.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

O enigma Ted Hawkins

Há muitos anos, assisti a uma entrevista de Ted Hawkins no Jô Soares e, mesmo meio embriagado pelo sono (ou por uma real embriaguez, não lembro), a música desse obscuro bluesman americano me fascinou de imediato. Seu estilo ao violão, que remete à genial rudez de Richie Havens e que se utiliza de uma indefectível luva; e sua voz, suavemente roufenha, mais doce (e não menos intensa) que seu pares; ficaram martelando minha memória durante um bom tempo. Corri atrás dos discos, conversei com alguns interlocutores da tribo do blues na Cidade, pedi a amigos que viajavam aos EUA e... nada. Ted Hawkins parecia uma ilusão, uma invenção minha, algo que só eu teria visto e escutado e que parecia ser completamente desconhecido para o restante da humanidade.
Foram longos anos de curiosidade em busca de alguma música do cara. Eis que a internet fez circular os discos, democratizou os acervos fora de catálogo - criminosamente mantidos excluídos do público por parte das gravadoras - e, pimba!, finalmente encontrei suas gravações. Também decobri algo sobre sua carreira, dividida basicamente entre a Califórnia e a Europa. Vivi, então, uma boa temporada em que o som desse bluesman nascido no Mississipi imperou no toca-CD (bem, isso foi na pré-história, bem antes da era do MP3...). Só hoje, confesso, me ocorreu que, com o advento do youtube, eu poderia provar ao mundo (pelo menos ao mundo em que transito e que não sabia dele) que Ted Hawkins era real, que existia de fato para além do meu imaginário e que fazia (infelizmente, morreu em 1995) uma música fantástica. Eis então o homem, em carne, osso e voz.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Tudo é botequim!


"Tudo é botequim. Os esnobes podem torcer o nariz, mas esse conceito, além de instigante, tem antecedentes ilustres. O cristianismo nasceu ao redor de uma mesa em Jerusalém, com treze homens bebendo vinho e trocando provérbios. Na Idade Média, as melhores famílias europeias se estratificaram batendo canecos em volta de uma mesa redonda e limpando a boca com as costas da mão. Sem a boemia literária dos cafés do Palais Royal, talvez não houvesse a Revolução Francesa - foi de lá que, meio zuzus, eles saíram para derrubar a Bastilha. E o próprio Lenin deu tchau ao botequim defronte à sua casa, o Cabaré Voltaire, em Zurique, onde jogava xadrez com os dadaístas, e pegou aquele trem rumo à Estação Finlândia".

Ruy Castro, em trecho do livro Carnaval no fogo (Companhia das Letras). A imagem acima é do genial Lan.

Salve o samba, salve a santa, salve Clara!

Para celebrar o aniversário de Clara Nunes, que estaria completando hoje 67 anos, uma pequena raridade: a Guerreira cantando "Portela na Avenida"para uma multidão de mais de cem mil pessoas no Morumbi, em 1982. Que a energia e a luminosidade de Clara siga sempre nos inspirando.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

A civilização pela ciência



Há boas e más notícias no topo da pirâmide da educação brasileira. É o que revela o livro Doutores 2010: Estudos da Demografia da Base Técnico-Científica Brasileira, resultado de um estudo desenvolvido pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) e que mapeou todo o andar de cima de nossas universidades entre os anos de 1996 e 2008. O livro foi lançado hoje em Brasília pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e esgrima dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Ministério do Trabalho.
Para nossa sorte, as boas notícias superam as conclusões negativas. Entre elas (as boas notícias), está o aumento significativo do número de doutores no Brasil. Em 1996, eram apenas 2830 luminares que se titulavam por ano. Em 2008, esse número saltou para 10.705, um aumento de 278%. Ao longo desses 12 anos, foram 87.063 pessoas tituladas e um crescimento médio anual de 11,9%.
Também é animadora a notícia de que esse aumento significativo no número de doutores vem acompanhado de uma descentralização das titulações. O maior número de doutores titulados ainda está na Região Sudeste - 67.626, o que corresponde a 77,7% dos 87.063 doutorados entre 1996 e 2008. Entretanto, ao longo desse período, o Nordeste registrou um aumento de 2.487% no número de doutores que conseguiram o título nas universidades da região. Em 1996, 1,4% dos doutores estavam no Nordeste. Em 2008, este número passou para 9,7%
No entanto, e apesar da discreta euforia com que o Governo Federal anunciou o resultado do estudo, ainda preocupam alguns números revelados pelo CGEE. Um deles é o de que, embora com pequeno incremento ao longo dos últimos anos, apenas 3,7% dos doutores estão empregados nas atividades profissionais de ciência e tecnologia. Outro é o de que as titulações nas áreas da chamada ciência dura (engenharia, ciências exatas e da terra, biológicas e agrárias) perderam participação no bolo dos doutorados de todas áreas de conhecimento, caindo de cerca de 55% em 1996 para cerca de 40% em 2008.
Essa queda nos remete a um cenário de queda de vitalidade em setores como a indústria de transformação, o setor de inovação tecnológica e o de desenvolvimento de patentes e faz ressoar a palestra recente de João Moreira Salles na Academia Brasileira de Ciências, em que o cineasta e jornalista questionou as assimetrias na economia simbólica da formação profissional e científica no Brasil. "Existem no Rio quatro universidades que oferecem cursos de cinema; no Brasil, são ao todo 28, segundo o Cadastro da Educação Superior do MEC. No ano passado, a PUC-Rio formou três físicos, dois matemáticos e 27 bacharéis em cinema. Existem 128 cursos superiores de moda no Brasil. Em 2008, segundo o Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira], o país formou 1.114 físicos, 1.972 matemáticos e 2.066 modistas. Alimento o pesadelo de que, em alguns anos, os aviões não decolarão, mas todos nós seremos muito elegantes", brincou Salles.
Em seu discurso, o cineasta chamou atenção para a carência de engenheiros no País. Segundo o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI), a taxa de formação de engenheiros no Brasil é inferior à da China, da Índia e da Rússia, países emergentes com os quais competimos. "A Rússia forma 190 mil engenheiros por ano, a Índia, 220 mil e a China, 650 mil, diz o relatório. Nós formamos 47 mil. Os números da China são pouco confiáveis, mas outras comparações eliminam possíveis dúvidas. A Coreia do Sul, por exemplo, com 50 milhões de habitantes, forma 80 mil engenheiros por ano, 26% de todos os formandos. Na China, a crer nas métricas, essa proporção chega a 40%. Em 2006, a taxa por aqui era de apenas 8%. Até o México, país com indicadores sociais semelhantes aos nossos, hoje possui 14% de seus formandos nessa área".
Não se trata de questionar a importância do investimento na pesquisa e da profissionalização na área de humanas (na qual humildemente se inclui este blogueiro), nem de alimentar o pragmatismo cínico do discurso que insiste em relacionar universidade e mercado. Mas de repensar o modelo de aproximação entre a juventude brasileira, cada vez mais seduzida pelo canto da sereia da economia da cultura (que deve sim ser encarado, ressalte-se como um estruturador de políticas públicas), e a ciência num país que cada vez menos valoriza esta última. As vocações, afinal, estão à espera de políticas que lhes atualizem, sejam elas para o cinema, a literatura e a dança; sejam para a engenharia, a matemática e a física.
"Sempre me espanto com a presença cada vez maior de projetos sociais que levam dança, música, teatro e cinema a lugares onde falta quase tudo. Nenhuma objeção, mas é o caso de perguntar por que somente a arte teria poderes civilizatórios. Ninguém pensa em levar a esses jovens um telescópio ou um laboratório de química ou biologia? Centenas de estudantes universitários gostariam de participar de iniciativas assim. Com entusiasmo - e um pró-labore -, mostrariam que a ciência também é legal e despertariam talentos", aposta Salles.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O bazar de Moraes



Quando deixou os Novos Baianos, em 1975, para seguir carreira solo, Moraes Moreira se tornou um dos principais responsáveis pelo crescimento do carnaval de rua em Salvador. Tanto por sua participação como cantor no Trio Elétrico de Dodô e Osmar, quanto pelos êxitos carnavalescos que gravou - alguns dos quais assinados em parceria com o cearense Fausto Nilo. Mas a evidência desse lado carnavalesco - que fez o repertório de Moraes onipresente nas praças e cortejos públicos do carnaval da época - não embotou a excelência das outras personas do baiano, como o compositor de sambas, choros e forrós. Justamente nesse período, entre a segunda metade dos anos 70 e o início dos anos 80, Moraes produz seus grandes discos. Em especial, esse primoroso Bazar Brasileiro (1980). Nele, Moraes revisita o forró ("Forró do ABC", parceria com Patinhas) e o frevo ("Que papo é esse?", parceria com Capinan e Fausto Nilo), mas também passeia por outros gêneros, como o choro-canção "Meninas do Brasil", o grande momento de sua parceria com Fausto Nilo. Há ainda parcerias (nem tão inspiradas, mas igualmente preciosas) com Waly Salomão ("Cabeleira de Berenice"), Abel Silva ("Meninos do Brasil") e Jorge Mautner ("Lenda do Pégaso").

O debate e o punk


Charge do genial Angeli sobre o debate entre os presidenciáveis da semana passada.

sábado, 7 de agosto de 2010

O "beat" muito antes do mangue


Vez por outra, a soul music que começou a ganhar corpo no País nos anos 70 recorria a elementos da música nordestina para apimentar seus arranjos. Dos timbres e composições de Dom Salvador e Abolição ao interesse declarado de Tim Maia pelas coisas daqui de cima (expresso em canções como Padre Cícero e Coroné Antonio Bento, por exemplo), entre muitas outras referências, é possível rastrear um tanto de xote e umbigada no DNA da geração black que invadiu as pistas dos subúrbios. Entretanto, foi com o pernambucano Di Melo que o soul colocou seu pé com força no Nordeste. Seu disco homônimo de 1975 - que foi relançado em CD há alguns anos pela EMI - chegou a reunir Hermeto Pascoal e Heraldo do Monte em gravações que trazem um groove irresistível, como "Kilariô", "Se o mundo acabasse em mel", "Pernalonga" e "A vida em seus métodos diz calma". Com seu balanço, Di Melo explica em parte por que um movimento como o Mangue Bit - que decidiu remexer na memória do funk e da música soul que embalava as noitadas em Recife - deu tão certo em Pernambuco. O disco é presença obrigatória em qualquer boa festa black.


Cadenciando a cadência

Opinião pessoal e intransferível: as três melhores baterias do Rio de Janeiro hoje são Portela, Rocinha e Ilha. Comandadas respectivamente pelos mestres Nilo, Maurão e Riquinho. Cadência e virtuose! Depois que Mestre Odilon deixou de reger baterias no carnaval carioca, são esses três mestres, a meu ver, os que melhor se afinam com os ensinamentos do Pelé das baterias. Na Ilha, o destaque são as terceiras, verdadeiros violões de 7 cordas na batucada. Na Portela, a engenhosidade e a inteligência de Nilo no comando da bateria - por ser portelense, sei que sou suspeito, mas digo que essa é a melhor bateria do Rio hoje. Na Rocinha, o destaque é a harmonização precisa entre todos os naipes e o comando seguro de Maurão, que impõe um dos andamentos mais balanceados entre todas as escolas de samba. Os três personagens se inscrevem perfeitamente do dizer de Haroldo Costa, segundo o qual as escolas de samba foram, ao lado do jazz e, claro, do próprio samba, a maior invenção musical do século XX.





sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Samba em bemol diminuto



Nas noites de sábado são eles que comandam o samba do Vila Camaleão, na Praia de Iracema. Com muita categoria, ressalte-se. O nome veio de um acorde musical: o Sol bemol diminuto, que se cifra "Gbdim", mas que, no caso do grupo se escreve "Gebedim". Amarrando, de modo leve e maduro, as pontas entre tradição e contemporaneidade, eles percorrem o cânone do samba, mas também apresentam ao público (que lota o sobrado aconchegante do Vila Camaleão todos os sábados) novas composições - incluindo as de autoria do grupo - e novas leituras para músicas de outros gêneros. Com vocês, algumas ideias de Tiago, Bruno, Leonardo e Mateus (da esquerda para a direita na foto acima) sobre samba, repertório, pesquisa e formação musical.

Talabarte - Inicialmente, a pergunta-clichê, mas inevitável para esse primeiro contato: como nasceu o grupo? Quais são os integrantes do Gebedim?
Mateus - Nós já nos conhecíamos, mas começamos a conviver mais por causa do gosto em comum pela banda Los Hermanos. Acho que foi numa festa lá em casa que surgiu a ideia de montarmos uma banda de samba. Não demorou muito tempo, marcamos um ensaio na casa do Tiago e corremos atrás de arranjar instrumentos para podermos montar a banda. Ninguém sabia tocar nada, com exceção de mim e do Bruno, que sabíamos só um pouco de violão, além de piano clássico. As primeiras músicas eram muito mais sambadas do que sambas de verdade. Depois de muitos ensaios e muito barulho na casa dos outros nós conseguimos criar um repertório legal ao mesmo tempo em que fomos aprendendo a tocar os instrumentos. No início, a banda contava com sete integrantes. Hoje somos apenas quatro: Mateus Perdigão (violão), Bruno Perdigão (cavaco), Tiago Porto (Surdo) e Leonardo Fontenele (Pandeiro). Os outros três que ajudaram a fundar a banda foram o João Paulo, que era o principal vocalista, o Bruno Fontenele, antigo surdista e irmão do Leonardo, e o Martiniano, ex-pandeirista que batizou a banda.

Talabarte - O nome do grupo tem uma origem curiosa. Gostaria que vocês explicassem de onde surge o nome Gebedim. Ou seria mais preciso escrever GbDim?
Gebedim - A escrita que a gente adotou é Gebedim. O nome é uma leitura simplista de um acorde pouco comum, o Gbdim (sol bemol diminuto). Após os primeiros ensaios, a gente tinha o costume de ir para um bar que fica no começo da rua Lauro Maia - popularmente conhecido como Bar do Barbudo - para ficar conversando sobre samba e outras coisas. Numa das vezes estávamos discutindo um nome para a banda. Tentamos tudo e nada nos agradava. Enquanto procurávamos inspiração em cifras e letras de musica, o antigo pandeirista, o Martiniano, surgiu com o nome Gebedim. Ninguém entendeu o que era aquilo, até que ele mostrou que era um acorde cifrado em uma música do Chico Buarque. Como não havia nenhum consenso, nada melhor e todos riram muito dessa história, acabamos por acatar esse nome.

Talabarte - Como se dá a escolha do repertório de vocês? Quais as fontes de pesquisa e qual o critério de seleção das músicas que compõem a apresentação do Gebedim?
Gebedim - A escolha do repertório é coletiva e se dá na base do consenso. Depende muito do que cada um está escutando e mostra aos outros, mas só se toca o que todos concordarem em tocar. Às vezes nos encontramos só para discutir repertório, apresentar novas músicas, discutir sobre arranjos, etc. Como a banda se apresenta semanalmente, há uma rotatividade nas músicas tocadas. Algumas tocamos para nós mesmos, sem saber qual vai ser a reação do público e outras a gente sabe que tem que estar em qualquer repertório básico de samba. Outra coisa que podemos destacar é a vontade de sempre tocar músicas de novos compositores ou até mesmo de fazer versões de músicas que não são sambas, mas que ficam muito bem quando transformadas.

Talabarte - Além do Gebedim, vocês também organizam o bloco Luxo da Aldeia, que faz um (belo) trabalho de pesquisa de músicas de carnaval de autoria de compositores cearenses. Nesse "mergulho" que vocês fazem, vocês se depararam com sambas de compositores cearenses? Que músicas/compositores chamaram a atenção de vocês?
Mateus e Bruno - O Luxo da Aldeia é um projeto formado por Mateus, Bruno e o Tiago, da Gebedim, além do Marcus Vinicius, do Concentra mas não sai, e do João Paulo. O bloco toca frevos, marchas e sambas carnavalescos e cada tipo de música tem o seu destaque. No repertório do bloco existem sambas de Lauro Maia – que também compunha balanceios, um ritmo próximo ao samba - Mozart Brandão, Evaldo Gouveia e Luiz Assunção. Uma das músicas que mais se destaca é “Adeus Praia de Iracema”, de Luiz Assunção, que conta a história de quando o mar invadiu o litoral da Praia de Iracema. Essa invasão aconteceu por causa da construção do porto do Mucuripe, na década de 50, e destruiu boa parte do patrimônio construído na orla. Além de muito bonita, essa música conta um pouco da história da nossa cidade. Alguns sambas que são tocados no Luxo da Aldeia são também tocados no Gebedim, como "Deus me Perdoe", de Lauro Maia e Humberto Teixeira, e "O Conde", de Evaldo Gouveia e Jair Amorim. Contudo devido a rotatividade do repertório eles não estão sempre presente nas apresentações.

Talabarte - Como vocês percebem a recepção do público cearense ao trabalho que vocês desenvolvem no Gebedim?
Gebedim - A recepção tem sido muito boa tanto por parte do público como dos músicos daqui que já estão na luta faz tempo. Percebemos que as pessoas se identificam com o repertório por motivos distintos. Uns gostam mais dos clássicos, outros preferem quando tocamos músicas que nem sempre estão nos repertórios de outros, como Mundo Livre S/A, Mombojó, Orquestra Imperial, Los Hermanos, entre outros. Achamos que com essa mistura de sambas antigos, sambas novos e não-sambas tocados como samba, além das músicas autorais, nós conseguimos agradar várias pessoas, e não só o público sambista.

Talabarte - Muitos grupos de samba contemporâneos a vocês (e formados por jovens como vocês) são, a meu ver, soldados de preservação de uma memória importante para a música brasileira. No caso de vocês (essa é a minha leitura), há um compromisso com essa memória, mas há também a atenção ao trabalho de novos compositores e, o que acho mais relevante, o trabalho autoral. Dito isso, duas perguntas: quais são os novos compositores que despertam o interesse do Gebedim? Por que?
Gebedim - Edu Krieger, Marcelo Camelo, Moyseis Marques, Rodrigo Maranhão, Marcos Sacramento, Teresa Cristina, Rômulo Fróes, Zé Paulo Becker, o pessoal do Casuarina, do Sururu da Roda e vários outros. Existe um número muito grande de bons novos compositores, além de intérpretes e músicos. O que desperta o interesse é que estão fazendo um bom samba, trazendo inovações, novas maneiras de compor, de escrever e tocar se preocupando também com o que veio antes deles. Nós podemos contribuir também divulgando esses novos nomes. Já soubemos de gente que conheceu o Casuarina porque ouviu a gente tocando uma música deles e foi atrás de conhecer.

Talabarte - Ainda em relação à pergunta anterior: como se dá esse processo de composição de vocês? Como vocês trabalham essas composições em suas apresentações?
Gebedim - Como o Bruno é o responsável pela maior parte das composições (ou todas), a gente vai deixar essa pra ele responder:
Bruno - O processo de composição ainda não é tão regular quanto eu gostaria. Ainda não tenho o hábito de compor de maneira constante. Tenho mais facilidade em fazer a música. Às vezes passo meses com uma música encostada até que consigo botar uma letra. Mas ainda é tudo de forma muito tímida. No grupo, esse processo também ainda está bem inicial. Além de tudo, é muito difícil trabalhar música autoral no samba, já que nas festas as pessoas querem ouvir sempre as mesmas coisas e nem sempre estão dispostas a prestar atenção. Mas a gente vai colocando aos poucos em nossas apresentações e queremos, no futuro, fazer a gravação de algumas dessas músicas para poder divulgá-las melhor.

Talabarte - Dois dos integrantes, o Mateus e o Bruno, têm formação musical erudita. De que forma o rigor e a disciplina do universo acadêmico ajudaram na hora de abordar um gênero como o samba? Na via inversa, é possível falar de algum tipo de contribuição do samba à execução erudita?
Bruno - O conhecimento de música erudita nos ajudou muito a ter um horizonte musical muito amplo. Nosso contato com a música sempre foi essencialmente nas formas, nas harmonias, nas expressões musicais. Então, sempre ouvimos música de várias estilos. Ouvimos samba do mesmo jeito que ouvimos de rock, reggae, rumba, sabendo entender o que cada estilo tem de bom. É claro que temos nossos gostos e preferências. Nunca tinha parado pra pensar realmente sobre isso antes de sua pergunta, mas acho que a minha vontade de tocar samba veio de uma atração por uma linguagem brasileira, pela expressão ritmada do samba. Isso também veio de uma forte influência de quando tive meus primeiros contatos com a música de Ernesto Narazeth no piano, um dos compositores eruditos que muito contribuiu para uma linguagem brasileira na música
Mateus – Além do que o Bruno falou, coloco também que o estudo do piano me ensinou a importância de tocar bem e corretamente seja o estilo que for. Muita gente acha que a música erudita e a música popular são antagônicas. Não vejo dessa forma. Acho que é tudo música e sempre que quebram essas "barreiras" há ganhos maravilhosos para todos os lados. Para ilustrar isso, tomo como exemplo a suíte "Retratos", do maestro Radamés Gnattali, interpretada por Jacob do Bandolim. Jacob chegou a escrever uma carta para Radamés afirmando que "Mais do que ensaiar, é necessário estudar". O Radamés foi uma pessoa que influenciou bastante muita gente da música brasileira e merece uma atenção especial, principalmente quando se fala sobre esse assunto. Para mim, cada detalhe da música deve ser levado em consideração, principalmente se estamos nos apresentando em público. Em relação à contribuição do samba à música erudita posso dizer que as harmonias e contrapontos dos compositores brasileiros ficaram mais perceptíveis para mim sempre que vou tocar piano, principalmente nas músicas de Ernesto Nazareth.
Leonardo - Falando sob a nossa perspectiva, a formação musical erudita dos dois nos ajudou bastante no que se refere principalmente à disciplina e ao estudo mesmo, pesquisar, testar novas batidas, e não deter somente o conhecimento prático do instrumento mas aliar sempre à teoria também.

Talabarte - Que discos de samba são obrigatórios na discoteca do Gebedim?
LeonardoAxé, do Candeia; Todo menino é um rei, do Roberto Ribeiro; e Cartola (1976), do Cartola.
TiagoEstudando o samba, do Tom Zé; e Construção, do Chico Buarque.
BrunoMemorável samba, do Marcos Sacramento; Poeira Leve, da Adriana Maciel; e todos do Cartola.
Mateus – Todos do Cartola, Bebadosamba, do Paulinho da Viola; e Acabou Chorare, dos Novos Baianos.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Quem não vem pra Flip

Cartum de Reinaldo (Casseta & Planeta) publicado na seção A Arte de Zoar, do segundo caderno do Globo.

Laerte e o coração sofredor

Um mestre em movimento



Um dos traços norteadores da obra caudalosa de Antonio Candido é a consciência de uma saudável dinâmica que cerca as interpretações e análises na seara das artes - e da literatura, em especial. Além de ser um intelectual que reconhece os valores estéticos para além das amarras dos valores éticos e políticos, ele é, na definição da crítica Leyla Perrone-Moisés, um crítico de enunciação delicada, que nunca se apresenta com juízos de verdade definitivos e indiscutíveis. ''No lugar das certezas, Antonio Candido prefere o prazer do movimento'', reforça o jornalista José Castello.
Desde 2007, a editora Ouro Sobre Azul vem relançando a obra de Antonio Candido. Coordenado pela designer e editora Ana Luisa Escorel, filha do professor, o projeto vem permitindo às novas gerações de leitores constatar como o pensamento de Candido realizou seus movimentos dentro do campo das letras e da cultura brasileira ao longo dos últimos 60 anos. E, mais importante até, revela como a própria literatura brasileira vem se movendo e se reconfigurando dentro e a partir das idéias de um dos mais importante pensadores brasileiros de todos os tempos.
Na primeira fornada de reedições da Ouro sobre Azul, sete livros voltaram a circular. Brigada Ligeira, o primeiro livro de Candido, foi publicado originalmente em 1945 e é quase todo formado por artigos sobre a narrativa brasileira dos anos 40. Na época, Candido foi o primeiro a tentar realizar uma análise do conjunto da obra ficcional de Oswald de Andrade - ''Imagino, pelas rasteiras que passa nos contemporâneos, as rasteiras que passará nos críticos do futuro'', antecipou - e um dos primeiros a chamar atenção para os livros de dois escritores até então desconhecidos: Clarice Lispector e Fernando Sabino. ''Este romance é uma tentativa impressionante para levar a nossa língua canhestra a domínios pouco explorados'', escreveu sobre Perto do Coração Selvagem, de Clarice.
Em O observador literário, de 1959, Candido consolida sua guinada para os estudos literários - ele que até então era professor assistente de sociologia na USP. E começa também a se interessar por um tipo de análise que se detém na personalidade de alguns escritores e na relação entre obra e biografia. É quando traça deliciosos ''retratos'' de personalidades como Mário e Oswald de Andrade, Giuseppe Ungaretti e Vinícius de Moraes. ''Se hoje dermos um balanço no que Vinicius de Moraes ensinou à poesia brasileira, é capaz de nem percebermos quanto contribuiu, porque, justamente por ter contribuído muito, o que fez de novo entrou para a circulação, tornou-se moeda corrente e linguagem de todos'', celebrou.
Iniciação à Literatura Brasileira é de 1978 e reafirma as propostas do fundamental Formação da Literatura Brasileira, lançado por ele em 1959. Segundo o professor, o homem brasileiro era fruto não só de sua formação social, mas também do mundo imaginário criado por seus artistas e escritores. Já Vários Escritos é composto por textos produzidos entre os anos 60 e os anos 80. Neles, Candido defende, entre outros temas, o papel das universidades e das ciências ''humanas'' no contexto da cultura brasileira. ''Era preciso estabelecer em certos setores um tipo de ensino superior desvinculado das injunções imediatas da formação profissional; e criar um tipo de ensino ligado à pesquisa, que tivesse como finalidade maior a investigação, a descoberta, a inovação'', escreveu sobre a criação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas de São Paulo.
O discurso e a cidade e Recortes são livros de 1993 e também contemplam um amplo leque de temas. Em especial o segundo, que reúne 50 textos que vão de palestras, discursos, artigos de jornal e revistas até a perfis de mestres e amigos. O formato de coletânea também pauta a edição de O albatroz e o chinês, livro mais recente do professor e único título inédito dentro dessa primeira leva de reedições da Ouro sobre Azul. Nele, Candido vai da análise de aspectos da obra de Mallarmé e François Villon até reminiscências sobre Mário de Andrade e comentários entusiasmados sobre o pensamento de Darcy Ribeiro.
Sobre o funeral de Darcy, um emocionado Candido escreve: ''Há certo simbolismo nas três bandeiras que cobriam o seu caixão: a do Brasil, a do seu estado de Minas Gerais e a dos Sem-Terra, pois esta modificou o significado das outras duas. De fato, irmanadas à terceira, elas não encarnavam o país dos donos da vida, nem eram pendões de festa cívica, objetos cansadíssimos de discursos em cerimônias rotineiras. Misturadas com a bandeira dos espoliados, que lutam para sobreviver, representavam também o país dos pobres, dos que precisam ser finalmente incorporados à nação''.
Mais do que um crítico que soube se movimentar com originalidade e clareza de estilo dentro do panorama geral da literatura brasileira, Candido tornou-se também um pensador que não se furtou aos impasses e questões políticas e humanas colocadas por seu tempo. Na medida em que entende o homem brasileiro como resultado da história literária da Nação, consolidou seu nome, como bem define Alain Touraine, como um intelectual que estuda o passado não como uma operação saudosista, mas como um possibilidade de abrir caminhos para grandes movimentos democráticos e de cidadania no presente. Eis o atestado de força e de permanência em sua obra.

Obs: a versão original deste texto foi publicada no jornal O POVO, em 2007. Abaixo, um discurso do professor em homenagem a Florestan Fernandes realizado em setembro de 2009.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Não vadeia Clementina

Hermínio Bello de Carvalho faz uma homenagem tocante a Clementina de Jesus, num registro de 1984. No acompanhamento, entre outros, o grupo Fundo de Quintal ainda em uma de suas primeiras formações. E nada mais precisa ser dito. Com a palavra, o próprio Hermínio.

domingo, 1 de agosto de 2010

Tudo fachada






Em meados dos anos 90, com o advento definitivo do CD como suporte musical hegemônico no mercado, não foram apenas os engenheiros de som que viram os matizes das gravações analógicas serem comprimidas nos bits dos registros digitais, mas também os artistas gráficos, designers e pintores tiveram que lidar com um desafio semelhante em sua área de criação. Os 31 x 31 cm da capa de papelão dos LPs estavam sendo "comprimidos" num papelote três vezes menor, de pouco mais de 14 x 12 cm, que a partir dali iria ostentar capa dos novos (e também dos antigos) discos.

Um ou outro artista ainda conseguiu se sair com soluções interessantes para o novo (e reduzido) tamanho das capas dos discos. Mas ficou claro que algo se perdeu entre a era dos discões, cujos encartes eram manuseados quase como um ritual que acompanhava toda a audição do LP; e a então novíssima era das caixinhas de plástico - que, como lembra Ruy Castro no artigo "O homem que inventou a capa do disco", vinham "envoltas num infernal preservativo à prova de unhas".
A imagem que durante décadas servia para apresentar, representar ou mesmo explicar a música gravada, ganhava um novo sentido na nova economia simbólica da era digital. Essa processo desaguaria, em nossos dias, na era da audição veloz e fragmentada, quando a tecnologia do MP3 e quejandos estilhaçou o conceito mercadológico do disco e apartou de vez som e imagem - ou pelo menos a imagem das antigas capas. Para o bem e para o mal, escuta-se cada vez menos álbuns para se escutar apenas e cada vez mais músicas, tão assistemáticas e diversas quanto mais nova for a tecnologia e o design do Ipod.

No entanto, a história gráfica da indústria fonográfica, que remonta a Alex Steinweiss, publicitário norte-americano que criou, em 1939, a primeira capa para um álbum, produziu peças antológicas, que ainda embalam os sentimentos dos mais saudosistas e fascinam os modernos de olhar mais delicado. Das capas leves e inteligentes dos discos do selo Blue Note ao tom repolhudo e pomposo das fachadas dos eruditos da Deutsche Grammophon. Da força das capas dos discos de rock dos anos 60 e 70 à explosão kitsch da música pop dos anos 80.
No Brasil, a história dos capistas de música começa com nomes como Paulo Brèves e Paez Torres, argentino radicado no Rio de Janeiro; passa por revolucionários como Cesar Villela, que assinou as capas da gravadora Elenco durante boa parte dos anos 60; até chegar em Elifas Andreato, a expressão maior dessa arte em nosso País. Da novíssima geração, destacam-se nomes como o cearense Renan Costa Lima, que assinou a capa de CDs de artistas como Céu e Cidadão Instigado.

Ao longo desse post, reuni algumas das capas que mais me fascinaram ao longo de minha vida de apreciador de música. E de discos. Naturalmente, não é possível medir a qualidade da música pelos truques e sacadas dos capistas e há casos notórios de grandes discos embalados por capas pífias. Mas, em geral - e a história do jazz, por exemplo, comprova isso -, uma boa capa é garantia de ótima música.