quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Um mestre em movimento



Um dos traços norteadores da obra caudalosa de Antonio Candido é a consciência de uma saudável dinâmica que cerca as interpretações e análises na seara das artes - e da literatura, em especial. Além de ser um intelectual que reconhece os valores estéticos para além das amarras dos valores éticos e políticos, ele é, na definição da crítica Leyla Perrone-Moisés, um crítico de enunciação delicada, que nunca se apresenta com juízos de verdade definitivos e indiscutíveis. ''No lugar das certezas, Antonio Candido prefere o prazer do movimento'', reforça o jornalista José Castello.
Desde 2007, a editora Ouro Sobre Azul vem relançando a obra de Antonio Candido. Coordenado pela designer e editora Ana Luisa Escorel, filha do professor, o projeto vem permitindo às novas gerações de leitores constatar como o pensamento de Candido realizou seus movimentos dentro do campo das letras e da cultura brasileira ao longo dos últimos 60 anos. E, mais importante até, revela como a própria literatura brasileira vem se movendo e se reconfigurando dentro e a partir das idéias de um dos mais importante pensadores brasileiros de todos os tempos.
Na primeira fornada de reedições da Ouro sobre Azul, sete livros voltaram a circular. Brigada Ligeira, o primeiro livro de Candido, foi publicado originalmente em 1945 e é quase todo formado por artigos sobre a narrativa brasileira dos anos 40. Na época, Candido foi o primeiro a tentar realizar uma análise do conjunto da obra ficcional de Oswald de Andrade - ''Imagino, pelas rasteiras que passa nos contemporâneos, as rasteiras que passará nos críticos do futuro'', antecipou - e um dos primeiros a chamar atenção para os livros de dois escritores até então desconhecidos: Clarice Lispector e Fernando Sabino. ''Este romance é uma tentativa impressionante para levar a nossa língua canhestra a domínios pouco explorados'', escreveu sobre Perto do Coração Selvagem, de Clarice.
Em O observador literário, de 1959, Candido consolida sua guinada para os estudos literários - ele que até então era professor assistente de sociologia na USP. E começa também a se interessar por um tipo de análise que se detém na personalidade de alguns escritores e na relação entre obra e biografia. É quando traça deliciosos ''retratos'' de personalidades como Mário e Oswald de Andrade, Giuseppe Ungaretti e Vinícius de Moraes. ''Se hoje dermos um balanço no que Vinicius de Moraes ensinou à poesia brasileira, é capaz de nem percebermos quanto contribuiu, porque, justamente por ter contribuído muito, o que fez de novo entrou para a circulação, tornou-se moeda corrente e linguagem de todos'', celebrou.
Iniciação à Literatura Brasileira é de 1978 e reafirma as propostas do fundamental Formação da Literatura Brasileira, lançado por ele em 1959. Segundo o professor, o homem brasileiro era fruto não só de sua formação social, mas também do mundo imaginário criado por seus artistas e escritores. Já Vários Escritos é composto por textos produzidos entre os anos 60 e os anos 80. Neles, Candido defende, entre outros temas, o papel das universidades e das ciências ''humanas'' no contexto da cultura brasileira. ''Era preciso estabelecer em certos setores um tipo de ensino superior desvinculado das injunções imediatas da formação profissional; e criar um tipo de ensino ligado à pesquisa, que tivesse como finalidade maior a investigação, a descoberta, a inovação'', escreveu sobre a criação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas de São Paulo.
O discurso e a cidade e Recortes são livros de 1993 e também contemplam um amplo leque de temas. Em especial o segundo, que reúne 50 textos que vão de palestras, discursos, artigos de jornal e revistas até a perfis de mestres e amigos. O formato de coletânea também pauta a edição de O albatroz e o chinês, livro mais recente do professor e único título inédito dentro dessa primeira leva de reedições da Ouro sobre Azul. Nele, Candido vai da análise de aspectos da obra de Mallarmé e François Villon até reminiscências sobre Mário de Andrade e comentários entusiasmados sobre o pensamento de Darcy Ribeiro.
Sobre o funeral de Darcy, um emocionado Candido escreve: ''Há certo simbolismo nas três bandeiras que cobriam o seu caixão: a do Brasil, a do seu estado de Minas Gerais e a dos Sem-Terra, pois esta modificou o significado das outras duas. De fato, irmanadas à terceira, elas não encarnavam o país dos donos da vida, nem eram pendões de festa cívica, objetos cansadíssimos de discursos em cerimônias rotineiras. Misturadas com a bandeira dos espoliados, que lutam para sobreviver, representavam também o país dos pobres, dos que precisam ser finalmente incorporados à nação''.
Mais do que um crítico que soube se movimentar com originalidade e clareza de estilo dentro do panorama geral da literatura brasileira, Candido tornou-se também um pensador que não se furtou aos impasses e questões políticas e humanas colocadas por seu tempo. Na medida em que entende o homem brasileiro como resultado da história literária da Nação, consolidou seu nome, como bem define Alain Touraine, como um intelectual que estuda o passado não como uma operação saudosista, mas como um possibilidade de abrir caminhos para grandes movimentos democráticos e de cidadania no presente. Eis o atestado de força e de permanência em sua obra.

Obs: a versão original deste texto foi publicada no jornal O POVO, em 2007. Abaixo, um discurso do professor em homenagem a Florestan Fernandes realizado em setembro de 2009.

Um comentário:

Américo Souza disse...

Belo texto. Justa homenagem.