segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Um natal com Dawkins


Sem ironia barata, se me pedissem uma sugestão de leitura para este natal, diria Deus, um delírio, do britânico Richard Dawkins. Trata-se, nada mais nada menos, de um vigoroso ensaio contra Deus e, de forma mais ampla, contra a religião. 
O ponto de partida é o conflito entre a visão darwiniana da evolução humana e a postura criacionista que ganha, em escalas cada vez maiores, um incômodo eco entre os neoconservadores cristãos mundo afora. A partir desse impasse, Dawkins investe contra o conceito de Deus recuperando posições de intelectuais de várias épocas e enfrentando dezenas de clichês e mitificações sobre o tema. 
Em alguns trechos, ele descamba para um panfletarismo antirreligioso difícil de engolir. Os melhores momentos de seu ensaio, aliás, e também do restante de sua bibliografia, se definem pelo manejo lúcido dos conceitos darwinianos em diferentes áreas da vida contemporânea. No entanto, na maior parte de seus capítulos, o livro é o exercício honesto e brilhante de um intelectual contra uma mentalidade hegemônica que, engessada em dogmas, sistemas e crendices, tem alimentado e extremado a intolerância.
Concorde-se ou não com Dawkins, convencido ou não por ele, Deus, um delírio é um ótimo roteiro para aqueles que, pelo menos, queiram depurar sua espiritualidade à luz da ciência e da razão; e livrar suas inclinações religiosas dos apelos inconfessáveis da hipocrisia. 

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Os holandeses caem no samba...

O nome é, no mínimo, curioso: Unidos dos Países Baixos. Mas o ritmo é bem redondinho e a alegria de ver o samba se espalhando pelo mundo, enorme. Nesse vídeo, esses holandeses aparecem fazendo convenções e tocando a caixa da Mocidade Independente (uma das mais difíceis entre os tipos de batida de samba). Nos vídeos relacionados, é possível vê-los tocando no ritmo do Estácio (a batida de caixa mais popular entre as escolas). Falta, é fato, aquele molho tipicamente brasileiro. Mas o resultado é muito legal.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

O destino


"No campo do azul vem o verão
plantar as suas nuvens.

Na cidade imperfeita
vem o dia
plantar a sua luz:
No mármore morto
dos viadutos.
No verde novo 
depois das chuvas.
Na cinza que ameaça os monumentos.

Num lance de dados se planta o destino.
O destino: a previsão da náusea dos espaços.
O destino
destruidor de nuvens.
O destino 
levando vantagem".

O destino, poema de H. Dobal, poeta piauiense.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Aquela marquinha...


Ai, aquela marquinha. Sublinha o sexo, acentua as curvas. Gravura de biquini, a quente, no sol. Na geografia do corpo feminino, ela envolve e realça as latitudes recônditas que embalam o nosso imaginário. Tatua desvãos de nádegas, seios e olhares.
Ai, aquela marquinha. O vestígio de um despudorado maiô de duas peças, renda corpo aberto no espaço. Negativo da lycra que descortina a mulher para o sol. Coração de eterno flerte, com a licença de Caetano. "A natureza ganhando terreno sugeriu o biquini. O maiô de pequeno ficando mais pequeno. Não se sabendo mais até onde um corpo branco pode ficar moreno", Millôr define e encerra o assunto.
Democrática, a marquinha serve a pobres e ricas, posto que o sol nasce para todas. Serve até a feias e bonitas, jovens e velhas, muitas vezes diminuindo as óbvias diferenças de generosidade divina. Numa praia de nudismo não há marquinhas, daí por que todos transitam com transcendente indiferença ao corpo feminino. Mas é só alguém deixar à mostra uma marquinha, por menor que seja, num burocrático escritório cheio de gravatas, vestidos longos e paletós, que logo a tensão se instala no ar.
Ai, aquela marquinha. É ela que preserva para a noite o mapa do calor do dia na pele da mulher amada. Caminhando com falsa displicência na rua, nas praças, no trabalho, é ela que desata no velho a saudade da juventude; e faz arrebatar no jovem o desejo da maturidade que ainda não chegou. Ninguém lhe é merecedor, afinal. A não-roupa, o não-toque. A marquinha é o início e o fim de nossos sonhos.
Ai, ai...

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Universidade, pra que te quero?


A universidade pública agonizou no período FHC e quase foi sepultada com outras instituições da vida brasileira ao longo daqueles oito anos de triste memória. Em sua liturgia de desmonte do Estado, a cartilha neoliberal tucana deixou o ensino superior à míngua e atrelou de modo profundo o sentido secular das universidades à praxis do mercado. Na época, a reação dos setores de esquerda foi o bordão da defesa de uma "universidade pública, gratuita e de qualidade". Nada , no entanto, que superasse o pragmatismo míope que, no campo da educação, fazia confundir o ensino superior com uma pedagogia de caráter técnico e não raro desumanizador. 
Universidades não servem ao mercado. A rigor, uma universidade "serve" para pouca coisa se considerarmos a quantidade de ciência que vira tecnologia absorvida pela vida prática cotidiana. Ela é um reduto de saber, cujo sentido é o de tensionar e levar adiante a experiência humana nas diferentes áreas do conhecimento. Não tem, portanto, contas a acertar com o mercado e nem pode se preocupar com seus termos (do mercado) para se legitimar no seio de uma sociedade. Ela é fim em si mesmo e se realimenta de seus próprios méritos científicos.
Esse equívoco está na origem da crítica que se faz ao "encastelamento" dos acadêmicos em relação à vida cotidiana. Os acadêmicos não podem ser cobrados por não oferecer receitas mágicas de felicidade e distensão sempre que impasses de ordem técnica ou de pessoal se revelam no horizonte de grandes empresas e corporações. Seu compromisso é com a recuperação do conhecimento acumulado nos diversos setores da "vida real" e com a produção científica que desdobrará e enriquecerá esse conhecimento. 
"Universidade que não tem capacidade de produção científica nos diversos ramos do conhecimento não é universidade. Apenas toma o nome que alguém lhe deu eleitoreiramente e economicamente", aponta Aziz Ab'Saber em entrevista ao Le Monde Dilpomatique Brasil deste mês. "E essa é a maioria, infelizmente". 
Agora que o mundo assiste assombrado aos debates de Copenhague, a universidade pode, por via da pesquisa científica, produzir respostas para os desafios colocados pela questão climática planetária. Antes, no entanto, é necessário libertá-la dos limites conceituais da "consciência de mercado" que enforca os investimentos públicos e reforça a ditadura do crédito. O estrago dos anos FHC, porém, pode ter sido grande demais. Assim como o fortalecimento das estruturas estatais por parte do Governo Lula pode não ser o suficiente.

Luiza Dionísio: uma voz na terceira margem

Um livro fundamental para se entender a conformação da "música brasileira" é O século da canção, de Luiz Tatit (Ateliê Editorial). Nesse ensaio, o musicólogo e compositor paulista constata que a prática musical brasileira do século XX sempre esteve associada à mobilização melódica e rítmica de palavras, frases e pequenas narrativas cotidianas. É como se essa prática só engendrasse um sentido quando as formas sonoras se mesclam às formas linguísticas inaugurando o "gesto cancional". 
Temos música instrumental, claro, mas ela está longe de constituir a praxis decisiva de nossa história musical, é o que defende Tatit. Esse papel decisivo, desde meados do século XIX, fica com o formato "canção". "Tudo ocorre como se as grandes elaborações musicais estivessem constantemente instruindo um modo de dizer que, em última instância, espera por um conteúdo a ser dito", ele propõe. Mas há algo mais. Dependendo do intérprete vocal, esse modo de dizer se completa tanto pelo conteúdo quanto pela força da dicção do cantor ou da cantora em questão. É quando o "gesto cancional" alcança uma terceira margem da história. 
É o caso de Luiza Dionísio, cantora carioca que lança seu primeiro CD, Devoção. Em suas gravações, há algo além desse encontro primevo entre música e letra. Seu canto é um gesto que, embalado por sua voz intensa, percorre uma zona fronteiriça, onde acabam os sentidos musicais e se instala um sentido maior, mais profundo, que remonta a figuras como Clementina de Jesus e Clara Nunes. Uma força atávica que ressoa em regiões recônditas da alma brasileira, que faz dançar signos imemoriais e inefáveis da nossa cultura. 
"Você não pode cantar meu samba assim sem alma/ Tem que ter calma pra poder compreender / Que o samba traz / Um sentimento / Que só com alento irás perceber/ que o samba não é só um momento", ela defende com dolência em "Alma", ótimo samba de Ratinho. 
Dionizio, dionisíaca. Tem "na veia o sangue dos boêmios", como canta em "Velho amigo", um abraço chorão de Paulo César Pinheiro e Luiz Carlos Máximo em Aldir Blanc. Em "Conceição da Praia", outro golaço de Luiz Carlos Máximo, ela renova a certeza na amplidão espiritual de nossa música, com versos como "Hoje ouvi/ Bater os tambores/ Vi o teu nome a velejar// Senti o odor das flores/ Perfumando em cores o mar". E completa: "Joguei ao ar/ Todas as palavras que fazes retornar/ Em gotas nos meus olhos/ Que deixo recair no mar". 
Há ainda a participação da Velha Guarda do Império Serrano e outra dezena de sambas inspirados, tudo transbordando para além da música, para além do canto, para além do som. Um disco que transpira beleza, uma secular beleza brasileira que fez a glória da nossa música, mas que anda um tanto apartada do grande público.
Vida longa, portanto, ao canto de Luiza Dionizio, a maior cantora de quem o Brasil ainda não ouviu falar. Ainda.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Poemetes Araújos - VI


Provinciano!

Obrigado, mas não.
Prefiro cortar o pulso de meus olhos
e fazer de Vinícius de Moraes o embaixador 
             de minha ditadura;
prefiro servir 
a ternura como receita de meu pragmatismo;
tomar o aqui como a medida do além. 

Obrigado, mas não. 
Prefiro sangrar meus ouvidos
e fazer de Drummond o vigia desta tarde;
fazer de Jackson o engenheiro de meu 
parque de diversões.
Obrigado, mas prefiro o pandeiro,
o samba, 
o carnaval, 
essa ação de graças em meus dias.
Prefiro a crítica da consciência à consciência crítica.

Obrigado, mas não.
Prefiro o joelho de Nara Leão,
a manhã tropical e a rede de Dorival. 
Prefiro arrancar a língua da América e fazer 
de Jobim o Colombo de minha Espanha,
em fuga para as Índias 
e para as morenas. 
Iracema é América!

Prefiro fazer de Cabral (o João), o Sinatra 
de meu silêncio.
Prefiro o sim de Gullar, o gorjeio de Patativa e o aconchego de 
um sorriso amigo.
Jericoacara é minha Guantanamo.
Quero inventar-me cais.

Prefiro o futuro, a Praia do Futuro.
Paulinho da Viola e essa saudade que ainda não vivo,
                 mas não curo.

Obrigado, mas não.

                              Novembro de 2009

domingo, 6 de dezembro de 2009

Uma vez Flamengo, sempre... pontos corridos

Em 2003, quando da adoção do campeonato de pontos corridos no Brasil, engrossei as fileiras dos que se opunham ao formato. Achava que era um sistema enfadonho, um deslumbre boboca com o futebol europeu (embora ainda perceba, entre nossa "crônica", um deslumbre exacerbado e risível com os campeonatos do Velho Continente - onde se pratica, com exceção do campeonato inglês, o ludopédio mais chato do mundo!); e que o torcedor brasileiro estava acostumado com os jogos decisivos, que teriam feito a glória de nossos campeonatos. Em particular, incomodava-me o fato de que a partida final, com suas dezenas de milhares de torcedores lotando os estádios, ia ser abolida do nosso calendário, dando lugar a um sistema meio insípido, onde o campeão se revelaria com rodadas de antecedência e faria do restante da tabela um rito sonâmbulo e burocrático.  
Além disso, via o debate sobre o formato do campeonato embotar um debate maior, anterior, que é o da lisura e transparência política do nosso futebol, tema em que não avançamos. Com os primeiros campeonatos disputados a partir dessa nova fórmula, recuei um pouco nesse ponto de vista e passei a argumentar que, pontos corridos ou não, o importante era o Brasileirão ter um formato consolidado, que garantisse, digamos, uma "segurança jurídica" ao seu torcedor. Mais alguns anos e, admito, mudei de opinião - apenas em relação ao modo como o torneio é disputado. Os pontos corridos são, de fato, o melhor sistema para um torneio como o nosso campeonato. 
No que diz respeito à presença de público, por exemplo, em vez de uma final, este ano tivemos pelo menos umas vinte. Tanto na série A quanto na série B. Mesmo que um time desgarrasse na ponta da tabela, a disputa pelas vagas da Libertadores e a luta contra o rebaixamento (não falo da Sulamericana porque não me parece um campeonato relevante) garantiriam o frenesi dos estádios. Hoje, o Couto Pereira e o Engenhão receberam cerca de 40 mil torcedores cada um para os jogos decisivos (finais a seu modo) de Coritiba e Botafogo, que lutavam contra o rebaixamento. 
Confesso que torci contra o São Paulo não por ter nada contra o time paulista, mas por achar que o tetracampeonato seguido do Tricolor poderia fortalecer o argumentos dos que começam a se mobilizar pelo fim dos pontos corridos. Entre eles, a Globo Esportes, que cuida dos interesses da Vênus Platinada, e que, diante da queda de audiência do campeonato, tenta junto à CBF o retorno do sistema mata-mata. Seria um retrocesso impiedoso para o futebol brasileiro. Aliás, credito a queda na audiência do campeonato brasileiro não ao formato do campeonato, mas ao fortalecimento dos times regionais, que fraturam o antigo monopólio de Rio e São Paulo. Mas isso é tema para outro post...
A conquista do Flamengo chega em boa hora, sepultando o jejum rubro-negro, e arejando o espectro das conquistas dessa nova fase de nosso campeonato (Minas tem um título; o futebol paulista, cinco; e o carioca, um). O penta (sim, penta) do time da Gávea, que tem um elenco apenas mediano e um treinador cuja grande virtude é sua capacidade aglutinadora, também enfraquece o pedantismo de gente como Luxemburgo e Muricy Ramalho. 
Esse talvez tenha sido o golpe mais duro nos interesses de quem quer ver o mata-mata redivivo: a comemoração da maior torcida do Brasil em pleno campeonato de pontos corridos, onde supostamente prevaleceria a assepsia de conceitos como "planejamento" - bordão surrado nas penas dos cronistas de plantão. 
Nada é menos planejado e mais desorganizado do que o Flamengo, que devolveu ao futebol brasileiro o delírio delicioso da surpresa.  
Vida longa ao Mengão! Vida longa aos pontos corridos!

sábado, 5 de dezembro de 2009

Mania de listas (os melhores discos do ano)

Salvo algum lançamento improvável de última hora, os melhores discos do ano já podem ser mapeados. Segue a relação escolhida pela “equipe” do Talabarte, que complementa a lista que havia sido feita para o primeiro semestre.

  

1. Balangandãs, de Ná Ozzetti. Disco-tributo a Carmem Miranda que revisita o repertório clássico de compositores igualmente canônicos, como Assis Valente, João de Barro, Synval Silva, Dorival Caymmi e Zequinha de Abreu, entre outros, com roupagem revigorada e delicada assinada por Dante Ozzetti e Mário Manga. O grande disco do ano para a “equipe” de redação do Talabarte.

  

2. AfroBossaNova, de Paulo Moura e Armandinho. Chega de saudade! O barquinho mudou sua rota. Manteve a bússola da bossa nova de Jobim, mas, em vez do macio azul do mar, fez de sua carta náutica uma aquarela étnica e percorreu o mares bravios e intensos de suas raízes negras. Do samba ao west-coast, do candomblé ao hard-bop: axé Coltrane, axé Gerry Mulligan! Wes Montogomery pede a bênção a Pixinguinha e Silas de Oliveira. Água no pote de Oxalá e música na alma do mudo inteiro!

  

3. Saudades do Cordão, de Guinga e Paulo Sérgio Santos. Dois outros exemplos de músicos que, sempre que lançam trabalhos novos, figuram entre os mais mais do ano. Lançando um disco em parceria, então, os dois vão para as cabeças. Para as mais inteligentes e sensíveis, naturalmente. Discão.

  

4. Debussy, Nelson Freire. O pianista brasileiro chegou a um ponto tal de maturidade artística e virtuosismo que qualquer registro seu entra automaticamente para qualquer lista dos melhores discos de todos os tempos. Pois bem, como lançou esse belíssimo Debussy no primeiro semestre, não poderia ficar de fora.

  

5. Zii e Ziê, de Caetano Veloso. Ao dar continuidade à sonoridade crua e minimalista construída em , mas superando o amargor das letras do disco anterior, Caetano grava um disco corajoso, em que volta a tensionar o horizonte de nosso consumo musical e mexe mais algumas peças no tabuleiro do jogo entre a tradição e o contemporâneo.

  

6. Peixes pássaros pessoas, de Mariana Aydar. A promessa anunciada em Kavita 1 se confirma nesse disco com sonoridade e repertório poderosos. Um samba jovial, sem amarras, anda de mãos dadas com um pop inteligente, artigo cada vez mais raro em nossas estantes. Vide a ótima “Tá?”.

  

7. Live from Salzburg, de Nelson Freire e Marta Argerich. Brasil e Argentina numa tabela de titãs. Destaque para o virtuosismo em "Variações sobre um tema de Haydn", de Brahms; e para a arquitetura preciosa de "Variações sobre um tema de Paganini", do polonês Witold Lutoslawski.

8. Devoção, de Luiza Dionísio. Tarefa difícil escolher a maior cantora brasileira viva de quem o Brasil - infelizmente - ainda não ouviu falar. Luiza Dionísio tem meu voto. Seu canto é de um delicado vigor e emociona à primeira audição. Seu repertório, com belas inspirações religiosas afro-brasileiras, se espalha pelo choro-canção ("Velho amigo"), samba sincopado ("Vila do meu coração") e samba de roda ("Mar de jangada").

9. Pimenteira, de Pedro Miranda. Tradição, presente e futuro. Tudo desaguando na voz afinadíssima e cheia de suingue de Pedrinho Miranda. Sem manias de passado nem frescuras de modernidade. Um disco de altíssimo astral e de inegável "força histórica". 

10.Yesterdays, de Keith Jarrett. Há os que prefiram outros trios de Jarrett, como o que contava com Paul Motian e Charlie Haden. Mas é inegável que foram Peacock e DeJohnette que consolidaram o projeto musical do pianista em relação a suas formações jazzísticas. Esse disco celebra mais uma vez essa parceria de mais de trinta anos, com standards como “Stella by Starlihgt”, “Smoke gets in your eyes” e “You took advantage of me”, que, como se espera de um disco do trio, deixam de ser clichês e viram outra coisa nas mãos endiabradas de Jarrett.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Do arco dos velhos


O curso caudaloso - mas impregnado de beleza e alegria - do livro Rabecas do Ceará (Expressão Gráfica/Laboratório de Estudos da Oralidade), do professor e pesquisador Gilmar de Carvalho, convida o leitor a se colocar diante de um trabalho que é, ao mesmo tempo, uma aventura estética e uma experiência intelectual que, no limite, desagua num impasse.
Aventura porque Gilmar - ao lado do fotógrafo Francisco Sousa - se lançou, ao longo de quase três anos, num empreendimento ousado, percorrendo, entre o oco do sertão e a umidade das serras, cerca de 40 municípios e compilando mais de uma centena de interlocutores em seu mapeamento da rabeca e dos rabequeiros no Estado. 
Dessa cartografia musical e antropológica, Gilmar saiu-se com um livro que é verdadeira epopéia sobre a paixão e a intensidade com que os rabequeiros cearenses se dedicam às cordas de seu instrumento. E também sobre os usos, costumes e particularidades que foram cercando, no Ceará, a história de um instrumento cuja origem é milenar - remonta aos instrumentos de cordas tocados por um arco que já eram usados em todas as grandes civilizações da Ásia e da África antes mesmo da produção dos textos bíblicos. 
Em texto publicado na edição digital da revista Raiz, o jornalista Alexandre Bandeira conta que a rabeca teria viajado até a Europa, durante a dominação dos mouros, onde se tornaria bastante apreciada nas mãos dos menestréis medievais. Com o surgimento do violino e seu timbre mais limpo, no entanto, a rabeca foi perdendo a atenção da nobreza e se refugiando nas aldeias distantes dos centros urbanos, virando instrumento preferido da população de menor poder aquisitivo.
“É, além do mais, dos instrumentos típicos dos cegos e pedintes urbanos”, define o livro Instrumentos musicais populares portugueses, de Ernesto de Oliveira e Benjamin Pereira (Ed. Gulbenkian, 2000). “Rabeca é como chamam ao violino os homens do povo no Brasil”, reforça Mário de Andrade no seu Dicionário musical brasileiro. Muitos entusiastas da rabeca, no entanto, refutam essa definição e defendem a autonomia entre os dois instrumentos. De qualquer forma, sem aval erudito ou aristocrático, e mesmo restrita às festas populares e religiosas, o fato foi que a rabeca se espalhou pelo Brasil, adaptando-se à cultura de cada região, do Sul ao Nordeste; e, não raro, cruzando a fronteira do Brasil oficial nas mãos de artistas como Antônio Nóbrega, Mestre Salustiano e o grupo pernambucano Mestre Ambrósio. 
Esse Rabecas do Ceará é o capítulo definitivo a respeito do quinhão cearense dentro da história da rabeca no Brasil. Um capítulo que remonta, segundo Gilmar, não apenas às cordas persas e européias, mas também a um "supreendente e dionisíaco instrumento de aroeira, couro e tripas de carneiro, conhecido como 'nabim', fabricado e tocado em Crateús". Hoje, quase todos os rabequeiros cearenses localizados por Gilmar são velhos. Em geral, a chave de acesso do instrumento às novas gerações de cearenses são programas de iniciação musical (Itapajé), ações de ONGs (Nova Olinda), a experimentação da luteria (Juazeiro do Norte) e a proposta de bandas como Dona Zefinha (Itapipoca). 
"Quase todos (os tocadores de rabeca entrevistados no livro) foram filhos de agricultores e também viviam de suas roças de subsistência, quase sempre na terra dos outros. A música era a possibilidade de fuga desse cotidiano", escreve Gilmar. Outro traço que une todos os rabequeiros do livro - de seu André Venceslau, entrevistado em Saboeiro; ao "lendário" Quincas Firmino, de Quiterianópolis, a quem Gilmar define como a "personificação da ética sertaneja" - é o aprender a tocar "de ouvido". "A música estava na ciência de pressionar as cordas no ponto certo e fazer o arco deslizar com suavidade ou energia. Era preciso mais que isso para se ter música: a 'alma', colocada no bojo da rabeca, aumentando sua capacidade de emissão de som". 
Ao localizar e contar a(s) história(s) de seus protagonistas, o trabalho hercúleo de Gilmar – que também registrou em áudio a arte de seus entrevistados, reunindo as gravaçõs num CD que acompanha o livro - dá visibilidade a uma tradição que já não se renova com a mesma dinâmica e que parecia perdida no tempo, extemporânea, à espera de alguém - quem sabe ele mesmo, Gilmar - que lhe restituísse a contemporaneidade. O livro lança luzes a algo que, soando novo para o leitor, já é velho. Eis o impasse citado no início do texto. Um impasse que foi, durante muito tempo, a própria bússola do trabalho de inúmeros folcloristas no Brasil; mas que, nos termos do livro, é superado pela argúcia do olhar e pela profundidade do trabalho do pesquisador. 
Gilmar, para utilizar uma expressão de Lilian Moritz Schwarcz, não aprisiona a cultura em nome de sua preservação. Pelo contrário, é ciente de que não pode reter a tradição e, portanto, aponta seu trabalho de "resgate", de "preservação" ou de "inventariação" - termos tão caros a folcloristas de outras épocas - para o contexto das dinâmicas da cultura. Postura que é facilitada pela compreensão do significado da palavra "criação" no contexto da tradição popular e pelo interesse renovado (mas ainda tímido) pelo instrumento por parte das novas gerações de músicos e artesãos. 
"Criar é gostar do que se toca. Ou como explicar que um deles (um dos rabequeiros entrevistados) tenha dito que determinada música era sua porque gostava de tocá-la? Saber o gosto do povo e estar atento a um diálogo com a natureza (dialogando com o canto dos pássaros) seriam pressupostos estéticos dessa mesma música de oitiva", escreve Gilmar.  "Eles pareciam congelados diante das novas tendências e a rabeca volta com a retomada da tradição como pressuposto de uma criação contemporânea. Pode ser um pouco tarde para a maioria deles". 
Se ecos dessa pesquisa de Gilmar puderem ser ouvidos em futuros trabalhos de etnomusicologia ou de antropologia, no entanto, o livro pode significar um auspicioso "antes tarde do que nunca" para a rabeca cearense.

Digo sim


Poderia dizer
que a vida é bela, e muito,
e que a revolução caminha com pés de flor
nos campos do meu país,
com pés de borracha
nas grandes cidades brasileiras
e que meu coração
é um sol de esperança entre pulmões
e nuvens

Poderia dizer que meu povo
é uma festa só na voz
de Clara Nunes
no rodar
das cabrochas no carnaval
da Avenida.
Mas não. O poeta mente.

A vida nós a assamos em sangue
e samba
enquanto gira inteira a noite
sobre a pátria desigual. A vida
nós a fazemos nossa
alegre e triste, cantando
em meio à fome
e dizendo sim
– em meio à violência e a solidão dizendo
sim –
pelo espanto da beleza
pela flama de Tereza
pelo meu filho perdido
meu vasto continente
por Vianinha ferido
pelo nosso irmão caído
pelo amor e o que ele nega
pelo que dá e que cega
pelo que virá enfim,
não digo que a vida é bela
tampouco me nego a ela
– digo sim

Digo Sim, Ferreira Gullar

P.S. - O grande poeta virou um articulista conservador e obtuso. A cada domingo é um suplício cada vez maior ler seus textos nos jornais. Mas ainda digo sim a muitos de seus poemas.

O canto da encruzilhada


"Eu venho das dunas brancas/ Onde eu queria ficar/ Deitando os olhos cansados/ Por onde a vida alcançar/ Meu céu é pleno de paz/ Sem chaminés ou fumaça/ No peito enganos mil/ Na Terra é pleno abril" - "Terral" (Ednardo)

Nem a vista das "dunas brancas" nem o "céu pleno de paz" impediram Ednardo de arribar de sua aldeia para tentar o "Sul, a sorte e a estrada". Os tempos eram de dificuldade política, mas também de muita esperança para aquela leva de artistas que partiam de diferentes pontos do Nordeste rumo ao "videotapes" e "revistas supercoloridas". Muitos acabaram sobrando na curva do destino. Outros tantos queriam apenas ver a "menina meio distraída" repetindo a voz dos cantores consagrados - como diziam os versos de "Carneiro", parceria de Ednardo com Augusto Pontes. Poucos conseguiram fazer história.
Na bagagem para São Paulo, onde desembarcou junto com o "Pessoal do Ceará" no início da década de 1970, ele levou as memórias de uma Fortaleza ainda ingênua, que apenas começava a experimentar o "som e a velocidade" de novos tempos naquela virada dos 60 para os 70. Mas em vez de se perder no caldeirão de signos da metrópole e nas tretas do mercado fonográfico, a saudade da terra natal cravou marca na alma e virou um mote poético ao qual o compositor recorrentemente se voltou ao longo de mais de trinta anos de carreira.
"Vai meu filho vai/.../Só não esqueça de voltar para ver/ O que restou desse lugar/ Que o sol e a chuva/ E os homens práticos/ Vão modificar", ele canta em "Avião de Papel". Pois Ednardo não só não esqueceu de voltar para ver e abraçar poeticamente sua aldeia; como fez de Fortaleza uma inspiração terçã em seus versos. Sucessor de Ramos Cotoco, Lauro Maia e Luiz Assunção, seu canto insistiu em falar de coisas nossas, sem folclorizar nosso rosto nem inventar falsas tradições para a Cidade. Sua lírica é uma rota semiótica de mão dupla que tenta entender seu lugar de origem a partir de seu tempo enquanto canta sua geração a partir das referências que constituem a vida da Província.
Logo em seu primeiro disco - onde grava "Terral", " Palmas pra dar Ibope" (com seu aviso sobre o "desassossego" e o "veneno" que rondavam a nossa aldeia) e " Beira-Mar" -, o cantar Fortaleza se revela com urgência para Ednardo. "Viva o som, velocidade/ Forte, praia, minha cidade", ele dispara em Beira-Mar. "A cidade é bem mais que um pano de fundo para uma história de amor. Ela é personagem. Não é qualquer beira de mar de qualquer cidade do Brasil, mas uma Beira-Mar localizada, a de Fortaleza. Uma Beira-Mar com seu footing provinciano, seus bares, sua estátua de Iracema onde 'Só o meu grito nega aos quatro ventos/ a verdade que não quero ver'", analisa o jornalista e professor Gilmar de Carvalho no ensaio Referenciais Cearenses na Música de Ednardo, o mais completo sobre a trajetória do compositor.
Ednardo veio de longe, mas também veio de dentro de si, como ele sugere em "Blues à flor da pele". Ele é também o compositor de "Pastoril", que saiu "do mel da jandaíra" e veio da Maraponga. Essa geografia íntima do artista, que começou a se mostrar ao Brasil através do sucesso de "Pavão Mysteriozo" - onde o maracatu cearense embala a literatura popular -, serviu para reafirmar Fortaleza como uma cidade a partir da qual é possível fazer uma poesia cosmopolita e engajada.
No jogo poético de "Baião de Dois", por exemplo, Ednardo desconstrói em anagramas o mito fundador de sua terra: "Iracema ama/ Iracema ara/ Iracema ima/ Iracema cara/ Iracema rima/ Iracema mar/ Iracema é América". Em "Passeio Público", ele resgata o episódio da prisão de Bárbara de Alencar: "Hoje ao passar pelos lados/ Das brancas paredes, paredes do forte/ Escuto ganidos de morte/ Vindos daquela janela/ É Bárbara, tenho certeza". Mito e história, portanto, são duas balizas de uma obra que se propõe telúrica não para dar corda em qualquer ufanismo publicitário, mas apenas para falar ao mundo.
As musas de Ednardo, como a Elvira de "Brincando é que se aprende", podem vir tanto do Braz, quanto de Ipanema, quanto da Aldeota, não importa. O que importa é, como diz a letra de "Imã" a "canção ao vento leve" que a raiz "espalha em cada folha". Falando da saudade do verde mar da Cidade, da eterna briga entre o mar e as pedras da Praia de Iracema, ele diz em "Longarinas" que a "moda" não muda "seu mote".
Ednardo flagra Fortaleza como a cidade sem uma tradição cultural específica, ao contrário de Salvador, Recife ou Rio de Janeiro. Mas não faz disso uma muleta para a covardia criativa ou para a alienação gratuita, traços que, com raras exceções, seguem embalando nossa cena artística. Pelo contrário, ele entende Fortaleza como um terreno absolutamente livre para o risco, para a invenção, para o diálogo. "Coma tudo o que você puder/ Arrote e coma você mesmo até/ Consuma tudo em suma/ Definitiva e completamente/ Na destruição somente deste absurdo aniquilamento/ É que talvez surja um outro novo momento", diz a letra de "Padaria espiritual".
Eis nossa encruzilhada cultural primeva: se a arte essencialmente de Fortaleza é uma impossibilidade histórica, que viva a arte em Fortaleza.

*Texto publicado originalmente na Revista Fortaleza, produzida pelo jornal O POVO em 2006. 
** Na foto acima, Ednardo, Téti e Rodger Rogério em apresentação no início dos anos 70.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O dia e o clube

E hoje é o dia nacional do samba!

Da arte da distorção



Está disponível no youtube o vídeo com a íntegra da entrevista de Lula sobre o caso Arruda. Assistindo ao vídeo percebe-se a enorme distorção de conteúdo que foi oferecida aos leitores dos principais portais e jornais (que embarcaram na barrigada hoje) em relação às declarações do presidente. 
Segue o trecho mais importante: 

"Jornalista: Presidente, como é que o senhor stá acompanhando o escândalo envolvendo o governador Arruda, no Distrito Federal?
Presidente: Eu não estou acompanhando, porque está na esfera da Polícia Federal. Se está na esfera da Polícia Federal, o presidente da República não dá palpite. espera a apuração, para depois falar alguma coisa. Vamos aguardar...

Jornalista: As imagens não falam por si ali, presidente?
Presidente: Não, mas vamos aguardar. Imagem não fala por si. O que fala por si é todo o processo de apuração, todo o processo de investigação. Quando tiver toda a apuração, toda a investigação terminada, a Polícia Federal vai ter que apresentar um resultado final, um processo, aí anuncia. Aí você pode fazer juízo de valor. Mesmo assim, quem vai fazer juízo de valor final é a justiça. O presidente da República não pode ficar dando palpite, se é bom, se é ruim. Vamos aguardar a apuração"

Como se vê, Lula não declarou que as imagens escandalosas de Arruda e seu secretariado recebendo propina não falam por si, mas sim que apenas "imagem" - no genérico - não fala por si num processo de apuração policial. Além do que ele, presidente, não acompanhara o caso. Do sentido concreto da declaração à distorção feita pela maior parte dos veículos - que sugerem uma condescendência de Lula com o episódio ou, pasmem, uma estratégia do Planalto para sangrar a oposição até as eleições do ano que vem - há uma distância enorme. A mesma distância, aliás, que separa a propina dos panetones.