sexta-feira, 30 de julho de 2010

Arvo Pärt: pureza e espaço


Um compositor minimalista cuja música convida o ouvinte ao espaço, construído em meio à economia das notas. É assim que Bjork se refere ao estoniano Arvo Pärt, entrevistado pela cantora islandesa em 1997 para um programa da BBC. A definição não poderia ser mais feliz. Obras como Arbos e Summa (vale conferir a interpretação de Paavo Järvi para esta última) comprovam essa impressão de Bjork, revelando a generosidade de um compositor que parece preocupado com a pureza, com a redenção do ser humano pela música. Ouvir a obra de Arvo Pärt é algo extraordinário, são vozes e notas caminhando simultaneamente, abrindo uma nova estrutura de contraponto - ou mesmo abolindo esse expediente - para lançar uma nova luz sobre a relação entre as notas. "Muitas músicas dos últimos séculos, você apenas senta e escuta. Em sua música, é possível entrar e viver entre as notas", define Bjork diante do compositor. Abaixo, a entrevista.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Ode Pacífica (José Paulo Paes)


Levei comigo um punhal,
Com mãos firmes, cautelosas,
Como se leva um segredo,
Como se leva uma rosa.

Assim armado, enfrentei
As emboscadas e os crimes.
Nos corredores do ódio,
Combati, gritei, perdi-me.

O punhal me dominava,
Fascinava-me a revolta.
(Vivemos presos à chave
Que em sigilo nos solta.)

Mas um dia de verdade,
Que nega todo punhal,
Pôs brisas na minha face,
Furtou-me às vozes do mal.

Agora, dora, a teu lado,
Estou sempre a recompor
Essa verdade tão simples,
De que me torno senhor.

Simples verdade de amor.

"Ode Pacífica", de José Paulo Paes. Na imagem acima, registro da performance "I like America", de Joseph Beuys.

domingo, 25 de julho de 2010

Samba no terreiro da delicadeza


Os anos 2000 foram uma das décadas mais produtivas na carreira de Cristina Buarque. Mansamente, sem fazer alarde, ela vem enfileirando discos, shows e participações especiais em projetos de outros artistas como poucas vezes se viu em seus quase 40 anos de carreira. Mesmo tendo trocado a agitação da área urbana no Rio de Janeiro pela tranquilidade e pelo isolamento da Ilha de Paquetá, onde mora desde meados dos anos 2010, os últimos dez anos foram de muito trabalho e gravações. Do antológico CD duplo O samba é minha nobreza, passando por discos como O samba informal de Mauro Duarte (gravado ao lado do grupo Samba de Fato) e Banda Glória convida Cristina Buarque, até a recente parceria com o grupo Terreiro Grande, que rendeu dois ótimos discos.

Como traço mais evidente desse trabalho, aparece a pesquisa ampla e incansável de repertório; o resgate de composições inéditas (ou quase) de autores ligados às escolas de samba cariocas, como Candeia, Mauro Duarte, Brancura, Zé da Zilda, Zé Ketti, Silas de Oliveira e outros; e a defesa tenaz de um samba mais delicado, mais dolente, sem correria e, principalmente, sem hipocrisia ou vaidades, contraponto à vertigem individualista que parece querer nos impor a dureza de nossos dias. A postura de resistência de Cristina consegue suspender as urgências e impor um andamento mais suave para as emoções cantadas em seus discos. Tome-se, por exemplo, os dois discos gravados ao vivo ao lado do grupo Terreiro Grande, onde a roda de samba levada ao palco (e às ruas de Paquetá, como revelam os vídeos disponíveis no youtube) passeia sem pressa por um repertório vasto, que chega a constituir blocos de 20, às vezes 30 minutos de duração.
O mais recente, Terreiro Grande e Cristina Buarque cantam Candeia, lançado em abril pela Tratore, visita o repertório do compositor que melhor expressa o sentido de fraternidade e de alegria da roda de samba. No disco, Cristina e a turma do Terreiro Grande gravaram clássicos consagrados como "Samba da antiga", "Não vem" e Dia de graça"; e apresenta pérolas menos conhecidas do mestre portelense, como a belíssima "Brinde ao cansaço" que só havia ganho uma gravação obscura do próprio Candeia. O clima de canto coletivo e os arranjos dolentes entusiasmam e emocionam.
"Será que Cristina volta?", perguntava o jovem Chico Buarque. Se for para o turbilhão da cidade grande e para a ribalta hipócrita do showbusiness, diga que não. Cristina vai "ficar por lá", vai ficar em Paquetá, tomando sua cervejinha (Brahma, por favor), revirando sua discoteca atrás de velhos/novos sambas e recebendo os sambistas do Terreiro Grande para animadas rodas de samba pelas ruas da ilha, que podem se estender por 8, 9, 10 horas (sem repetição de repertório, registre-se). E assim, discreta, mansa como sua voz, vai fazendo um bem enorme para a música brasileira.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Diálogos Possíveis: David Gouveia



Um rápido e delicioso sarau com David Gouveia, o David 7 Cordas, um dos mais talentosos músicos da nova geração do samba e do choro no Ceará e um observador atento das coisas da nossa música. Na pauta, os encantos e mistérios do violão 7 cordas, que em Fortaleza encontrou terreno fértil em mãos como as de Tarcísio Sardinha, Pedro Ventura, Ribamar e Zé Renato. Na foto acima, da esquerda pra direita, o saudoso Zé Renato, Pedro Miranda (quando de sua passagem por Fortaleza em 2008), David e este blogueiro.

Talabarte - Como se deu a tua descoberta e o teu aprendizado do violão de 7 cordas?
David - Apesar de não ter pais que tocassem algum instrumento, a boa música sempre visitou minha casa, quer fosse pelos Lp's que eu ouvia em companhia do meu avô materno ou dos meus pais mesmo. Adolescência veio chegando e o videogame e outras brincadeiras saíram de cena e a música, principalmente o samba e o chôro, começaram a me instigar; e dos instrumentos, o que mais fascinava era o 7 cordas pela condução que fazia dos outros instrumentos no deslindar da música. Era comum ter festa na minha casa e eu sempre ouvia o meu primeiro referencial de violão 7 cordas tocando: o Ribamar 7 Cordas, meu Ribinha. Depois conheci o Daniel e nas rodas de samba da Dona Mocinha e Zé Bezerra fui nocauteado pelo vigoroso violão do querido Zé Renato. Mas ainda não tocava. Daí então, acho que por volta de 1997 comecei a ter aulas com o Professor Fábio Cláudio, mas de violão de 6 e ele de imediato me apresentou à obra de João Bosco (o rei do balanço e harmonia) e aos violões do Mestre Horondino Silva e do Raphael Rabello. Nesse marco aí parei e pensei: É tocar ou largar! Resolvi tocar...

Talabarte - O violão de 7 cordas é um instrumento inteligente, não que existam instrumentos "burros", mas sua execução é fascinante, se prestando tanto ao acompanhamento harmônico quanto ao contraponto e aos solos. Nesse sentido, ele tem mais recursos do que o violão de 6 cordas. Você concorda com essa definição? Como você descreveria o violão de 7 cordas?
David - De fato, não existe instrumento burro, existe gente burra e preguiçosa que o invés de estudar o instrumento prefere ficar coletando tecnologia MIDI para depois ficar fazendo mímica em palco de churrascaria. Mas quanto ao violão de 7 Cordas, não há burrice, pelo contrário, quando você abraça um violão de 7 cordas você abre um portal para um mundo misterioso e encantador: os harmônicos, as inversões, as infindas escalas, os mais variados timbres e o grave da 7ª corda, é claro. Estudiosos sobre a história do violão relatam que o 7 Cordas é um violão de origem cigana, daí talvez a razão de tanto encanto e até um tanto de misticismo pelo meio dessa história toda. O 7 cordas, se estivéssemos falando na linguagem náutica, seria o leme de uma embarcação, pois é quem conduz a harmonia para o desfecho ideal da música. Seria o galanteador que propicia a corte da melhor voz sobre o valsear melódico durante a execução da peça, o 7 Cordas se eu fosse aqui parar para descrevê-lo ia ser necessários mais de uma HD de 250 gb. Vixe! Exagerei. Ainda não achei a definição ideal para o instrumento que tanto venero, tanto amo.

Talabarte - Fale um pouco sobre o seu instrumento pessoal (marca, captador, luthier, cordas, dedeira, etc).
David - Bem, hoje tenho dois violões de 7 cordas feitos sob encomenda. O primeiro é um “ Do Souto” Modelo Regional 7 Cordas feito em pinho, jacarandá e Pau Ferro, datado de 19 de abril de 2000, feito pelo Luthier Oswaldo da Bandolim de Ouro no Rio de Janeiro. A melhor história desse violão é que na época eu o encomendei por telefone. Nunca fui ao Rio! E em 2000, mal consegui juntar o dinheiro do violão que na época me custou R$ 1.800,00. Lembro que era muita grana para época. Minha mãe foi quem me ajudou a realizar esse sonho de ter um “Do Souto”. Depois de conversar com o dono da loja , o Helinho do Souto, o cara disse assim:
“ Pera aí ô muleque que tem um cara querendo falar contigo!”. Advinha quem era? Nada mais nada menos que DINO 7 CORDAS! Ele riu porque eu não conseguia falar e mandou parar de ser bobo, porque violonista é tudo igual e ele não era mais do que eu, entre outras palavras de incentivo. Ao fim, disse que estava escolhendo meu violão e fazia muito gosto que eu não parasse de tocar. Infelizmente, nunca vi o mestre Dino na minha frente. O outro violão de 7 cordas, eu adquiri recentemente em outubro de 2009, precisamento no dia 20. Outro presente da minha mãe. É um violão todo em cedro feito artesanalmente pelo luthier Lucenir, também do estado do Rio de Janeiro, no município de São Gonçalo da Boa Vista. Ótimo instrumento, sonoridade impecável. Uso a captação canadense HIGHLANDER (custa em média R$ 900,00) modelo IP2 que não se acha aqui, apenas na internet ou em lojas de Goiânia. E minhas dedeiras são todas de aço sendo que quatro encomendei na AO BANDOLIM DE OURO no RJ feito pelo Julinho do Cavaco e guardo comigo uma especial que foi feita pelo amado Zé Renato, que de tanto ele polir com braço e silvo, a dedeira chega a espelhar. ( risos)

Talabarte - Qual a importância do 7 cordas dentro da orquestração de gêneros como o samba, o choro e o forró?
David - No samba, o 7 Cordas tem o condão de suprir qualquer contraponto feito por clarinete, saxofone ou ainda trombone, por que a sua região dos graves (vai do traste zero até a quarta casa entre a 7 e quarta corda) é matreira, melodiosa e conduz a harmonia de forma ímpar. No chôro, então, nem se fala. É imprescindível para a execução de uma peça de choro a presença do violão de 7 cordas. No forró, o 7 cordas foi implantando pelo Luiz Gonzaga, escute a "Ave Maria do Vaqueiro", "Escadaria" com Zé Calixto, ou Abdias dos 8 Baixos, além do Noca do Acordeon, Jackson do Pandeiro. Pois bem, no forró o 7 cordas auxilia o solista que às vezes fica sem chão por não assimilar bem o regougar da zambumba e o tilintar do triangulo.

Talabarte - Cite os violonistas de 7 cordas que ainda te inspiram e aponte os motivos.
David - Dino 7 Cordas: o pai, o mestre do 7 cordas, incontestável. Perfeito. Pena ter falecido.
Raphael Rabello: Discípulo. Copiou o Mestre Dino e ainda criou o seu próprio estilo. É de fazer chorar ouvir o Raphael tocar "Cordas de Aço" em disco em homenagem ao Cartola em que ele acompanha o Luiz Melodia.
Valdir e Valter 7 Cordas: Irmãos Gêmeos, improvisadores de mão cheia, VALDIR é o violão de 7 em todos os discos de sucesso do Roberto Ribeiro. Ouçam "Estrela de Madureira" e "Resto de Esperança"! Waldir ainda assina a gravação de "Sufoco" com Alcione e "Escadaria" com Zé Calixto no álbum Um 8 baixos às suas ordens, gravado pela COPACABANA. Valdir hoje toca cavaquinho devido a um acidente doméstico. Valter conheci tocando com Zé da Velha e Silvério Pontes e hoje o seu trabalho pode ser conferido no disco gravado com Yamandu Costa.
Rogerinho 7 Cordas: Vem mostrando um novo modo de executar o 7 cordas. Suas escalas e baixarias são inconfundíveis. Ao que se sabe foi aluno de cavaquinho do Henrique Cazes e aprendeu 7 Cordas com o Alencar 7 Cordas, do Iguatu.
Marcelo Gonçalves: Impecável a execução desse moço. Cada gravação mais linda do que a outra.
Jorge Simas: A gravação do disco do noite ilustrada em que ele destroça o pout porri confere a esse moço um lugar na corte do 7 cordas. Nunca mais o vi em ação. Parece que hoje tem dedicado o seu tempo para composições. Volte para a guerra MACHO VÉI!
Ribamar Freire: Meu Ribinha da praia, que apesar de aparentar estar de mau humor a toda hora é um exímio violonista e como já disse foi o primeiro 7 cordas que vi tocando na minha frente quando eu nem gostava dessas coisas.
José Renato: Quem ouviu o Zé tocar, dançar, pular, mungangar com o seu violão sabe do que eu estou falando. Ele me mostrou que o 7 cordas é mais que um instrumento.

Talabarte - Algum deles seria reconhecível por você logo nas primeiras bordoadas? Por que?
David - SE ME DESSEM UM CAMINHÃO DE CERVEJA ( Cuidado com a marca) para beber e depois colocasse esse time para eu ouvir, eu identificaria todos um a um porque a dedeira não toca a corda do instrumento por igual. Cada um tem o seu jeito de tocar.

Talabarte - Há uma nova geração de 7 cordas no País que, aos poucos, vai se consagrando em shows e discos. Nessa turma, incluem-se nomes como Marcelo Gonçalves, Yamandu Costa, Rogerio Caetano, entre outros. Como você avalia o trabalho desses "novos" nomes e como observa a relação deles com nossa tradição, digamos, canônica do violão de 7 cordas (Dino, Valdir, Valter, etc)?
David - Os violonistas andam se respeitando. Os novatos tocam com os antigos de igual para igual sem incorrer na mesmice e inovando dentro dos limites respeitáveis. Parabéns ao Yamandú, que depois de ser criticado como sujo e engolidor de notas, acena para um futuro de execuções mais aprimoradas balanceadas entre a técnica e o sentimento. Mil anos e o Brasil não terá outro DINO, RAPHAEL RABELLO...

Talabarte - No Ceará, há bons talentos seguindo as veredas do 7 cordas? Como você observa a relação entre a "velha" e a "jovem" guarda do instrumento no Estado?
David - Quando eu comecei a tocar o 7 cordas , isso em 1998, não me lembro se havia outro 7 cordas em Fortaleza na mesma faixa etária. Hoje, todo mundo compra o seu Giannini, Rozini e os Do Souto de segunda mão e estão por aí colados na velha guarda que nem tão velha é assim. Antigão mesmo tocando 7 cordas aqui tem o seu PEDRO VENTURA mas que não passa nada a ninguém por falta de didática. Mas a turma aqui é bem solícita como o caso do Tarcísio Sardinha, o Fábio, o nosso querido Zé também auxiliava muito mas ainda tem quem não aceite os novos. Um dia quem sabe. Mas para quem quer conhecer o 7 Cordas em disco vai uma dica. Posso deixar? CARTOLA - Volume I no qual tem "A Sorrir", "Alvorada", "Tive Sim" - O Dino só faltar dar um machadada no 7 Cordas. ROBERTO RIBEIRO- Fala Meu Povo! MARCOS SACRAMENTO - Na Cabeça! Zé CALIXTO- Um 8 baixo a suas ordens. YAMANDU/VALTER.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Yo-Yo Ma: alegria, paixão e talento


É possível dizer que a relação do sino-francês Yo-Yo Ma com a música se apoia em três pilares: a paixão, a alegria e a curiosidade. A primeira lhe fez dedicar a vida inteira aos estudos e à rígida disciplina das partituras, afirmando-se, pelo brilhantismo de suas gravações (espalhadas por mais de 70 discos) e apresentações ao vivo, como um dos maiores músicos de todos os tempos. A segunda lhe fez fugir ao estereótipo do músico carrancudo, lhe fez transcender o clichê do gênio antipático sempre às voltas com seus insondáveis dilemas pessoais e seus caprichos pueris; e lhe permitiu contagiar permanentemente seus ouvintes com uma rara e renovada energia. A curiosidade, por fim, foi o motor que fez com que não ancorasse seu interesse apenas no horizonte da chamada "música erudita" e dialogasse com uma vasta gama de referências, sempre procurando entender culturas alheias e complementares à sua. Foi movido por essa curiosidade, por exemplo, que chegou a gravar entusiasmados registros de músicas de compositores brasileiros como Tom Jobim e Jacob do Bandolim.
Abaixo, uma ótima porta de entrada para o universo fascinante da obra de Yo-Yo Ma: sua antológica gravação do Prelúdio da Suíte no.1 para Violoncelo de Bach.

O Pulitzer e o Publica


No último domingo, o jornal O POVO retomou, com um bom caderno sobre o tema, a discussão a respeito da nova (re)configuração dos jornais diante da consolidação de novas tecnologias de disseminação e de consumo da informação. Por coincidência, na mesma semana do caderno, o tradicionalíssimo Jornal do Brasil (curiosamente, o primeiro jornal brasileiro a fincar sua bandeira na internet) anunciou que iria fechar sua edição impressa, mantendo apenas seu formato digital. Entre a sanha "apocalíptica" de ver no episódio do fim JB impresso o prenúncio definitivo do fim do jornal, da vitória da superficialidade, etc; e a sedução "integrada" de divisar uma nova era de Aquarius para os jornalistas com essas novas possibilidades tecnológicas - que prescindiriam da discussão sobre as condições materiais de trabalho da categoria; lembrei-me do caso do prêmio Pulitzer deste ano, em que, pela primeira vez na história, uma organização de mídia digital ganhou a honraria.
Resultado de dois anos e meio de um penoso trabalho de investigação, a reportagem "As escolhas mortais no Memorial", de Sheri Fink, repórter do portal ProPublica, ganhou a famosa premiação oferecida pela Universidade de Colúmbia. O trabalho "digital" venceu na categoria reportagem investigativa, fato inédito na história do Pulitzer - criado em 1917 em homenagem ao editor Joseph Pulitzer.
A vitória de Sheri ganhou espaço na mídia em todo o mundo; tanto pelo ineditismo da premiação dada a um veículo digital quanto pelo conteúdo da matéria vencedora, um consistente e emocionante relato da história da médica Anna Pou, que no dia seguinte ao desastre do furacão Katrina em New Orleans, teve de fazer uma triagem entre os pacientes do Memorial Medical Center para definir quem iria sobreviver à inundação que atingiu o hospital. Os pacidentes com maior chance de cura foram os primeiros a ser retirados pelo heliponto do hospital; os demais tiveram de esperar pelo resgate. Pelo menos quatro morreram em função da "lista" de Pou. O caso motivou um amplo debate nos Estados Unidos sobre a ética dos profissionais de saúde em situações extremas. Anna Pou foi acusada de ser a responsável pela morte dos pacientes, mas acabou absolvida por júri popular.
A premiação de Sheri (re)colocou na berlinda a história de Anna e também a história do portal ProPublica, que abrigou a reportagem. No Brasil, o Estado de São Paulo publicou, em abril, uma matéria sobre a premiação de Sheri e sobre o funcionamento do ProPublica. Fundado em 2008 pelo ex-editor executivo do Wall Street Journal, Paul Steiger, o site não tem fins lucrativos e é financiado por doações de fundações norte-americanas que têm interesse em projetos na área de mídia. Como o casal de banqueiros californianos Hernert e Marion Sandler que realizaram uma doação de U$ 10 milhões há dois anos e garantiram as finanças do site até 2012. O portal se especializou em matérias investigativas de "clara importância moral" e "claro interesse público", que, na visão de Steiger, seriam as primeiras a ser atingidas (pela complexidade e pelo alto custo de sua produção) em tempos de escassez financeira. "Para a democracia funcionar, precisamos de jornalismo de qualidade. É nisso que acreditamos", define Sheri, resumindo o conceito que motiva os outros 31 jornalistas que compõem a redação do Pro Publica, que, por seu caráter não lucrativo, autoriza os demais veículos a reproduzirem suas matérias. "Roubem nossas histórias", o site convoca.
A discussão sobre a premiação do portal norte-americano coloca mais lenha na fogueira que, esta semana, recomeçou a arder com o caderno do O POVO e com a notícia em relação ao destino do JB. Uma primeira - e óbvia - conclusão que se tira a partir da leitura do caso de Sheri é a de que o bom jornalismo, o jornalismo de produção de conteúdo, é fundamental para a democracia. Ou melhor, discutir os rumos do jornalismo é discutir as novas configurações da vida democrática, com novos mecanismos de produção e de acesso à informação e novas estruturas e velocidades de discurso sendo disseminadas.
Outra constatação que o caso Sheri traz à tona é que não é possível falar em novas plataformas de jornalismo sem falar nas condições materiais de produção do conteúdo, sem a reflexão sobre as condições de trabalho dos jornalistas - e sua galopante degradação. No caso do ProPublica, fica a ressalva de que se trata de um caso específico de organização sem fins lucrativos e financiada por doações (que lhe dá uma maior liberdade de ação, mas não soluciona nem serve como modelo geral para o impasse sobre as formas de financiamento do jornalismo). No entanto, as velhas maneiras de funcionamento capitalista das redações terão de conviver com novas formas de articulação e de formalização trabalhista, sejam elas o cooperativismo, o formato de fundações ou outras estratégias que apontem, no limite, para a sobrevivência da profissão e do próprio jornalismo.
Uma terceira evidência em torno da premiação do ProPublica é que a redação, mesmo num veículo digital, é um organismo imprescindível para a produção de conteúdo. Sobre o tema, o jornalista e professor Ronaldo Salgado, da Universidade Federal do Ceará, já havia cantado a pedra no O POVO. "Sem querer me colocar numa posição de contrariedade aos que aplaudem e defendem essa realidade tecnológica insofismável, eu quero crer que a redação, leia-se a estrutura redacional e o corpo profissional com a sua capacidade de ler a realidade, não pode ser deixada de lado em termos de importância na aferição da qualidade do jornalismo. A redação ainda é de forma categórica, o local ou o elemento fundamental para a atividade jornalística".
Por fim, vale atentar para a questão do prestígio conferido pelo Pulitzer a um veículo do meio digital, sobre o qual ainda pesa alguma resistência em termos de credibilidade. Para Mike Webb, diretor de comunicações do Pro Publica, entrevistado pela reportagem do Estado de São Paulo, o prêmio teve um efeito positivo sobre a redação e deve facilitar as arrecadações de fundos de agora em diante. "Se alguém tinha alguma dúvida sobre nós, agora elas foram apagadas", comemora.

terça-feira, 13 de julho de 2010

A volta ao Moura em 10 discos


Paulo Moura (1932-2010) era um virtuose indomável, que, além dos cromatismos ferozes, desbravou novos terrenos de sonoridade e de respiração na clarineta e no saxofone. Exemplo foi sua gravação para o "Moto Perpétuo", de Paganini, para o qual desenvolveu uma técnica de respiração ainda em meados dos anos 50. Também foi um aranjador com rara sensibilidade para a orquestração, como provam seus discos dos anos 60 gravados com seu quarteto e com seu hepteto; e um artista cujo espírito se voltou - com iguais doses de aclamação nos cinco continentes, por onde gravou e tocou - para dezenas de gêneros musicais: do erudito ao chorinho, da gafieira ao jazz, do samba à MPB, da bossa nova ao forró.
Para saudar a memória deste que foi um dos maiores músicos do mundo, de todos os tempos, este Talabarte reuniu o que considera o seu top ten, os dez discos que melhor evidenciam a grandeza do nome de Paulo Moura.


1. Quarteto (1969)
A escalação do quarteto a que o nome do disco se refere fala por si só: Paulo Moura (sax alto), Wagner Tiso (piano), Luiz Carlos (contrabaixo) e Paschoal Meirelles (bateria). No repertório, "Lamentos do morro" (Jobim/Vinícius), "Eu e a brisa" (Johnny Alf), "Aos pés da cruz" (Marino Pinto/Zé da Zilda), entre outras. Aqui, Paulo volta suas atenções para o diálogo entre o samba e o jazz, pedra filosofal da bossa nova, mas que em seu saxofone encontrou uma expressão insuperável pela liberdade trilhada em cada arranjo e pela audácia em cada improviso. Destaque para "Yardbird suite", que traz Charlie Parker para balançar ao som do samba.


2. Fibra (1971).
Sai Paschoal Meirelles e entra Robertinho na bateria. Ao antigo quarteto, juntam-se nomes como Marcio Montarroyos (trumpete), Oberdan Magalhães, futuro líder da Black Rio (sax tenor e flauta), Cesário Constâncio (trombone), Tavito (guitarra) e Milton Nascimento (que toca piano na faixa "Ana Lia's Blues"). A engrenagem musical é ampliada e o repertório também percorre novas veredas, refletindo a ascensão de sonoridades que iriam marcar parte importante da música brasileira dos anos 70. Destaque para uma "Cravo e canela", cheia de balanço e costurada pela percussão de Robertinho e pela flauta de Oberdan Magalhães.


3. Confusão urbana, suburbana e rural (1976).
Marco de sua consagração popular, esse disco traz aquela que é a versão mais exuberante e também a mais difícil para "Espinha de bacalhau", o intrincado choro de Severino Araújo, cujas cascatas de notas são atacadas por Moura com incomum velocidade e brilho. Como o nome antecipa, o disco explora temas urbanos, como o jazz "Pedra da Lua" (Toninho Horta); suburbanos, como as versões de "Notícia" (Nelson Cavaquinho), "Peguei a reta" (Porfírio Costa) e "Amor proibido" (Cartola); e também temas rurais como "Carimbó do Moura" (uma de suas raras e belas composições).


4. Paulo Moura e Clara Sverner (1983).
Na praia da chamada música erudita, Paulo Moura foi músico da orquestra do Teatro Municipal (RJ) e tocou sob a regência de maestros como Leonard Bernstein, Eleazar de Carvalho, Isaac Karabtchevsky e, niguém menos, Stravinsky. Portanto, também se sente à vontade em meio ao repertório de compositores como Villa-Lobos, Marlos Nobre, Gilberto Mendes, Eduardo Souto e Jacques Ibert, que formam a base desse disco antológico de 1983. O registro é o principal capítulo da produtiva parceria musical com a pianista Clara Sverner, com quem Moura realizou diversos shows e gravações.


5. Mistura e Manda (1983)
O ano de 1983 foi um dos mais produtivos na carreira de Moura. Além da parceria com Clara Sverner, ele também gravou o LP Mistura e Manda, outro marco em termos de aclamação popular em sua carreira. O foco principal é o chorinho, gênero que explora em sete faixas acompanhado por uma verdadeira constelação de instrumentistas: César Farias, Joel Nascimento, Rafael Rabello, Zé da Velha, Jonas Pereira, Jorginho do Pandeiro, Maurício Carrilho e Mané do Cavaco. Destaque para a longa versão de "Chorinho pra você", uma nova incursão de Paulo pelo repertório de Severino Araújo, em que duela com o violão engenhoso de Rafael Rabello. Em 1997, o disco foi editado em CD com outra capa e outro nome, Tempos Felizes.


6. Dois Irmãos (1992)
Registro precioso do encontro entre Paulo Moura e Rafael Rabello. No encarte do disco, João Máximo resume a emoção de se escutar esses dois gênios. "Ouçam como os dois passeiam à vontade tanto pelo asfalto paulistano de Ronda e Sampa como pelo chorão carioca de terra batida de Chorando Baixinho e Chorinho em aldeia. observem como a sofisticação de Luiza não briga com o brejeiro Um a Zero. Atentem para o fato de o seresteiro Violão Vadio não se opor à gafieirice de Domingo no Orfeão Portugal. Tardes de chuva e tempos felizes cabem nessa fascinante viagem de Paulo Clarinete e Raphael Violão pelos caminhos da música. E quem disse que o casamento perfeito não existe?"

7. Pixinguinha (1997).
Tributo a Pixinguinha gravado ao vivo em São Paulo em 1997, esse disco ganhou o prêmio Sharp de Melhor Produtor de Música Instrumental para Paulo Moura e também o de Melhor Grupo de Música Instrumental. O grupo, no caso, era uma versão contemporânea dos oito batutas de Pixinguinha que trazia, além de Paulo nos sopros e arranjos, Jorge Simas (violão), Márcio (cavaquinho), Jorginho (pandeiro), Jovi (percussão), Marçalzinho (percussão), Trombone (Zé da Velha) e Joel Nascimento (bandolim). Destaque para a versão de "Mistura e Manda", com direito ao colossal solo de pandeiro de Jorginho.


8. Rhapsody in bossa - P. Moura visita Gershwim e Jobim (1998)
"Não será o jazz que influencia o samba - é a bossa nova brasileira que vai reler o jazz... Gershwin e Jobim, tão branquinhos e tão amarrados na música negra...". A frase de Paulo Moura fecha o encarte desse disco gravado ao vivo e que presta uma homenagem a dois ícones da música nas Américas. O texto soa como uma carta de princípios com que Paulo opera seus encontros musicais, sem tentar encaixar a música brasileira a nenhum compasso estrangeiro, mas fazendo referências universais da música se reencontrarem e se redescobrirem à luz de nossos ritmos e arranjos. Destaque para as belas versões de "Falando de amor" e "Embraceable you".


9. Samba de latada (2006)
Tanto o termo "forró" quanto o termo "samba" serviam, no Nordeste do século XIX e início do século XX, para designar uma festa regada a muita dança e música. "Depois que o samba carioca foi alçado à música da nacionalidade, foi que o samba passou a designar um gênero musical. No Nordeste ele foi adaptado para a sanfona, o triângulo, a zabumba, mais violões, banjo e instrumentos de sopro", lembra o jornalista José Teles. Ao lado de Josildo Sá, Paulo evidencia o caráter múltiplo de sua virtuose e percorre o universo do chamado "samba de latada" para fazer um dos melhores discos brasileiros dos anos 2000. Originalmente lançado de forma independente em 2006, o disco ganhou reedição pela Rob Digital no ano seguinte.


10. Afrobossanova (2009)
Escolhido por este Talabarte como um dos melhores discos do ano passado, Afrobossanova é o registro do show homônimo em que Paulo percorreu o Brasil ao lado de Armandinho, outro titã da música brasileira. O disco é eletricidade pura, uma celebração musical em altíssima voltagem que descobre, propõe e amarra novos nós entre o jazz, a bossa nova, o samba e o chorinho a partir da música de Tom Jobim. "Uma confusão urbana, suburbana e inter-racial", como propõe o encarte do disco. Destaque para a versão de "O morro não tem vez", com seu arranjo pontuado pela força da percussão afro. Um momento inesquecível!

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Mino e o País que FHC quebrou


No editorial de sua Carta Capital desta semana (a capa acima é de uma edição de fins dos anos 90), Mino Carta compara os governos Lula e FHC, conferindo ampla vantagem para o petista. Além de resgatar pontos vexaminosos de uma entrevista concedida pelo ex-presidente à então revista mensal em 1994 - em que FHC chega a dizer, nada mais nada menos, que o político, embora não deva necessariamente mentir, "tem de omitir" -, Carta resgata em rápidas pincelas o que foi o governo do tucano.
"Seguiram-se oito anos de governo tucano. No período, o Basil quebrou três vezes, o prórpio presidente (FHC) incumbiu-se da tarefa de desvalorizar o real depois de se reeleger à sombra da bandeira da estabilidade, da qual se apresentava como pai. Cuidara, para conquistar o segundo mandato, de comprar votos no Congresso. O país, em contrapartida, foi posto à venda. Por pouco a Petrobras não acabou nas mãos das célebres irmãs do petróleo. Negócios gigantescos foram fechados a todo custo a favor de empresários escolhidos a dedo. (...) O Brasil crescia à média anual de 2,5% com todas as consequências deste falso avanço", escreve o editor de Carta. E conclui: "A comparação entre os governos de FHC e Lula é inescapável. (...) Todos os números mostram que o governo que agora se despede saiu-se infinitamente melhor do que o anterior".
Como o Brasil - nem pessoas como a ex-petista-neo-tucana Soninha, pelo visto - não tem na extensão de sua memória uma de suas virtudes, vale conferir o texto de Mino.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Violão desvairado


Augusto Anibal Sardinha, o Garoto (1915-1955) não foi apenas um dos grandes compositores da história da música brasileira, mas um de nossos principais virtuoses. As marcas e a influência de seu estilo se espalharam pelo samba, pela valsa brasileira, pelo choro e pela música erudita. Em 1953, o cearense Eleazar de Carvalho regeu a Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro na execução do "Concerto no.2", para violão e orquestra, composição de Radamés Gnatalli dedicada a Garoto.
Apesar de, na época, já ser um músico consagrado nas rádios e nos palcos do Brasil e do exterior, foi apenas nos anos 50 que Garoto começou a gravar seus primeiros discos como solista. É dessa época esse primeiro (e raro) registro de sua composição "Desvairada", valsa que é uma das peças de mais difícil execução do repertório chorão - com ressonâncias dos arpejos do "Estudo no.2" de Villa-Lobos.
Recentemente, Henrique Cazes e Marcelo Gonçalves lançaram o ótimo Vamos acabar com o baile, disco-tributo a Garoto que reúne parte primorosa de sua obra.

Sem preconceito nem mania de passado


Conheci a música de Joshua Redman através de um de seus discos mais recentes, Back East, lançado pela Nonesuch em 2007. O nome é um contraponto ao clássico Way Out West, de Sonny Rollins, saudado no disco pela intrigante regravação de "I'm an old cowhand". De imediato, impressionou-me a engenhosidade e a alegria dos arranjos e das improvisações de Redman, filho do veterano Dewey Redman e vencedor do prêmio Thelonious Monk de 1991, a partir do qual despontou para os holofotes do mundo do jazz e assumiu uma posição de referência entre os novos jazzistas americanos dos anos 90. Depois de ouvir Back East, tenho corrido atrás de suas gravações. A cada achado, em discos como Momentum (2005) ou Freedom in the groove (1996), renovo meu interesse por seu trabalho, que exala maturidade e frescor num joie de vivre raro entre os jazzistas mais conservadores - e entre conservadores em geral. E mesmo chegando a uma sóbria euforia em alguns momentos, como no registro desse show realizado na Bélgica em 1994 e disponibilizado abaixo. Redman compõe e interpreta um jazz renovado, mas profundamente ciente de suas raízes, que, em vez de lhe tolher, formam a base a partir da qual ele busca ampliar seus horizontes. Um jazz que quer navegar entre os mares prazerosos da música, sem preconceitos nem manias de passado, parafraseando Paulinho da Viola.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Poemetes Araújos - IX


Amizade é
sem gramática:
transitiva direta
e sempre,
conjugando o verbo sorrir
na primeira pessoa
do plural.
Seu sujeito é o outro,
todos os predicados
do mundo.
Enreda-se em olhares,
no suor,
força do abraço, gol e câncer.
Entranha-se,
inunda presenças
e revela 
a seca da saudade.
Percorre vales da memória:
avança, escorre
entre dentes e lágrimas,
entre facas e cortes.
Espelho translúcido
que Narciso não acha feio.
O aqui e agora possível;
não lamenta o que se foi,
a amizade pode reconstruir o tempo vivido
com a luz juvenil
da orgia e da esperança.
Amigos olham o sol nascer
com a senhorial crença
no inacabado.
Amizade é fraternidade esculpida nas areias do tempo,
afirma incertezas e
canta
inconcretudes
para proclamar Dionísio,
árbitro do amanhã:
acalenta a ilusão,
de, em definitivo, estarmos todos
juntos.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Por que voto em Dilma


Poderia votar em Marina Silva por admirar sua trajetória de vida, sua decência como figura pública e sua coragem de pautar novos horizontes - em especial, a urgência da questão ambiental - para o debate político/desenvolvimentista no País. Também poderia defender a plenos pulmões a candidatura de Plínio de Arruda Sampaio, um dos maiores brasileiros vivos, homem que dignifica o campo da vida pública e da vida intelectual brasileira, que teve uma contribuição decisiva na luta pela reforma agrária e que segue em sua brava missão de propor um outro modelo de sociedade para o País.
No entanto, no debate eleitoral deste ano, o que está colocado não é a polarização entre Marina, Plínio e Dilma Roussef - os três expoentes do campo democrático e popular cujas candidaturas têm tecido social e pertinência intelectual para se legitimar perante a sociedade brasileira. Aliás, este seria um cenário dos sonhos para o Brasil: contar com um debate de ideias entre três nomes efetivamente compromissados com a transformação social, com o combate à pobreza e com o crescimento econômico do País. Seria... Mas ainda não é.
Não é porque que nessa ciranda, existe um outro candidato chamado José Serra, representante das elites preconceituosas, colonizadas e retrógradas de nosso País; candidato de uma grande imprensa amoral, golpista e cínica; símbolo da truculência e da priovatocracia tucana que levou o Brasil à lona e que agora quer retornar ao poder. José Serra, o avatar vampiresco de 500 anos de exclusão e autoritarismo que deixaram marcas profundas em nossa Nação - as quais, depois de oito anos de governo Lula, apenas começaram a ser exorcizadas.
Sei que é problemático um voto contra. Mais produtivo, sempre, é algo a favor. Nesse sentido, saúdo aqueles que entendem que a candidatura de Marina ou de Plínio podem representar o novo na política. Essas pessoas também ajudam a afirmar um novo país e são imprescindíveis para a política. Acredito, porém, que a volta do PSDB ao poder (possibilidade ainda não afastada pelas pesquisas de opinião) é um retrocesso não de oito anos - tão pouco tempo para que o campo popular e democrático se afirme no comando do País -, mas um retorno dramático ao Brasil vira-latas, servil no cenário internacional, injusto, excludente. O Brasil da casa grande e da senzala. Não é esse o País com que sonho. Não é essa a nação, aliás, que quero para meu filho, que, em breve, vai nascer. Quero que ele possa, em sua vida adulta, optar com tranquilidade por candidatos como Marina ou Plínio. Ou mesmo, quem sabe, Dilma. Essa última, por enquanto, é fundamental para que o Brasil siga seu caminho virtuoso dos últimos anos.
Nosso País ainda está vivendo uma transição difícil, traumática especialmente para a esquerda. Uma transição que, democrática, implica na indigesta negociação com setores conservadores da nossa política (onde, ressalte-se, o Governo Lula comete equívocos). Mas recuar das conquistas alcançadas, nesse momento, é pôr tudo a perder. Um retorno da direitona seria ainda mais cruel do que os oito anos da era FHC. Portanto, assumo que voto contra o PSDB - votando na candidata que tem melhores condições de embargar essa exumação dos mais terríveis ideais conservadores - para poder votar a favor do Brasil.
Entre a ética do idealismo e a ética da responsabilidade, ficarei com a segunda opção nessas eleições. Não é propriamente um voto no PT, que - embora seja o maior partido de massas da América Latina e ainda abrigue figuras e bandeiras notáveis - vem assumindo as feições do trabalhismo inglês e perdendo parte significativa de sua engrenagem social. Também não é um voto na candidata de Lula ou um voto indireto em Lula, líder brilhante que foi fundamental para essa transição pela qual o País passa, mas que, depois de oito anos no poder, pode deixar como contribuição deletéria à vida partidária brasileira o personalismo estéril.
Pessoal e intransferível, é um voto em Dilma, ou melhor, um voto contra Serra. Um voto, afinal, com o perdão do clichê, a favor do futuro do Brasil.

domingo, 4 de julho de 2010

A arte da transição


"A arte da direção é antes de tudo a arte das transições". A frase é de Gustav Mahler (1860-1911), que personificou como ninguém seu próprio axioma. O maestro e compositor boêmio, cujo sesquicentenário de nascimento se comemora na próxima quarta-feira, teve uma vida em que, para além da regência das orquestras, caminhou sempre no limite entre pólos (ora distintos, ora complementares) de criação e expressão musical. Fosse da regência para a composição (onde o maestro pavimentou o caminho para o sucesso póstumo do compositor), fosse do romantismo do século XIX para o modernismo do século XX (entre os quais tornou-se o principal elo), fosse das cores intimistas e (quase) minimalistas para os humores grandiloquentes traduzidos em movimentos de pianissimos e fortissimos (mudanças que são uma marca notável no desenrolar de suas composições, em especial das sinfonias).
"Sua obra nos coloca em contato com o divino, sem nos fazer esquecer de que somos humanos. Ela nos leva a uma jornada de nascimento, crescimento, sofrimento, redenção e elevação. Sua obra é, portanto, uma experiência de vida!", define o maestro Roberto Minczuk.

P.S. - Na agenda das comemorações dos 150 anos de nascimento de Mahler, fica a expectativa da estreia no Brasil do filme Mahler no divã, de Percy Adlon (o mesmo de Bagdá Café). O filme relata o encontro do compositor com Freud, na Holanda, para discutir a crise conjugal que Mahler atravessava em seu casamento com Alma.


quinta-feira, 1 de julho de 2010

"Sofro de um sopro de vida"

Se há (houve) alguma experiência radical no campo das letras no Brasil nos últimos dez anos, esse radicalismo atende pelo nome de Rodrigo de Souza Leão. Pintor e escritor, Rodrigo faleceu em 2009, vitimado pelos delírios de uma esquizofrenia aguda, deixando cerca de 35 inquietantes telas e dois livros prontos: o primeiro, Todos os cachorros são azuis (editora 7 letras), que começou a lhe projetar como artista cult; e o segundo, Me roubaram uns dias contados, que será lançado hoje, no Rio de Janeiro, pela editora Record.
"O trabalho do Rodrigo mistura mundo interno e externo de maneira radical. É uma escrita feroz. O cara não brincava em serviço, não escrevia por charme ou pedantismo. Escrevia com imensa coragem, para resistir à loucura, e para existir", define o crítico José Castello, em matéria publicada n'O Globo no último domingo.
Implacável e bela, a escrita de Rodrigo atordoa, descortinando a loucura que faz pulsar o tecido do nosso mundo real. Seu trópico é o do inconsciente, com cujos fios nos amarra a nossa realidade e em cujos retalhos expõe suas vísceras. Nem mártir nem arauto. Nem prosa nem poesia. Uma cusparada de poesia, ódio, amor e fúria na cara dos "caretas". Um desabafo que reafirma a necessidade de nossa conexão com o mundo através da escrita, um soco que tenta nos arrancar da letargia de nosso tempo. Um grito desesperado que tenta nos trazer novamente à tona de nossos sentidos.
"Rodrigo é beato. Acredita em deuses. Cristo. Iemanjá. Apolo. Afrodite. Ateneia. Exu. Afrodite. mickey Mouse. Chaves. (...) Tudo o que vem do humano é Deus. Uma geladeira. Uma máquina de lavar. Conheci os deuses na infância. Garotos que morreram. Solidões inóspitas que só se davam comigo. Café com leite. A utopia é importante. Escrever uma página hoje já é uma utopia. O futuro manda lembranças. As lambanças que fiz. Que farei. Eu sofro. Sofro de um sopro de vida", ele escreve em um trecho de Me roubaram uns dias.