"Só tocando em frente ao espelho". Para o pai do pequeno Francisco Soares de Araújo, que mais tarde viria a se consagrar no mundo do choro como o legendário Canhoto da Paraíba (foto acima), esse era o único jeito de ensinar ao filho os mistérios do violão. Mas as lições acabaram nunca acontecendo. Primeiro pela dificuldade em transpor as escalas e as bordoadas para o violão invertido de Chico Soares, que, como todo canhoto, empunhava o braço do instrumento no sentido de seu ombro direito (mas sem inverter as cordas, ao contrário da grande maioria dos canhotos). E depois pela própria genialidade do filho, que desde muito cedo solava cheio de ginga os choros e as valsas de Pixinguinha, Jacob e Ernesto Nazareth. Resumo da ópera (ou do choro): Canhoto aprendeu tudo sozinho, desenvolvendo em seu violão "pelo avesso" um estilo absolutamente particular de execução.
"Ele começa a surpreender no momento em que empunha o violão, pois, como a maioria dos canhotos, é obrigado a inverter a posição do instrumento. Só que não altera a disposição original das cordas, como era de se esperar. Em conseqüência, seu aprendizado não seguiu nenhuma escola violonística e acabou desenvolvendo uma técnica toda particular de execução que, aliada a um senso harmônico-melódico incomum, faz dele um instrumentista excepcional e extremamente original", define o crítico Ruy Fabiano no encarte do LP Canhoto da Paraíba: com mais de mil. O disco, já relançado em CD, foi produzido por Paulinho da Viola, que ao lado de nomes como Jacob do Bandolim e Ernesto Nazareth, é um dos grandes admiradores da música de Canhoto, a quem chegou a dedicar um choro.
Antes de Canhoto da Paraíba, seu homônimo paulista, Américo Jacomino, o Canhoto (1888-1927), assombrou a Pauliceia com seu estilo gauche ao violão e, também sem inverter as cordas, foi um dos responsáveis pelo "enobrecimento" do instrumento (até o início do século XX, considerado um acessório para malandros e bandidos) e por sua aceitação na sociedade paulistana. A projeção de Canhoto era tamanha no circuito de concertos (e shows circenses) de São Paulo que consta que o próprio Romeo Di Giorgio, por volta de 1910, teria lhe presenteado com um instrumento construído por encomenda para sua mão esquerda.
Além do paraibano e do paulistano, há na música brasileira outros canhotos famosos que acabaram "corrigindo" o estilo ao violão, Guinga e Baden Powell entre eles. Nesses casos, foi aplicada a doutrina (meio sectária) segundo a qual (e segundo alguns professores de música mais ortodoxos), se não há violino, cello ou piano para canhotos, também não poderia haver violão invertido. Mas isso é uma outra (longa, enfadonha e inócua) discussão...
É bem improvável que Jimi Hendrix, que também era canhoto, tenha algum dia ouvido falar em Chico Soares e seu violão invertido. Pior para Hendrix. Mas o fato é que o maior guitarrista de todos os tempos empunhava seu instrumento da mesma maneira que o gênio paraibano. E também sem inverter as cordas. Embora usasse e abusasse de alguns "periféricos" da guitarra, chegando a reinventar funções para pedais, caixas e alavancas, era o fato de tocar seu instrumento "pelo avesso" que lhe permitiu desenvolver um estilo único como guitarrista. Desse modo podia, por exemplo, pressionar todas as seis cordas de sua Stratocaster apenas com a parte de cima de seu polegar, tocando bases e solos simultaneamente, entre outras "feitiçarias" musicais.
Embora a história da música registre outros guitarristas canhotos famosos, como Kurt Cobain (Nirvana); Tony Iommi (Black Sabath), que também não possuía as pontas de dois dedos em sua mão direita; Eric Gales, Dick Dale, Albert King e Otis Rush, ninguém foi tão influente como Jimi Hendrix. Pelo menos não ao ponto de consolidar uma escola específica que influenciou a canhotos e destros indistintamente. No Brasil, Edgard Scandurra (Ira!) é outro canhoto que toca sua guitarra às avessas, sem inverter as cordas, a la Hendrix. Não à toa freqüenta periodicamente o posto de melhor guitarrista do País.
Abaixo, um vídeo com Canhoto da Paraíba no programa Ensaio da TV Cultura (dica enviada por twitter por um grande violonista cearense, David 7 Cordas), escoltado por ninguém menos que Paulinho da Viola ao cavaco e César Farias (pai de Paulinho) ao violão.
2 comentários:
Poderia acrescentar o Dick Dale também. Canhoto que toca com guitarra invertida.
Correto, Mateus. Já acrescentei lá no texto. obrigado pela lembrança.
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