"Encaretadas por manuais de doutrina e comportamento, adestradas pela conduta neoliberal dos anos 1990, quando passaram a responder diretamente pelas demandas do Departamento Comercial, as redações brasileiras se desprenderam da ação política, dos movimentos sociais, do protagonismo histórico a favor dos direitos humanos e da luta contra a desigualdade. Passaram, sim, a reproduzir um universo medíocre de classe média, supostamente a favor de uma modernidade pós-muro de Berlim, onde bradar contra privatizações e a adoração ao deus mercado passou a ser encarado como esquerdismo imperdoável e anacrônico".
Leandro Fortes, jornalista, em seu blog.
quarta-feira, 29 de dezembro de 2010
segunda-feira, 27 de dezembro de 2010
A biblioteca do Benfica
"Ela pretende ser um espaço democrático de convivência, onde os atores da comunidade possam interagir, criar e resolver demandas, manifestar suas habilidades artísticas, reivindicar, encontrar-se, além de resolver suas demandas informacionais", explica texto publicado na revista Literação, publicação do curso de Biblioteconomia. Coordenado pelo professor Tadeu Feitosa, o projeto foi apresentado em 2009 no Seminário Nacional do Programa de Extensão e Cultura (Proext), do Ministério da Cultura; e recebeu apoio de instituições como a Igreja, os sindicatos, o comércio e a classe artística. Desde então, as ruas do bairro viraram palco para incursões semanais dos bolsistas, que entrevistam antigos moradores e realizam a pesquisa etnográfica e antropológica.
Inicialmente, a Biblioteca Comunitária vai funcionar na Biblioteca Laboratório do curso de Biblioteconomia, na Área II do Centro de Humanidades da UFC no Campus do Benfica. Mais informações sobre o projeto podem ser obtidas através do email bibliofica@ig.com.br
quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
Geraldo Carneiro
à semelhança
de outras noites
recordar palavras estranhas
de um velho refrão popular
à semelhança
de outros ritos
reconstruir seu ruído
escorpião ao redor da cama
à semelhança
de outros cantos
imaginar estrelas
alimentar os signos da noite
à semelhança
de outras luas
iluminar seu sono
encarcerado atrás de janelas
à semelhança de outros
sonhos
inventar a felicidade
que construímos continuamente
mesmo sem saber
que cada uma de suas muralhas
supõe a seguinte e a anterior
Poema "Muralha Chinesa", de autoria de Geraldo Carneiro
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
Os novos (falsos) consensos
Passadas as eleições e na iminência do término do segundo mandato do Governo Lula, o solipsismo da chamada grande imprensa no Brasil vai agora, em suas retrospectivas de fim de ano, erguer a bandeira de que os últimos oito anos não representaram um avanço em relação ao governo de FHC. Mais precisamente, vai creditar o sucesso de popularidade de Lula ao êxito supostamente inexorável das plataformas macro-econômicas implantadas anteriormente por FHC e vai escrever seus erros (do governo petista) com as tintas da suposta incompetência da esquerda, dos riscos da ideologização das ações de Governo, da formação educacional incompleta do presidente, etc, etc.
O Globo, no último fim de semana, abriu os trabalhos. Depois de distorcer números, inverter perspectivas e manipular estatísticas ao sabor de suas conveniências editoriais, o jornal saiu-se com um caderno "especial" que faria um leitor estrangeiro que por ventura não conhecesse o Brasil imaginar que o País vem descendo a ladeira nos últimos tempos e que o povo brasileiro padece de uma hipnose profunda ao ratificar com quase 90% de aprovação tamanha "incompetência" e tamanho "retrocesso".
Não há, claro, nenhuma surpresa nesse esforço dos grandes jornais e revistas identificados com (e financiados por) os setores mais à direita do espectro político brasileiro. Os últimos oito anos balizaram, dentro das grandes redações, o que de pior pode haver na prática jornalística - cartilha que só o distanciamento histórico poderá explicar com contornos mais razoáveis. O mesmo acúmulo histórico, no entanto, mostra que se o patrimonialismo é uma das principais marcas do Estado brasileiro, isso se deve também ao fato de um cartel formado por meia dúzia de famílias se apropriarem de concessões públicas e de conceitos republicanos como a liberdade de expressão.
Voltando à retrospectiva, impressiona a quantidade de mitos que vão embalando esses falsos consensos que se quer vender à opinião pública. Na segunda-feira após a publicação do tal caderno do Globo, o Blog do Planalto rebateu a análise torta e trouxe alguns dados importantes para quem quer esquadrinhar os últimos oito anos com alguma honestidade intelectual - o que não foi o caso do jornal da família Marinho. Os dados estão bem sistematizados e se dividem por áreas do Governo.
Só para citar a suposta "herança bendita" recebida por Lula de FHC segundo o jornal, o texto do Planalto lembra que o risco país em dezembro de 2001 era de 963 pontos básicos e que chegou a 1460 em dezembro de 2002. No mesmo período, a taxa de câmbio real/dólar; norte-americano subiu de 2,32 para 3,53, numa depreciação nominal de 52%. Já a entrada líquida de capital externo caiu de US$ 27 bilhões em 2001 para US$ 8 bilhões em 2002, marola que ajudou a levar as reservas internacionais brasileiras ao patamar de apenas US$ 37,8 bilhões, dos quais mais de US$ 20 bi correspondiam um empréstimo junto ao FMI. A inflação, que vinha se equilibrando em 9%, bateu a casa dos dois dígitos e chegou a 12,5% ao ano em 2002. A dívida líquida, por fim, chegou a mais de 60% do PIB no final de 2002.
Como se vê, o "presente de amigo" deixado pelo venerando FHC praticamente inviabilizava o futuro da economia brasileira - panorama que o Governo Lula, apesar de inúmeros avanços ainda necessários, soube reverter -, mas os repórteres do Globo não souberam (e também não quiseram) desembrulhar a tal "herança".
domingo, 19 de dezembro de 2010
Blake Edwards (1922-2010)
Decididamente, 2010 deixou o mundo mais triste. Depois do diretor italiano Mário Monicelli, na última quinta-feira o cinema perdeu o diretor Blake Edwards, que formou com Peter Sellers uma dupla imbatível nas hilárias aventuras do Inspetor Clouseau na série Pantera Cor de Rosa. O vídeo abaixo faz uma apanhado de algumas das cenas mais clássicas da série, protagonizada por Sellers e dirigida por Edwards.
sexta-feira, 17 de dezembro de 2010
2010: dez discos que fizeram a diferença
Em 2010, a lista não é dos dez melhores discos (ou outra hierarquia do tipo) - afinal, não há critérios objetivos que possam justificar tal exercício além das afinidades e da militância do blogueiro. Por isso, optei em fazer uma lista de fim de ano com dez discos que fizeram a diferença em 2010, o que permite uma avaliação, no mínimo, mais palpável, embora ainda órfã de escalas e medidas mais objetivas. São eles:
1. Terreiro Grande e Cristina Buarque cantam Candeia - Terreiro Grande e Cristina Buarque
Na visão (ou na audição) deste blogueiro, o disco mais relevante do ano. Tanto por revisitar em altíssimo nível o repertório do mestre portelense quanto por iluminar a presença do grupo paulista no atual cenário do samba brasileiro. E também, e mais que tudo, por reafirmar o nome de Cristina Buarque - pelo compromisso inadiável com a delicadeza e com os sentidos mais profundos da nossa música - como um dos mais importantes artistas brasileiros vivos. O CD saiu em abril pela Tratore, que também lançou Tuco e Batalhão de Sambistas, outro CD de tutano deste ano que se vai.
2. Papagaio do moleque - Rabo de lagartixa
O disco foi lançado no fim de 2009, mas só ganhou as lojas e as discussões pela internet em 2010. Qualquer CD que reunisse Marcello Gonçalves, Daniela Spielmann e Beto Cazes já seria um grande disco. No caso específico desse trabalho, ao talento dos três somam-se as presenças de Alessandro Valente e Alexandre Brasil, que completam a formação do Rabo de Lagartixa; e o repertório inesgotável de Villa-Lobos, o que garante um disco-monumento, desses de se escutar a vida inteira sem deixar de se surpreender com a arquitetura exuberante de Villa e com a alegria e a virtuose desses intérpretes. O mais importante lançamento envolvendo a obra de Villa-Lobos neste século.
3. Esperança - Hamilton de Holanda
Hamilton é um homem de seu tempo. Reinventa seu instrumento, ampliando suas possibilidades de expressão; conecta ouvintes e músicos de todo o mundo em novas plataformas tecnológicas, onde divulga seu trabalho e funda amizades; revira o baú das nossas melhores memórias musicais; e percorre os cinco continentes desbravando novas audiências e novos encontros (que vão dos venezuelanos do Ensamble Gurrufio ao ex-Led Zeppelin John Paul Jones). Não utiliza a tradição como biombo para certa auto-indulgência criativa nem vende a alma às tentações fugazes da contemporaneidade, da música de mercado e de outros faustos do tipo. Sua carreira é uma celebração permanente e otimista de nossos dias, em que utiliza como armas repertórios de todas as épocas mas também mira o futuro propondo novas composições.
4. Dizzy Gillespie no Brasil com Trio Mocotó - Dizzy Gillespie
Dizzy dispensa maiores apresentações, assim como o Trio Mocotó. Esse encontro do gênio do jazz com os gênios do ritmo, no entanto, requer algum esclarecimento. Trata-se de um disco gravado em 1974, em São Paulo, do qual até 2008 não se tinha notícia. Na época da gravação, Dizzy deixou o Brasil levando a master do registro e nunca deu satisfações sobre o assunto. A matriz foi encontrada por um produtor suíço em 2008 e resultou neste lançamento da Biscoito Fino em parceria com Groovin'High. "Entre os brasileiros reencontrei a sonoridade ideal, porque, pra mim, música boa é aquela que, de um modo ou de outro, tem cor negra", afirmava Dizzy. Um discos mais importantes de 2010, portanto, foi gravado há 36 anos, mas não perdeu seu gingado absurdo nem sua sonoridade exuberante.
5. Hoje - Carmen Miranda
Remexer no baú dos mortos, em geral, rende (anti-)homenagens de gosto extremamente duvidoso e que não acrescentam nada à obra do artista falecido. Não é o caso desse projeto assinado por Henrique Cazes, que acrescentou uma base de cordas (violão de 7, cavaco e violão tenor), detalhes de sopro e novos elementos de percussão às gravações originais de Carmen Miranda da década de 30. Resultado: é possível ouvir novamente a voz de Carmen rodeada por graves e agudos que se ouviam em suas apresentações ao vivo, mas que não tinham sido registrados em seus discos. Os detalhes são explicados por Cazes numa entrevista que vem como faixa bônus.
6. Jasmine - Keith Jarrett e Charlie Haden
Para todo fã de Jarrett, qualquer novo disco do pianista faz sempre a diferença. Este, no entanto, tem uma razão especial. O disco, gravado na casa de Jarrett, marca o reencontro do pianista com Haden, depois de 35 anos. Haden foi o baixista do primeiro trio de Jarrett, ainda nos anos 60; e de seu Quarteto Americano com o qual atravessou boa parte dos anos 70. Uma experiência intimista entre dois grandes nomes do jazz mundial, que deixam de lado as provocações entre virtuoses para derramar lirismo num dos álbuns mais bonitos do ano.
7. Certa manhã acordei de sonhos intranquilos - Otto
Outro disco que foi lançado oficialmente no fim de 2009, mas que aconteceu em definitivo apenas em 2010. Trata-se do melhor do músico pernambucano, um trabalho que recoloca Otto entre os artistas mais criativos do país. Há quem possa fazer ressalvas à verborragia do músico em suas entrevistas ou a suas letras viajandonas, mas é inegável que Otto sabe, como poucos, criar e explorar texturas e combinações rítmicas passeando e dissolvendo fronteiras entre inúmeros gêneros. A banda afiada, com Catatau, Dengue, Pupilo e outros craques, é ingrediente fundamental nessa receita. Participação especial de Céu e regravação inspirada de "Naquela Mesa"(Sérgio Bittencourt) são as cerejas do bolo.
8. Pra gente fazer mais um samba - Wilson das Neves
Sobre o disco, o texto de Chico Buarque no encarte já diz tudo: "São vinte e cinco anos de amizade, depois de outros tantos de amiração à distância. Eu conhecia Wilson das Neves dos discos, reconhecia de cara sua batida, vez por outra o peruava através do vidro dos estúdios de gravação. Hoje não subo ao palco sem ele. Camarim dos músicos, sem o Das Neves, não é camarim. Ele é o pulso da banda, termômetro, técnico do time, rei da anedota e pajé. Este disco nos traz de volta o grande melodista que é Wilson das Neves. Escutei-o seguidamente com deleite, com um sorriso, com um ciúme danado dos seus parceiros. Aí está ele com sua graça, com a ginga que é só dele, com essa voz que deve ser a voz rouca das ruas, eis aí Wilson das Neves cantando versos prenhes de sabedoria popular".
9. Orquestra Republicana - Ao vivo na Lapa
A Orquestra Republicana - formada por músicos de diversos grupos cariocas como Tira Poeira, Garrafieira e Anjos da Lua - é um dos grupos mais tradicionais no mapa da boemia musical do bairro. Desde 2005, Gallotti, Pedro Holanda, Mariana Bernardes e cia. pilotam a gafieira moderníssima das noites de sábado no Democráticos, um charmoso e centenário sobrado localizado na Rua do Riachuelo que ferve ao som de muito partido-alto, samba sincopado, choros e valsas. Em 2008, o baile foi registrado e agora, finalmente, virou disco através do selo Bolacha Discos. No repertório, Lapas de diversas épocas se encontram. Mas o destaque é mesmo a novíssima Lapa cantada em composições de Alfredo Del-Penho ("Quebranto", "Pra Essa Gente Boa", "Noite à Lapa"), Pedro Hollanda ("Acontece", "Não Vem que Não Tem"), Eduardo Gallotti ("Partido do Homem Solteiro") e Samuel de Oliveira ("Rosa Branca Maré"). Um disco pra saudar a alegria de ser brasileiro, radicalmente brasileiro.
10. Vidas Volantes - Breculê
Em 2010, mais importante para a música cearense do que remexer, pela enésima efeméride, pela enésima vez, no baú da Massafeira - mais relevante como evento, como marco, do que como movimento (que não foi) -, foi o lançamento do CD Vidas Volantes, da rapazeada inspirada do Breculê. Boas composições embaladas por uma boa produção, vitalizadas num colorido balaio de ritmos, colocam a música cearense novamente olhando pra frente, para novos textos, para novos sentidos. Chega de saudade!
1. Terreiro Grande e Cristina Buarque cantam Candeia - Terreiro Grande e Cristina Buarque
Na visão (ou na audição) deste blogueiro, o disco mais relevante do ano. Tanto por revisitar em altíssimo nível o repertório do mestre portelense quanto por iluminar a presença do grupo paulista no atual cenário do samba brasileiro. E também, e mais que tudo, por reafirmar o nome de Cristina Buarque - pelo compromisso inadiável com a delicadeza e com os sentidos mais profundos da nossa música - como um dos mais importantes artistas brasileiros vivos. O CD saiu em abril pela Tratore, que também lançou Tuco e Batalhão de Sambistas, outro CD de tutano deste ano que se vai.
2. Papagaio do moleque - Rabo de lagartixa
O disco foi lançado no fim de 2009, mas só ganhou as lojas e as discussões pela internet em 2010. Qualquer CD que reunisse Marcello Gonçalves, Daniela Spielmann e Beto Cazes já seria um grande disco. No caso específico desse trabalho, ao talento dos três somam-se as presenças de Alessandro Valente e Alexandre Brasil, que completam a formação do Rabo de Lagartixa; e o repertório inesgotável de Villa-Lobos, o que garante um disco-monumento, desses de se escutar a vida inteira sem deixar de se surpreender com a arquitetura exuberante de Villa e com a alegria e a virtuose desses intérpretes. O mais importante lançamento envolvendo a obra de Villa-Lobos neste século.
3. Esperança - Hamilton de Holanda
Hamilton é um homem de seu tempo. Reinventa seu instrumento, ampliando suas possibilidades de expressão; conecta ouvintes e músicos de todo o mundo em novas plataformas tecnológicas, onde divulga seu trabalho e funda amizades; revira o baú das nossas melhores memórias musicais; e percorre os cinco continentes desbravando novas audiências e novos encontros (que vão dos venezuelanos do Ensamble Gurrufio ao ex-Led Zeppelin John Paul Jones). Não utiliza a tradição como biombo para certa auto-indulgência criativa nem vende a alma às tentações fugazes da contemporaneidade, da música de mercado e de outros faustos do tipo. Sua carreira é uma celebração permanente e otimista de nossos dias, em que utiliza como armas repertórios de todas as épocas mas também mira o futuro propondo novas composições.
4. Dizzy Gillespie no Brasil com Trio Mocotó - Dizzy Gillespie
Dizzy dispensa maiores apresentações, assim como o Trio Mocotó. Esse encontro do gênio do jazz com os gênios do ritmo, no entanto, requer algum esclarecimento. Trata-se de um disco gravado em 1974, em São Paulo, do qual até 2008 não se tinha notícia. Na época da gravação, Dizzy deixou o Brasil levando a master do registro e nunca deu satisfações sobre o assunto. A matriz foi encontrada por um produtor suíço em 2008 e resultou neste lançamento da Biscoito Fino em parceria com Groovin'High. "Entre os brasileiros reencontrei a sonoridade ideal, porque, pra mim, música boa é aquela que, de um modo ou de outro, tem cor negra", afirmava Dizzy. Um discos mais importantes de 2010, portanto, foi gravado há 36 anos, mas não perdeu seu gingado absurdo nem sua sonoridade exuberante.
5. Hoje - Carmen Miranda
Remexer no baú dos mortos, em geral, rende (anti-)homenagens de gosto extremamente duvidoso e que não acrescentam nada à obra do artista falecido. Não é o caso desse projeto assinado por Henrique Cazes, que acrescentou uma base de cordas (violão de 7, cavaco e violão tenor), detalhes de sopro e novos elementos de percussão às gravações originais de Carmen Miranda da década de 30. Resultado: é possível ouvir novamente a voz de Carmen rodeada por graves e agudos que se ouviam em suas apresentações ao vivo, mas que não tinham sido registrados em seus discos. Os detalhes são explicados por Cazes numa entrevista que vem como faixa bônus.
6. Jasmine - Keith Jarrett e Charlie Haden
Para todo fã de Jarrett, qualquer novo disco do pianista faz sempre a diferença. Este, no entanto, tem uma razão especial. O disco, gravado na casa de Jarrett, marca o reencontro do pianista com Haden, depois de 35 anos. Haden foi o baixista do primeiro trio de Jarrett, ainda nos anos 60; e de seu Quarteto Americano com o qual atravessou boa parte dos anos 70. Uma experiência intimista entre dois grandes nomes do jazz mundial, que deixam de lado as provocações entre virtuoses para derramar lirismo num dos álbuns mais bonitos do ano.
7. Certa manhã acordei de sonhos intranquilos - Otto
Outro disco que foi lançado oficialmente no fim de 2009, mas que aconteceu em definitivo apenas em 2010. Trata-se do melhor do músico pernambucano, um trabalho que recoloca Otto entre os artistas mais criativos do país. Há quem possa fazer ressalvas à verborragia do músico em suas entrevistas ou a suas letras viajandonas, mas é inegável que Otto sabe, como poucos, criar e explorar texturas e combinações rítmicas passeando e dissolvendo fronteiras entre inúmeros gêneros. A banda afiada, com Catatau, Dengue, Pupilo e outros craques, é ingrediente fundamental nessa receita. Participação especial de Céu e regravação inspirada de "Naquela Mesa"(Sérgio Bittencourt) são as cerejas do bolo.
8. Pra gente fazer mais um samba - Wilson das Neves
Sobre o disco, o texto de Chico Buarque no encarte já diz tudo: "São vinte e cinco anos de amizade, depois de outros tantos de amiração à distância. Eu conhecia Wilson das Neves dos discos, reconhecia de cara sua batida, vez por outra o peruava através do vidro dos estúdios de gravação. Hoje não subo ao palco sem ele. Camarim dos músicos, sem o Das Neves, não é camarim. Ele é o pulso da banda, termômetro, técnico do time, rei da anedota e pajé. Este disco nos traz de volta o grande melodista que é Wilson das Neves. Escutei-o seguidamente com deleite, com um sorriso, com um ciúme danado dos seus parceiros. Aí está ele com sua graça, com a ginga que é só dele, com essa voz que deve ser a voz rouca das ruas, eis aí Wilson das Neves cantando versos prenhes de sabedoria popular".
9. Orquestra Republicana - Ao vivo na Lapa
A Orquestra Republicana - formada por músicos de diversos grupos cariocas como Tira Poeira, Garrafieira e Anjos da Lua - é um dos grupos mais tradicionais no mapa da boemia musical do bairro. Desde 2005, Gallotti, Pedro Holanda, Mariana Bernardes e cia. pilotam a gafieira moderníssima das noites de sábado no Democráticos, um charmoso e centenário sobrado localizado na Rua do Riachuelo que ferve ao som de muito partido-alto, samba sincopado, choros e valsas. Em 2008, o baile foi registrado e agora, finalmente, virou disco através do selo Bolacha Discos. No repertório, Lapas de diversas épocas se encontram. Mas o destaque é mesmo a novíssima Lapa cantada em composições de Alfredo Del-Penho ("Quebranto", "Pra Essa Gente Boa", "Noite à Lapa"), Pedro Hollanda ("Acontece", "Não Vem que Não Tem"), Eduardo Gallotti ("Partido do Homem Solteiro") e Samuel de Oliveira ("Rosa Branca Maré"). Um disco pra saudar a alegria de ser brasileiro, radicalmente brasileiro.
Em 2010, mais importante para a música cearense do que remexer, pela enésima efeméride, pela enésima vez, no baú da Massafeira - mais relevante como evento, como marco, do que como movimento (que não foi) -, foi o lançamento do CD Vidas Volantes, da rapazeada inspirada do Breculê. Boas composições embaladas por uma boa produção, vitalizadas num colorido balaio de ritmos, colocam a música cearense novamente olhando pra frente, para novos textos, para novos sentidos. Chega de saudade!
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
quinta-feira, 2 de dezembro de 2010
De Drummond para Cartola
No Dia nacional do samba, a celebração deste Talabarte vem na forma de crônica, uma crônica de Carlos Drummond de Andrade em homenagem a Cartola publicada no Jornal do Brasil na edição do dia 27 de novembro de 1980, três dias antes da morte do compositor mangueirense.
Você vai pela rua, distraído ou preocupado, não importa. Vai a determinado lugar para fazer qualquer coisa que está escrita em sua agenda. Nem é preciso que tenha agenda. Você tem um destino qualquer, e a rua é só a passagem entre sua casa e a pessoa que vai procurar. De repente estaca. Estaca e fica ouvindo.
Eu fiz o ninho.
Te ensinei o bom caminho.
Mas quando a mulher não tem brio,
é malhar em ferro frio.
Aí você fica parado, escutando até o fim o som que vem da loja de discos, onde alguém se lembrou de reviver o velho samba de Cartola; "Na Floresta" (música de Sílvio Caldas).
Esse Cartola! Desta vez, está desiludido e zangado, mas em geral a atitude dele é de franco romantismo, e tudo se resume num título: Sei Sentir. Cartola sabe sentir com a suavidade dos que amam pela vocação de amar, e se renovam amando. Assim, quando ele nos anuncia: “Tenho um novo amor”, é como se desse a senha pela renovação geral da vida, a germinação de outras flores no eterno jardim. O sol nascerá, com a garantia de Cartola. E com o sol, a incessante primavera.
A delicadeza visceral de Angenor de Oliveira (e não Agenor, como dizem os descuidados) é patente quer na composição, quer na execução. Como bem me observou Jota Efegê, seu padrinho de casamento, trata-se de um distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do malandro não coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro, tipógrafo e lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom musical, a centelha, não o afetou, não fez dele um homem ácido e revoltado. A fama chegou até sua porta sem ser procurada. O discreto Cartola recebeu-a com cortesia. Os dois convivem civilizadamente. Ele tem a elegância moral de Pixinguinha, outro a quem a natureza privilegiou com a sensibilidade criativa, e que também soube ser mestre de delicadeza.
Em Tempos Idos, o divino Cartola, como o qualificou Lúcio Rangel, faz o histórico poético da evolução do samba, que se processou, aliás, com a sua participação eficiente:
Com a mesma roupagem
que saiu daqui
exibiu-se para a Duquesa de Kent
no Itamaraty.
Pode-se dizer que esta foi também a caminhada de Cartola. Nascido no Catete, sua grande experiência humana se desenvolveu no Morro da Mangueira, mas hoje ele é aceito como valor cultural brasileiro, representativo do que há de melhor e mais autêntico na música popular. Ao gravar o seu samba Quem Me Vê Sorrir (com Carlos Cachaça), o maestro Leopold Stockowski não lhe fez nenhum favor: reconheceu, apenas, o que há de inventividade musical nas camadas mais humildes de nossa população. Coisa que contagiou a ilustre Duquesa.
* * *
Mas então eu fiquei parado, ouvindo a filosofia céptica do Mestre Cartola, na voz de Sílvio Caldas. Já não me lembrava o compromisso que tinha de cumprir, que compromisso? Na floresta, o homem fizera um ninho de amor, e a mulher não soubera corresponder à sua dedicação. Inutilmente ele a amara e orientara, mulher sem brio não tem jeito não. Cartola devia estar muito ferido para dizer coisas tão amargas. Hoje não está. Forma um par feliz com Zica, e às vezes a televisão vai até a casa deles, mostra o casal tranqüilo, Cartola discorrendo com modéstia e sabedoria sobre coisas da vida. “O mundo é um moinho...” O moleiro não é ele, Angenor, nem eu, nem qualquer um de nós, igualmente moídos no eterno girar da roda, trigo ou milho que se deixa pulverizar. Alguns, como Cartola, são trigo de qualidade especial. Servem de alimento constante. A gente fica sentindo e pensamenteando sempre o gosto dessa comida. O nobre, o simples, não direi o divino, mas o humano Cartola, que se apaixonou pelo samba e fez do samba o mensageiro de sua alma delicada. O som calou-se, e “fui à vida”, como ele gosta de dizer, isto é, à obrigação daquele dia. Mas levava uma companhia, uma amizade de espírito, o jeito de Cartola botar em lirismo a sua vida, os seus amores, o seu sentimento do mundo, esse moinho, e da poesia, essa iluminação.
terça-feira, 30 de novembro de 2010
Encaixotando Beth Carvalho
Uma caixa recentemente lançada pelo selo Discobertas, do incansável Marcelo Fróes, reúne toda a primeira década de trabalho de Beth (a maior parte dela pela gravadora Tapecar) e ajuda a contar a história dessa transição entre os padrões musicais da época (que Beth exerceu em coletâneas, trilhas de novelas e discos de festivais) e o novo/velho mundo do samba, que a cantora abraçaria em definitivo a partir de seu segundo disco, Canto por um novo dia (1972). Nesse trabalho, Beth gravou a velha (Mano Décio, Nelson Cavaquinho, Darcy da Mangueira e Manuel Santana) e a nova guarda do samba (João Nogueira, Gisa Nogueira, Martinho da Vila e Eduardo Gudin). No disco seguinte, alcançaria sucesso nacional com "1800 colinas", pérola de outro compositor "de morro", Gracia do Salgueiro. Na época, Nara já tinha retornado aos braços da bossa nova e de seus amigos velhos de "MPB", fazendo incursões bissextas pelo samba. Beth, no entanto, entregou a alma para aquela comunidade de poetas, compositores e ritmistas geniais e sofisticadamente simples. Pisou forte no chão e entrou para a eternidade de nossa música.
Abaixo, a gravação de "Se é pecado sambar", de Manoel Santana, que consta no disco Canto por um novo dia, resgatado por Fróes e reeditado na caixa.
Poemetes Araújos - XIII
Não querem ser bons,
mas pós-modernos.
Não querem ser solidários,
preferem dizer amém.
Não querem o sol,
apenas o raio.
Não querem ser velhos,
preferem-se ridículos.
Não querem o tempo,
mas a falsa glória.
Não querem a busca
nem estrelas nem caminho,
nem ritmo nem passo,
querem o muro apenas.
Não querem,
aceitam.
Não choram
nem rasgam o coração,
preferem o sorriso menor.
Há os que nem gostam de ser,
apenas têm.
Também não querem ser utópicos,
mas cínicos.
Há os que têm a boca cheia de dentes,
e o coração embotado.
Querem ser exatamente aquilo que são,
mas, se for o caso,
também preferem
ficar aquém.
O que dá no mesmo.
mas pós-modernos.
Não querem ser solidários,
preferem dizer amém.
Não querem o sol,
apenas o raio.
Não querem ser velhos,
preferem-se ridículos.
Não querem o tempo,
mas a falsa glória.
Não querem a busca
nem estrelas nem caminho,
nem ritmo nem passo,
querem o muro apenas.
Não querem,
aceitam.
Não choram
nem rasgam o coração,
preferem o sorriso menor.
Há os que nem gostam de ser,
apenas têm.
Também não querem ser utópicos,
mas cínicos.
Há os que têm a boca cheia de dentes,
e o coração embotado.
Querem ser exatamente aquilo que são,
mas, se for o caso,
também preferem
ficar aquém.
O que dá no mesmo.
segunda-feira, 29 de novembro de 2010
Mário Monicelli (1915-2010)
Mário Monicelli (1915-2010) era um de meus heróis do cinema italiano. Dono de uma vasta filmografia, seja como diretor seja como roteirista, ele tornou-se a maior referência da comédia italiana na segunda metade do século passado dirigindo produções como O incrível Exército de Brancaleone (1966), Quinteto Irreverente (1975) e Parente é Serpente (1992). Na galeria pessoal deste blogueiro, Meus caros fudidíssimos amigos (1994), filme que alcançou repercussão discreta entre a crítica, é seu melhor trabalho. Monicelli faleceu hoje, aos 95 anos, depois de se atirar pela janela do hospital em que estava internado na cidade de Roma. Fim melancólico para um artista que foi um genial artesão do riso.
Abaixo, trecho de Amici Miei, traduzido no Brasil como Quinteto Irreverente.
domingo, 28 de novembro de 2010
A esperança em dez cordas
Hamilton de Holanda é um homem de seu tempo. Reinventa seu instrumento, ampliando suas possibilidades de expressão (entre elas, o auto-acompanhamento); conecta ouvintes e músicos de todo o mundo em novas plataformas tecnológicas, onde divulga seu trabalho e funda amizades; revira o baú das nossas melhores memórias musicais; e percorre os cinco continentes desbravando novas audiências e novos encontros (que vão dos venezuelanos do Ensamble Gurrufio ao ex-Led Zeppelin John Paul Jones). Não utiliza a tradição como biombo para certa auto-indulgência criativa nem vende a alma às tentações fugazes da contemporaneidade, da música de mercado e de outros faustos do tipo. Sua carreira é uma celebração permanente e otimista de nossos dias, em que utiliza como armas repertórios de todas as épocas mas também mira o futuro propondo novas composições.
Seu disco mais recente é mais um capítulo nesse caudaloso e compassado discurso sobre nosso tempo que Hamilton vem construindo há mais de quinze anos. Esperança, resumo de uma turnê pela Europa em que o brasileiro subiu em palcos da Finlândia, Áustria, França, Alemanha e Suíça acompanhado apenas de seu bandolim de dez cordas. Nas primeiras audições, lembrei-me de Keith Jarrett, pela aventura individual da improvisação; e também de Jacob, pela virtuose, pela matriz rigorosa a partir da qual Hamilton pode expandir seu som. Lembrei-me de Luperce Miranda, pela sonoridade que sugeria o encontro de dois ou três bandolins ao mesmo tempo quando era apenas um que se projetava no palco.
Mas o som que brota do disco é fugidio a esses paradigmas. É Hamilton que se pronuncia ali, inteiro, corajoso, monumental. Contemporâneo ao revisitar a tocante "Vou vivendo", de Pixinguinha; e "Canto de Ossanha", de Vinícius e Baden. Lírico ao se debruçar sobre as notas redundantes de "O que será", de Chico; ou sobre as encruzilhadas bachianas de "7 anéis" de Gismonti. Inventivo - e quase figurativo - em suas próprias "Esperança", "Pros anjos" e "Ettiene".
Um disco para se sentir vivo e para saber da vida em nossos dias. Vida longa a Hamilton e suas cordas!
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
O dia em que morro descer e não for carnaval
Em dias de apreensão no Rio de Janeiro com uma nova escalada da violência em diversos pontos da Cidade (noves fora o sensacionalismo gratuito e irresponsável de parte da imprensa), lembrei-me de uma música de Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro chamada "O dia em que morro descer e não for carnaval". A letra fala por si:
O dia em que o morro descer e não for carnaval
ninguém vai ficar pra assistir o desfile final
na entrada rajada de fogos pra quem nunca viu
vai ser de escopeta, metralha, granada e fuzil
(é a guerra civil)
No dia em que o morro descer e não for carnaval
não vai nem dar tempo de ter o ensaio geral
e cada uma ala da escola será uma quadrilha
a evolução já vai ser de guerrilha
e a alegoria um tremendo arsenal
o tema do enredo vai ser a cidade partida
no dia em que o couro comer na avenida
se o morro descer e não for carnaval
O povo virá de cortiço, alagado e favela
mostrando a miséria sobre a passarela
sem a fantasia que sai no jornal
vai ser uma única escola, uma só bateria
quem vai ser jurado? Ninguém gostaria
que desfile assim não vai ter nada igual
Não tem órgão oficial, nem governo, nem Liga
nem autoridade que compre essa briga
ninguém sabe a força desse pessoal
melhor é o poder devolver à esse povo a alegria
senão todo mundo vai sambar no dia
em que o morro descer e não for carnaval.
quarta-feira, 24 de novembro de 2010
terça-feira, 23 de novembro de 2010
O túmulo dos sambas
Todos os anos, a expectativa pelo lançamento do CD com os sambas de enredo do carnaval carioca mobiliza sambistas de todo o País. Este ano, no entanto, a espera teve um sabor especial pelas inovações no registro. Depois de uma tentativa relativamente bem sucedida no ano passado de gravar as baterias ao vivo e dar um astral diferente ao disco (que vinha se repetindo numa fórmula que destacava cordas e vozes e deixava a pulsação dos ritmistas em segundo plano), a Liesa (liga promotora do carnaval) resolveu aprimorar a proposta editando o CD com destaque às baterias e suas paradinhas e, novidade muito bacana, sem deixar intervalo entre as faixas. A audição se dá por inteiro, com o intérprete de uma escola, ao final de sua faixa, convidando o intérprete da escola seguinte e alternado seus gritos de guerra.
Diante dessas novas possibilidades e desse novo formato de gravação, alguns mestres de bateria acabaram exagerando na dose, abusando das paradinhas e bossas e quebrando o ritmo do registro - caso da Grande Rio, Porto da Pedra e Salgueiro. Outros souberam dosar o malabarismo rítmico (sem deixar de lado a virtuose das bossas) com o suingue e o balanço que a avenida exige e conseguiram realizar registros muito interessantes - caso da Beija Flor, Portela, Mocidade e União da Ilha. Tudo, no entanto, dentro da estrutura engessada de composição a que se reduziu o samba de enredo (refrão da cabeça + estrofe + refrão do meio + segunda estrofe). Boa parte dos sambas está, mais uma vez, impregnada dos clichês poéticos que ora tentam apresentar o enredo ora tentam se comunicar com o público, tentando estabelecer uma empatia cada vez mais fugaz e artificial com a plateia durante o desfile. No mais das vezes, não conseguem nem uma coisa nem outra.
Ainda assim, União da Ilha, Beija Flor e Portela, mesmo caindo nesse esquematismo, têm os melhores sambas e poderão, quem sabe, ultrapassar a posteridade cada vez mais efêmera da Sapucaí. Em geral, nos últimos anos, a passarela do carnaval - que sempre foi o túmulo dos desfiles, que, por sua própria natureza, morriam na avenida ao se consumarem - tem sido também o túmulo dos sambas de enredo.
Abaixo, aqueles que são, na opinião deste blogueiro, os melhores sambas do ano. Também vale a pena conferir, entre as escolas do grupo de acesso, o samba do Império Serrano, que fez uma bela homenagem a Vinícius de Morais.
1. União da Ilha
2. Portela
3. Beija Flor
4. Império Serrano (grupo de acesso)
Chauí, o preconceito e a informação
Em entrevista ao Carta Maior, Marilena Chauí avalia a guerra eleitoral travada na disputa presidencial e chama a atenção para a dificuldade que a oposição teve em manter um alvo único na criação da imagem de Dilma Rousseff: “o preconceito começou com a guerrilheira, não deu certo; passou, então, para a administradora sem experiência política, não deu certo; passou para a afilhada de Lula, não deu certo; desembestou na fúria anti-aborto, e não deu certo. E não deu certo porque a população dispõe dos fatos concretos resultantes das políticas do governo Lula”. Para a professora de Filosofia da USP, essa foi a novidade mais instigante da eleição: a guerra se deu entre o preconceito e a verdadeira informação. E esta última venceu.
Carta Maior: Qual sua avaliação sobre a cobertura da chamada grande mídia brasileira nas eleições deste ano? Na sua opinião, houve alguma surpresa ou novidade em relação à eleição anterior?
Marilena Chauí: Eu diria que, desta vez, o cerco foi mais intenso, assumindo tons de guerra, mais do que mera polarização de opiniões políticas. Mas não foi surpresa: se considerarmos que 92% da população aprovam o governo Lula como ótimo e bom, 4% o consideram regular, restam 4% de desaprovação a qual está concentrada nos meios de comunicação. São as empresas e seus empregados que representam esses 4% e são eles quem têm o poder de fogo para a guerra. O interessante foi a dificuldade para manter um alvo único na criação da imagem de Dilma Rousseff: o preconceito começou com a guerrilheira, não deu certo; passou, então, para a administradora sem experiência política, não deu certo; passou, então, para a afilhada de Lula, não deu certo; desembestou na fúria anti-aborto, e não deu certo. E não deu certo porque a população dispõe dos fatos concretos resultantes das políticas do governo Lula. Isso me parece a novidade mais instigante, isto é, uma sociedade diretamente informada pelas ações governamentais que mudaram seu modo de vida e suas perspectivas, de maneira que a guerra se deu entre o preconceito e a verdadeira informação.
CM: Passada a eleição, um dos debates que deve marcar o próximo período diz respeito à regulamentação do setor de comunicação. Como se sabe, a resistência das grandes empresas de mídia é muito forte. Como superar essa resistência?
MC: Numa democracia, o direito à informação é essencial. Tanto o direito de produzir e difundir informação como o direito de receber e ter acesso à informação. Isso se chama isegoria, palavra criada pelos inventores da democracia, os gregos, significando o direito emitir em público uma opinião para ser discutida e votada, assim como o direito de receber uma opinião para avaliá-la, aceitá-la ou rejeitá-la. Justamente por isso, em todos os países democráticos, existe regulamentação do setor de comunicação. Essa regulamentação visa assegurar a isegoria, a liberdade de expressão e o direito ao contraditório, além de diminuir, tanto quanto possível, o monopólio da informação. Evidentemente, hoje essa regulamentação encontra dificuldades postas pela estrutura oligopólica dos meios, controlados globalmente por um pequeno número de empresas transnacionais. Mas não é por ser difícil, que a regulamentação não deve ser estabelecida e defendida. Trata-se da batalha moderna entre o público e o privado.
CM: Você concorda com a seguinte afirmação: “A mídia brasileira é uma das mais autoritárias do mundo”?
MC: Se deixarmos de lado o caso óbvio das ditaduras e considerarmos apenas as repúblicas democráticas, concordo.
CM: Na sua opinião, é possível fazer alguma distinção entre os grandes veículos midiáticos, do ponto de vista de sua orientação editorial? Ou o que predomina é um pensamento único mesmo.
MC: As variações se dão no interior do pensamento único, isto é, da hegemonia pós-moderna e neoliberal. Ou seja, há setores reacionários de extrema direita, setores claramente conservadores e setores que usam “a folha de parreira”. A folha de parreira, segundo a lenda, serviu para Adão e Eva se cobrirem quando descobriram que estavam nus. Na mídia, a “folha de parreira” consiste em dar um pequeno e controlado espaço à opinião divergente ou contrária à linha da empresa. Às vezes, não dá certo. O caso do Estadão contra Maria Rita Kehl mostra que uma vigorosa voz destoante no coral do “sim senhor” não pode ser suportada.
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
Cuíca enlutada
"Não tem um bom disco de samba que não tenha assinatura da cuíca do mestre Ovídio Brito". A frase é de Arlindo Cruz e resume a presença do percussionista nos últimos 50 anos da música brasileira. De Martinho a Marisa Monte, passando por Beth, Clara e Elza, muitos foram os medalhões que se cercaram de Ovídio para temperar seus discos. Em 2008, ele gravou seu primeiro e único CD solo, uma bela homenagem a Martinho da Vila editada pela Zambo Discos. Ovídio faleceu hoje, ao 65 anos, vítima de um acidente de carro no Rio de Janeiro nas proximidades do aeroporto Santos Dumont. Saudemos a memória do mestre.
Dia do Músico
Para saudar o Dia do Músico, comemorado hoje, um vídeo sobre o maior músico brasileiro de todos os tempos: Pixinguinha.
quinta-feira, 18 de novembro de 2010
Tim Dinter
Tim Dinter é um ilustrador alemão, integrante do coletivo de cartunistas chamado Monogatari. É um nome festejado na cena alemã de quadrinhos e já esteve no Brasil participando de palestra no Instituto Goethe de São Paulo. Em seu site, www.timdinter.de, é possível conferir uma panorâmica de sua produção.
Joca Reiners Terron
"ao longo de treze anos
minha ex-mulher guardou
folhas de árvores em meio
às páginas dos livros
que eu lia
eu nem percebia
desde então ao me deitar
e abrir um livro na cama
aquelas mesmas folhas caem
em meu rosto
tiram meu sono
à noite é sempre outono"
Via blog do autor do poema, Joca Reiners Terron
minha ex-mulher guardou
folhas de árvores em meio
às páginas dos livros
que eu lia
eu nem percebia
desde então ao me deitar
e abrir um livro na cama
aquelas mesmas folhas caem
em meu rosto
tiram meu sono
à noite é sempre outono"
Via blog do autor do poema, Joca Reiners Terron
quarta-feira, 17 de novembro de 2010
Louis: a cinebiografia muda
Em tempos de cinema comercial cada vez mais dependente, no caso dos Estados Unidos, das extravagâncias tecnológicas, de suportes como o 3-D e de um tatibitate criativo que deixou os estúdios praticamente refém dos super-heróis dos quadrinhos, a notícia soa como um alento. Um filme mudo, preto e branco (com apenas algumas cenas coloridas), sobre a infância do maior nome do jazz, cuja exibição é acompanhada ao vivo por uma orquestra de 11 músicos regida por ninguém menos que Wynton Marsalis. Essa é a ideia de Louis, cinebiografia multimidia do Satchmo dirigida pelo estreante Dan Pritzker (mais conhecido dos colunistas de economia por ser o herdeiro milionário da rede de hotéis Hyatt e por manter um fundo milionário de incentivo a jovens talentos musicais nos EUA). O filme, com toques chaplinianos e um visual exuberante (pelo que se pode depreender do trailer), estreou em Chicago, no último mês de agosto, e desde então vem percorrendo os Estados Unidos numa turnê acompanhada com entusiasmo pelos fãs de jazz e de cinema. Na trilha, Marsalis revisita temas de Duke Ellington, Jelly Roll Morton, Charles Mingus e Louis Moreau Gottschalk, compositor do século XIX.
Simultaneamente à turnê, Pritzker finalizava a "continuação"de Louis, a cinebiografia do pioneiro Buddy Bolden, em que o diretor adotou a mesma plataforma multimidia. Juntos, os dois filmes custaram U$ 10 milhões. Perguntado se faria um projeto como este novamente, Pritzker disse que não poderia filmar histórias que não capturassem completamente sua imaginação. "É tão difícil. Não sei como as pessoas conseguem fazer isso num nível mercenário. Não sei como alguém pode se dispor a fazer algo pelo qual não seja completamente apaixonado", afirmou ao New York Times. Não deixa de ser uma declaração audaciosa, mesmo para um bilionário de pai e mãe.
terça-feira, 16 de novembro de 2010
A travessia de Sam Rivers
Super moderna, a capa. Uma grande angular estourada: o saxofone gordo em primeiro plano, o artista no centro da "bola" e o que parece ser um prédio em obras (ou mesmo um edifício pronto) como pano de fundo. No entrelaçado de signos, uma alegoria: o delicado (des)equilíbrio que a época - primeira metade dos anos 60, quando o disco foi gravado - propunha para o jazz. Um gênero acomodado pela auto-indulgência da obra "pronta" do repertório canônico e, ao mesmo tempo, tensionado pela obra "em construção" do experimentalismo do hard-bop e do free jazz. A música-cenário contra a música-protagonista. Um embate que tumultuava o enquadramento do mainstream, que abria novos ângulos, novas fronteiras nas franjas da tradição.
O rock havia conseguido desequilibrar o coro dos contentes no âmbito dos costumes, de fora pra dentro da música. O jazz tinha a própria música como campo de batalha, queria operar a revolução por dentro da gramática musical, queria criar rotas alternativas para se ir de dentro pra fora da música. O rock implodiu (e empobreceu a arquitetura musical disponível), o jazz queria a explosão - e a reconstrução permanentemente dos estilhaços criativos.
Nessa luta, importava mais o caminho, o processo, a pesquisa, do que propriamente os resultados alcançados. Muitos dos últimos discos de Coltrane ou a maior parte dos discos de Ornette Coleman retratam essa procura, que em vez de nos levar a algum lugar "final", pronto, acabado, nos colocam no centro de um furacão permanente, no centro de um devir. O risco é sempre a cacofonia, o isolamento, o ostracismo; mas o sabor e o colorido da aventura compensam a aposta.
O saxofonista (e multi-instrumentista) Sam Rivers também foi desses desbravadores. Tome-se este Fuchsia Swing Song (algo como Canção do swing magenta), seu primeiro disco pela Blue Note, lançado em 1964. Ao seu lado, escoltando suas melodias e seus improvisos, um trio iluminado: Tomy Williams na bateria, Jaki Byard no piano e Ron Carter no baixo. Tentando amarrar as pontas de um hard bop mais comercial com uma proposta mais abstrata de composição, ele nos oferece um conjunto de seis faixas que, pelas soluções inesperadas, pela angulosidade das composições, praticamente não se incorporaram ao songbook de outros bandleaders. No entanto, retomam a seu modo o movimento de descontrução/reconstrução da etimologia musical do jazz e, virtuosamente, seguem sua travessia entre paradigmas estéticos. Da obra "pronta", o disco parte para a obra "aberta", "inacabada", e desta novamente para um cânone que se realimentará do processo e, logo, perderá a condição de cânone, numa semiose infinita e cíclica que é a história possível a ser escrita em se tratando de manifestações tão abstratas quanto o hard-bop ou o free-jazz. Talvez por isso poucos lembrem da música de Sam River como artista de frente. Mas como reter uma imagem acústica de algo que se propõe a ser borrão, a ser rascunho de si mesmo? A ser passo e não pose?
A biografia de Rivers ainda chamaria atenção pelo Studio RivBea, que foi um ponto importante de resistência do jazz em Nova York nos anos 70 (período em que muita gente arribou para a Europa para tentar a vida diante de um mercado americano com casas de show e gravações cada vez mais restritas) e que teve o jazzista como proprietário. Também por sua carreira como professor de jazz nas mais conceituadas escolas de música dos Estados Unidos. O conjunto de sua discografia é bastante desigual e raros são os discos que ombreiam a coragem e o vigor deste registro carmim de seu "debut" pela Blue Note.
No link, a música que dá nome ao disco: "Fuchsia Swing Song"
Abaixo, o registro de um ensaio da RivBea All Star Orchestra (projeto desenvolvido por Rivers nos anos 90).
sexta-feira, 12 de novembro de 2010
Dez nós na madeira
Hoje é o aniversário de 69 anos de João Nogueira. Para saudar a memória e a obra deste que foi um dos maiores cantores e compositores do samba, o Talabarte percorre dez discos fundamentais em sua discografia.
1. João Nogueira (1972)
LP de estreia do sambista. Até então, João Nogueira havia chamado a atenção da crítica e do mercado ao ser gravado por Elizeth Cardoso ("Corrente de Aço") e lançara apenas compactos e registros espalhados em algumas coletâneas. Ironicamente, foi um dos últimos discos de sua discografia a ser lançado em CD. No repertório, João revela suas inúmeras virtudes como intérprete, abordando com maestria composições de Casquinha ("Maria Sambamba"), Wilson Batista ("Mãe Solteira"), Garça ("7o. dia"), Silas de Oliveira ("Heróis da Liberdade") e Egberto Gismonti ("P'rum Samba"); e se reafirma como compositor, embora com resultados desiguais no disco (que traz "Beto Navalha", "Mariana da Gente" e "Alô, Madureira" como exemplos de bons sambas; e outros nem tão inspirados).
2. E lá vou eu (1974)
Nesse disco, a parceria com Paulo César Pinheiro já estava funcionando a pleno vapor. A linda "E lá vou eu", que deu nome ao LP; e as irresistíveis "Batendo à porta" e "Eu hein Rosa" entraram para o repertório atemporal do samba. Ainda da dupla, o disco traz a nostálgica "Braço de boneca" e o sarcástico "Partido Rico". Gisa Nogueira, irmã que virou parceira, aparece com "Eu sei Portela" e "Meu canto sem paz", bela composição que ainda merece ser melhor descoberta. De punho próprio, João assina "Tempo à beça" e "Sonho de um bamba", que se eternizou em sua homenagem à Portela. "Do jeito que o rei mandou" é resultado da parceria entre João e Zé Catimba e seria recriada 30 anos depois por Marcelo D2. "De rosas e coisas amigas", do sempre inspirado Ivor Lancelotti; e "Gago apaixonado", que ganharia sua versão definitiva na voz de João, completam o disco.
3. Vem quem tem (1975)
Disco que deu sequência ao sucesso do LP lançado um ano antes. A parceria com Paulo Cesar Pinheiro se limitou a apenas uma música, mas por se tratar de "Mineira", homenagem antológica a Clara Nunes, ainda assim justificaria todo o disco. Novos parceiros cruzam o caminho de João, como Claudio Jorge ("Samba da Bandola", "Chorando pelos dedos" e "Pra fugir nunca mais") e Eugênio Monteiro, co-autor de "Nó na madeira", que fez o disco vender feito água. "Amor de malandro", de Alcides Malandro Histórico e Monarco, recolocam a Velha Guarda da Portela no repertório do sambista - que já havia gravado samba de Casquinha em seu LP de estreia. Lancelotti aparece novamente, com "Seu caminho de abre", e João banca sozinho "Convênio com o cupido", "Albatrozes" e "O homem de um braço só", homenagem ao bicheiro Natal, então presidente da Portela.
4. Espelho (1977)
O sucesso da belíssima canção-título, com letra escrita por Paulo César Pinheiro em homenagem ao próprio João, acabou obscurecendo boa parte do repertório desse que é um dos melhores discos dos anos 70. Além de "Espelho", o LP passeia em alto nível pelo samba de breque ("Malandro JB"), pelo samba-exaltação ("O passado da Portela") e pelo samba sincopado ("Pimenta no Vatapá" e "Espere, oh Nega!"). A relação de João com os cultos afro-brasileiros também é evidenciada em músicas como "Batucajé" e "Dora das 7 Portas", outra supreendentemente pouco conhecida dentro da discografia do sambista. Nos vocais, João se revela mais à vontade e canta com mais leveza e suingue, acompanhado por um time de feras como Dino Sete Cordas, Wilson das Neves, Luizão Maia (o baixista do samba), Sérgio Barroso, Marçal e Edson Frederico. Discão!!!
5. Vida Boêmia (1978)
Coisas do mercado fonográfico brasileiro. Esse disco extraordinário de João Nogueira não ganhou edição em CD e ainda está confinado ao acervo dos colecionadores e dos sebos digitais. "Bares da Cidade", mais uma bela parceria com Paulo Cesar Pinheiro, abre o disco. "Do Lamas ao Capela/ e na Mem de Sá, passo no Bar Luiz/ e no Amarelinho é que eu vou terminar", canta João esbanjado emoção e gingado. Os clássicos se sucedem: "As Forças da Natureza", "Maria Rita", "Baile no Elite" (parceria de João com o endiabrado Nei Lopes) e "Recado ao poeta"(pérola da dupla PC Pinheiro / Eduardo Gudin). Cartola aparece com "A cor da esperança" ("Sinto brilhando no ar/ e sei que não é vã / A cor da esperança / A esperança no amanhã"), um dos grandes momentos do LP, que se encerra com a parceria extemporanea entre Noel Rosa e João na bem humorada "Ao meu amigo Edgard".
6. Clube do Samba (1979)
Na virada dos anos 70 para os anos 80, João Nogueira viveu uma das fases mais populares de sua carreira. À popularidade dos discos, somou-se a empatia ao movimento de resistência estética e cultural que, ao lado de outros sambistas, ele passou a encampar no Clube do Samba, agremiação que fundou e presidiu. O disco de 1979, que trouxe grandes êxitos como "Súplica", mais um golaço da dupla JN/PCP, resume bem essa fase, em que, na disputa por espaço midiático com gêneros como a discoteca e o incipiente B-Rock, o samba experimentou um de seus inúmeros renascimentos. Ao lado de Roberto Ribeiro, Clara Nunes, Beth Carvalho, Alcione e Martinho da Vila, João formava a infantaria dessa resistência, lotando shows, vendendo bem e produzindo bons discos, como esse emblemático Clube do Samba. Destaque também para "Nicanor Belas Artes", curiosa parceria com Chico Anysio; "Canto do trabalhador" e "Esse meu cantar".
7. Wilson, Geraldo e Noel (1981)
Disco de intérprete. Aqui, João passeia com toda sua classe e todo seu suingue pelo repertório canônico de Wilson Batista, Geraldo Pereira e Noel Rosa, realizando versões definitivas para muitas das composições desses três fundadores do samba urbano brasileiro. "Louco", "De babado" e "Bolinha de papel", por exemplo, que abrem o disco, são três delas. Muito à vontade diante do desafio de repaginar clássicos atemporais, João alia à afinação impecável sua divisão virtuosa, equilibrando sílabas e silêncios num jogo de alto risco para os intérpretes mais desavisados. Destaque também para "Esta noite eu tive um sonho" (que ganharia outra versão igualmente importante na voz de Marcos Sacramento), "Pedro Pedregulho" e "Samba do Meyer" (homenagem de Wilson Batista à "capital dos subúrbios da Central", bairro que também seria berço de João).
8. Pelas terras do Pau Brasil (1984)
Os anos 80 seriam um período menor em termos de qualidade dos registros fonográficos de samba. Foram raros os bons discos de samba, mesmo quando o artista em questão era João Nogueira. Em geral, os estúdios se encheram de muito teclado, muito sintetizador, muita bateria eletrônica e quase nenhuma inspiração. O samba virou uma espécie de bolero apressado. Houve, claro, caras exceções, como este disco de 84. João, já ligado ao GRES Tradição, registrou o primeiro samba-enredo da agremiação, "Xingu"; e renovou sua parceria com PCPinheiro em outras duas composições, "Vovô Sobral" (que abria alas para as eleições diretas) e a cinematográfica "Chico Preto", história de um típico anti-heroi carioca que poderia servir de roteiro para o neo-favelismo que impregnou o cinema brasileiro dos anos 90. Destaque também para "Dois de dezembro", homenagem ao dia nacional do samba assinada em parceria com Nonato Buzar e Paulo Cesar Feital.
9. Parceria (1994)
Essa celebração dos mais de vinte anos de colaboração entre João e Paulo Cesar Pinheiro é um dos melhores discos brasileiros dos anos 90. Em pouco mais de uma hora, quase duas dezenas de sucessos assinados pela dupla são revisitados num clima acústico que cobre de delicadeza o registro. A voz roufenha de Paulo Cesar Pinheiro está em uma de suas melhores fases e João, mesmo já passando por problemas de saúde, ainda era o intérprete virtuoso de outras épocas. Destaque para "Forças da Natureza", "Nos bares da Cidade", em que Pinheiro faz um contraponto acertado à voz de Nogueira (formato que acabou ficando melhor que o registro original, gravado no disco Vida Boêmia, de 78), a versão instrumental de "Batendo a Porta", e a emocionante capela de João em "Minha Missão". Pena que não há registro em vídeo desse que é um dos grandes encontros da história da MPB, viraria um DVD antológico.
10. Chico Buarque Letra & Música (1996)
Para finalizar nosso top ten nogueiriano, outro disco de intérprete. A parceria com Marinho Boffa foi um dos últimos suspiros de João diante do ostracismo dos anos 90. Um disco impecável, em que João, mesmo baqueado pelo primeiro derrame cerebral, percorre com altivez o repertório do amigo Chico Buarque, com quem, curiosamente, nunca chegou a compor (se alguém lembrar de alguma, favor informar este blogueiro). Destaque para "Bastidores", "Homenagem ao Malandro", "Sonho de um carnaval" e "Sem fantasia", em que divide os vocais com Leny Andrade num encontro memorável - e que ainda hoje, milhares de audições depois, leva este blogueiro às lágrimas.
1. João Nogueira (1972)
LP de estreia do sambista. Até então, João Nogueira havia chamado a atenção da crítica e do mercado ao ser gravado por Elizeth Cardoso ("Corrente de Aço") e lançara apenas compactos e registros espalhados em algumas coletâneas. Ironicamente, foi um dos últimos discos de sua discografia a ser lançado em CD. No repertório, João revela suas inúmeras virtudes como intérprete, abordando com maestria composições de Casquinha ("Maria Sambamba"), Wilson Batista ("Mãe Solteira"), Garça ("7o. dia"), Silas de Oliveira ("Heróis da Liberdade") e Egberto Gismonti ("P'rum Samba"); e se reafirma como compositor, embora com resultados desiguais no disco (que traz "Beto Navalha", "Mariana da Gente" e "Alô, Madureira" como exemplos de bons sambas; e outros nem tão inspirados).
2. E lá vou eu (1974)
Nesse disco, a parceria com Paulo César Pinheiro já estava funcionando a pleno vapor. A linda "E lá vou eu", que deu nome ao LP; e as irresistíveis "Batendo à porta" e "Eu hein Rosa" entraram para o repertório atemporal do samba. Ainda da dupla, o disco traz a nostálgica "Braço de boneca" e o sarcástico "Partido Rico". Gisa Nogueira, irmã que virou parceira, aparece com "Eu sei Portela" e "Meu canto sem paz", bela composição que ainda merece ser melhor descoberta. De punho próprio, João assina "Tempo à beça" e "Sonho de um bamba", que se eternizou em sua homenagem à Portela. "Do jeito que o rei mandou" é resultado da parceria entre João e Zé Catimba e seria recriada 30 anos depois por Marcelo D2. "De rosas e coisas amigas", do sempre inspirado Ivor Lancelotti; e "Gago apaixonado", que ganharia sua versão definitiva na voz de João, completam o disco.
3. Vem quem tem (1975)
Disco que deu sequência ao sucesso do LP lançado um ano antes. A parceria com Paulo Cesar Pinheiro se limitou a apenas uma música, mas por se tratar de "Mineira", homenagem antológica a Clara Nunes, ainda assim justificaria todo o disco. Novos parceiros cruzam o caminho de João, como Claudio Jorge ("Samba da Bandola", "Chorando pelos dedos" e "Pra fugir nunca mais") e Eugênio Monteiro, co-autor de "Nó na madeira", que fez o disco vender feito água. "Amor de malandro", de Alcides Malandro Histórico e Monarco, recolocam a Velha Guarda da Portela no repertório do sambista - que já havia gravado samba de Casquinha em seu LP de estreia. Lancelotti aparece novamente, com "Seu caminho de abre", e João banca sozinho "Convênio com o cupido", "Albatrozes" e "O homem de um braço só", homenagem ao bicheiro Natal, então presidente da Portela.
4. Espelho (1977)
O sucesso da belíssima canção-título, com letra escrita por Paulo César Pinheiro em homenagem ao próprio João, acabou obscurecendo boa parte do repertório desse que é um dos melhores discos dos anos 70. Além de "Espelho", o LP passeia em alto nível pelo samba de breque ("Malandro JB"), pelo samba-exaltação ("O passado da Portela") e pelo samba sincopado ("Pimenta no Vatapá" e "Espere, oh Nega!"). A relação de João com os cultos afro-brasileiros também é evidenciada em músicas como "Batucajé" e "Dora das 7 Portas", outra supreendentemente pouco conhecida dentro da discografia do sambista. Nos vocais, João se revela mais à vontade e canta com mais leveza e suingue, acompanhado por um time de feras como Dino Sete Cordas, Wilson das Neves, Luizão Maia (o baixista do samba), Sérgio Barroso, Marçal e Edson Frederico. Discão!!!
5. Vida Boêmia (1978)
Coisas do mercado fonográfico brasileiro. Esse disco extraordinário de João Nogueira não ganhou edição em CD e ainda está confinado ao acervo dos colecionadores e dos sebos digitais. "Bares da Cidade", mais uma bela parceria com Paulo Cesar Pinheiro, abre o disco. "Do Lamas ao Capela/ e na Mem de Sá, passo no Bar Luiz/ e no Amarelinho é que eu vou terminar", canta João esbanjado emoção e gingado. Os clássicos se sucedem: "As Forças da Natureza", "Maria Rita", "Baile no Elite" (parceria de João com o endiabrado Nei Lopes) e "Recado ao poeta"(pérola da dupla PC Pinheiro / Eduardo Gudin). Cartola aparece com "A cor da esperança" ("Sinto brilhando no ar/ e sei que não é vã / A cor da esperança / A esperança no amanhã"), um dos grandes momentos do LP, que se encerra com a parceria extemporanea entre Noel Rosa e João na bem humorada "Ao meu amigo Edgard".
6. Clube do Samba (1979)
Na virada dos anos 70 para os anos 80, João Nogueira viveu uma das fases mais populares de sua carreira. À popularidade dos discos, somou-se a empatia ao movimento de resistência estética e cultural que, ao lado de outros sambistas, ele passou a encampar no Clube do Samba, agremiação que fundou e presidiu. O disco de 1979, que trouxe grandes êxitos como "Súplica", mais um golaço da dupla JN/PCP, resume bem essa fase, em que, na disputa por espaço midiático com gêneros como a discoteca e o incipiente B-Rock, o samba experimentou um de seus inúmeros renascimentos. Ao lado de Roberto Ribeiro, Clara Nunes, Beth Carvalho, Alcione e Martinho da Vila, João formava a infantaria dessa resistência, lotando shows, vendendo bem e produzindo bons discos, como esse emblemático Clube do Samba. Destaque também para "Nicanor Belas Artes", curiosa parceria com Chico Anysio; "Canto do trabalhador" e "Esse meu cantar".
7. Wilson, Geraldo e Noel (1981)
Disco de intérprete. Aqui, João passeia com toda sua classe e todo seu suingue pelo repertório canônico de Wilson Batista, Geraldo Pereira e Noel Rosa, realizando versões definitivas para muitas das composições desses três fundadores do samba urbano brasileiro. "Louco", "De babado" e "Bolinha de papel", por exemplo, que abrem o disco, são três delas. Muito à vontade diante do desafio de repaginar clássicos atemporais, João alia à afinação impecável sua divisão virtuosa, equilibrando sílabas e silêncios num jogo de alto risco para os intérpretes mais desavisados. Destaque também para "Esta noite eu tive um sonho" (que ganharia outra versão igualmente importante na voz de Marcos Sacramento), "Pedro Pedregulho" e "Samba do Meyer" (homenagem de Wilson Batista à "capital dos subúrbios da Central", bairro que também seria berço de João).
8. Pelas terras do Pau Brasil (1984)
Os anos 80 seriam um período menor em termos de qualidade dos registros fonográficos de samba. Foram raros os bons discos de samba, mesmo quando o artista em questão era João Nogueira. Em geral, os estúdios se encheram de muito teclado, muito sintetizador, muita bateria eletrônica e quase nenhuma inspiração. O samba virou uma espécie de bolero apressado. Houve, claro, caras exceções, como este disco de 84. João, já ligado ao GRES Tradição, registrou o primeiro samba-enredo da agremiação, "Xingu"; e renovou sua parceria com PCPinheiro em outras duas composições, "Vovô Sobral" (que abria alas para as eleições diretas) e a cinematográfica "Chico Preto", história de um típico anti-heroi carioca que poderia servir de roteiro para o neo-favelismo que impregnou o cinema brasileiro dos anos 90. Destaque também para "Dois de dezembro", homenagem ao dia nacional do samba assinada em parceria com Nonato Buzar e Paulo Cesar Feital.
9. Parceria (1994)
Essa celebração dos mais de vinte anos de colaboração entre João e Paulo Cesar Pinheiro é um dos melhores discos brasileiros dos anos 90. Em pouco mais de uma hora, quase duas dezenas de sucessos assinados pela dupla são revisitados num clima acústico que cobre de delicadeza o registro. A voz roufenha de Paulo Cesar Pinheiro está em uma de suas melhores fases e João, mesmo já passando por problemas de saúde, ainda era o intérprete virtuoso de outras épocas. Destaque para "Forças da Natureza", "Nos bares da Cidade", em que Pinheiro faz um contraponto acertado à voz de Nogueira (formato que acabou ficando melhor que o registro original, gravado no disco Vida Boêmia, de 78), a versão instrumental de "Batendo a Porta", e a emocionante capela de João em "Minha Missão". Pena que não há registro em vídeo desse que é um dos grandes encontros da história da MPB, viraria um DVD antológico.
10. Chico Buarque Letra & Música (1996)
Para finalizar nosso top ten nogueiriano, outro disco de intérprete. A parceria com Marinho Boffa foi um dos últimos suspiros de João diante do ostracismo dos anos 90. Um disco impecável, em que João, mesmo baqueado pelo primeiro derrame cerebral, percorre com altivez o repertório do amigo Chico Buarque, com quem, curiosamente, nunca chegou a compor (se alguém lembrar de alguma, favor informar este blogueiro). Destaque para "Bastidores", "Homenagem ao Malandro", "Sonho de um carnaval" e "Sem fantasia", em que divide os vocais com Leny Andrade num encontro memorável - e que ainda hoje, milhares de audições depois, leva este blogueiro às lágrimas.
Flávio Aguiar
"Às vezes é preciso abandonar o barco,
A luta, o carrossel, o circo inteiro,
E partir como ave migratória para o norte
Em busca de terras de verão e sol,
Mas quando isto for preciso
Que se faça com rosto limpo,
A face descoberta e voltada para a frente,
Que não haja mentiras nem tristeza.
Queimem-se as lembrancas, quebrem-se
As garrafas; enterrem-se cinzas e cacos.
Seja-se até os ossos mais frágeis
Uma ave migratória: a volta existe
Mas é outra história, e não desculpa
A permanência no ponto de partida."
Flávio Aguiar, poeta, tradutor e professor gaúcho, autor de Sol (1972) e Outros poemas (1997).
Marcel Gotlib
O vídeo acima traz uma pequena mostra do trabalho do cartunista francês Marcel Gotlib, que, no Brasil, colaborou recentemente com a revista Piauí. Vale a pena conhecer o site do homem: www.marcelgotlib.com
quarta-feira, 10 de novembro de 2010
Diálogos Possíveis: Ronaldo Salgado
Para o jornalista Ronaldo Salgado, professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará (UFC), é chegada "a hora de uma nova ordem de comunicação no Brasil". Essa nova ordem, no entendimento do acadêmico, passa pela discussão republicana dos novos direitos e deveres das empresas de comunicação em sua relação com a sociedade. Ele destaca que mecanismos como os conselhos estaduais de comunicação e o Conselho Federal de Jornalismo, que têm sido satanizados pelos grandes veículos de mídia no Brasil, são importantes na definição de um modelo brasileiro de controle social - a exemplo do que acontece em diversos países do mundo. "(Os grandes veículos) esquecem o que está na Constituição Federal, deturpam o papel e as discussões que houve na Conferência Nacional de Comunicação e banem do noticiário as vozes favoráveis a essa discussão, de forma descarada e antiética, para dizer o mínimo", defende o professor.
Por e-mail, Ronaldo respondeu três perguntas enviadas pelo blog. As respostas seguem abaixo, na íntegra.
Talabarte - Quem perde e quem ganha com a revisão do sistema de regulação dos meios de comunicação por parte da sociedade civil que (in) existe no Brasil? Por quê?
Ronaldo Salgado - Em verdade, essa questão é tão urgente quanto o são a reforma política, a reforma tributária e a reforma trabalhista, para ficarmos nesses três setores fundamentais para a reorganização política e socioeconômica do Brasil. Antes, cabe uma ressalva: essas reformas não podem ser vistas e analisadas somente sob a ótica da elite política e econômica do País. Urge que o conjunto da sociedade brasileira, na multiplicidade de suas entidades representativas e seus interesses específicos e gerais, seja ouvido e levado em consideração sobre o papel e a atuação dos meios de comunicação no Brasil. Daí a importância também da discussão sobre mecanismos de regulação dos meios de comunicação, principalmente o setor audiovisual – emissoras de rádio e televisão (aberta e paga), além da própria Internet. A questão de jornais e revistas também precisa ser levada em conta, mas sob outra ótica, já que, diferentemente das tevês e das emissoras de rádio – concessões públicas governamentais –, são empresas privadas, com registro na Junta Comercial. Mas cumprem um serviço de interesse público. Em um raciocínio mais ponderado, o ideal seria pensar num único vencedor: o interesse coletivo. A questão não é de controle, tutela ou submissão dos meios de comunicação a quaisquer mecanismos que sejam criados para acompanhar as produções jornalísticas, culturais ou de entretenimento, como ocorre nos países mais avançados do mundo. A questão deve ser vista sob o crivo da responsabilidade e do interesse de todos que consomem essas produções no quotidiano. Os meios de comunicação no Brasil precisam prestar contas, sim, à sociedade que serve – bem ou mal, esses serviços prestados não podem estar submetidos única e exclusivamente aos interesses, às ideologias, às vontades, aos caprichos ou à sanha de seus proprietários. Ora, quando manipulam reportagens, distorcem e sonegam informações, deturpam conteúdos, desrespeitam dignidades alheias, atentam contra os Direitos Humanos, ou, simplesmente, omitem informações à sociedade, atendendo somente aos interesses empresariais específicos de cada grupo empresarial da comunicação ou mesmo corporativos da mídia brasileira, abre-se espaço a um processo cada vez mais perverso de alienação da sociedade, nos segmentos mais desprovidos de uma consciência crítica. Ou, simplesmente, incorrem no crime de lesa-pátria por atender tão somente aos interesses internacionais contrários à nação brasileira. Situação, aliás, vivida recentemente, quando do processo de desconstrução do Estado brasileiro que ficou conhecido como “privataria”.
Talabarte - Como você tem acompanhado a postura dos grandes veículos de comunicação em relação a esse debate?
Ronaldo Salgado - Acompanho com tristeza, mas com minha consciência crítica em permanente estado de alerta. Afinal, a postura dos grandes veículos é, no mínimo, cínica, desrespeitosa para com os leitores, telespectadores e ouvintes de jornais, revistas, emissoras de TV e rádio. Essa postura faz gato e sapato da maior parte da população, simplesmente porque não informa com equilíbrio e isenção. Não é pautada pelo compromisso de informar com imparcialidade e eqüidistância como consta nos manuais de redação da maior parte desses veículos. Usam os atributos de imparcialidade, neutralidade, compromisso com a verdade dos fatos e atuação sob a égide da ética para conquistar audiência – ou seja, fazem uma descarada propaganda enganosa contra a sociedade, que paga por um produto jornalístico de qualidade e recebe outro completamente diferente. Veja o caso das discussões sobre o Conselho Federal de Jornalismo, há dois anos, e dos conselhos estaduais em processo de discussão preliminar no Ceará e em vários outros estados brasileiros, mais recentemente. Esquecem o que está na Constituição Federal, deturpam o papel e as discussões que houve na Conferência Nacional de Comunicação e banem do noticiário as vozes favoráveis a essa discussão, de forma descarada e antiética, para dizer o mínimo.
Talabarte - Que propostas concretas poderiam delinear esse novo modelo de regulação pública dos meios sem que isso se configure em expedientes de censura ou de cerceamento à liberdade de expressão?
Ronaldo Salgado - É necessário que os setores antagônicos nessa questão sentem-se à mesa e encarem o desafio de construir um modelo de controle social, cujo primeiro parágrafo do documento que daí vier a surgir seja: “Somos intransigentemente contrários a qualquer tipo de censura ou de cerceamento à liberdade de expressão no Brasil, submetidos que estamos à Carta Magna do País”. A partir disso, devemos nos debruçar sobre os modelos de controle social postos em prática em todo o mundo – nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra, na Itália, na Alemanha, entre outros – e, de maneira crítica, racional, responsável e séria, encontrarmos o que mais bem se adéqua à realidade de um país com 27 estados federativos, além do Distrito Federal, e uma população de mais de 185 milhões vivendo em condições econômicas, sociais, políticas e culturais absurdamente diversas. Ora, essa complexidade, por si só, já nos basta para defender a urgência da discussão sobre controle social dos meios de comunicação no Brasil. Esses meios não podem ficar agindo – como o fazem muitas e muitas vezes – preocupados somente com os seus interesses familiares e\ou corporativos. É chegada a hora de uma nova ordem de comunicação no Brasil.
segunda-feira, 8 de novembro de 2010
O avesso do avesso do avesso
"Só tocando em frente ao espelho". Para o pai do pequeno Francisco Soares de Araújo, que mais tarde viria a se consagrar no mundo do choro como o legendário Canhoto da Paraíba (foto acima), esse era o único jeito de ensinar ao filho os mistérios do violão. Mas as lições acabaram nunca acontecendo. Primeiro pela dificuldade em transpor as escalas e as bordoadas para o violão invertido de Chico Soares, que, como todo canhoto, empunhava o braço do instrumento no sentido de seu ombro direito (mas sem inverter as cordas, ao contrário da grande maioria dos canhotos). E depois pela própria genialidade do filho, que desde muito cedo solava cheio de ginga os choros e as valsas de Pixinguinha, Jacob e Ernesto Nazareth. Resumo da ópera (ou do choro): Canhoto aprendeu tudo sozinho, desenvolvendo em seu violão "pelo avesso" um estilo absolutamente particular de execução.
"Ele começa a surpreender no momento em que empunha o violão, pois, como a maioria dos canhotos, é obrigado a inverter a posição do instrumento. Só que não altera a disposição original das cordas, como era de se esperar. Em conseqüência, seu aprendizado não seguiu nenhuma escola violonística e acabou desenvolvendo uma técnica toda particular de execução que, aliada a um senso harmônico-melódico incomum, faz dele um instrumentista excepcional e extremamente original", define o crítico Ruy Fabiano no encarte do LP Canhoto da Paraíba: com mais de mil. O disco, já relançado em CD, foi produzido por Paulinho da Viola, que ao lado de nomes como Jacob do Bandolim e Ernesto Nazareth, é um dos grandes admiradores da música de Canhoto, a quem chegou a dedicar um choro.
Antes de Canhoto da Paraíba, seu homônimo paulista, Américo Jacomino, o Canhoto (1888-1927), assombrou a Pauliceia com seu estilo gauche ao violão e, também sem inverter as cordas, foi um dos responsáveis pelo "enobrecimento" do instrumento (até o início do século XX, considerado um acessório para malandros e bandidos) e por sua aceitação na sociedade paulistana. A projeção de Canhoto era tamanha no circuito de concertos (e shows circenses) de São Paulo que consta que o próprio Romeo Di Giorgio, por volta de 1910, teria lhe presenteado com um instrumento construído por encomenda para sua mão esquerda.
Além do paraibano e do paulistano, há na música brasileira outros canhotos famosos que acabaram "corrigindo" o estilo ao violão, Guinga e Baden Powell entre eles. Nesses casos, foi aplicada a doutrina (meio sectária) segundo a qual (e segundo alguns professores de música mais ortodoxos), se não há violino, cello ou piano para canhotos, também não poderia haver violão invertido. Mas isso é uma outra (longa, enfadonha e inócua) discussão...
É bem improvável que Jimi Hendrix, que também era canhoto, tenha algum dia ouvido falar em Chico Soares e seu violão invertido. Pior para Hendrix. Mas o fato é que o maior guitarrista de todos os tempos empunhava seu instrumento da mesma maneira que o gênio paraibano. E também sem inverter as cordas. Embora usasse e abusasse de alguns "periféricos" da guitarra, chegando a reinventar funções para pedais, caixas e alavancas, era o fato de tocar seu instrumento "pelo avesso" que lhe permitiu desenvolver um estilo único como guitarrista. Desse modo podia, por exemplo, pressionar todas as seis cordas de sua Stratocaster apenas com a parte de cima de seu polegar, tocando bases e solos simultaneamente, entre outras "feitiçarias" musicais.
Embora a história da música registre outros guitarristas canhotos famosos, como Kurt Cobain (Nirvana); Tony Iommi (Black Sabath), que também não possuía as pontas de dois dedos em sua mão direita; Eric Gales, Dick Dale, Albert King e Otis Rush, ninguém foi tão influente como Jimi Hendrix. Pelo menos não ao ponto de consolidar uma escola específica que influenciou a canhotos e destros indistintamente. No Brasil, Edgard Scandurra (Ira!) é outro canhoto que toca sua guitarra às avessas, sem inverter as cordas, a la Hendrix. Não à toa freqüenta periodicamente o posto de melhor guitarrista do País.
Abaixo, um vídeo com Canhoto da Paraíba no programa Ensaio da TV Cultura (dica enviada por twitter por um grande violonista cearense, David 7 Cordas), escoltado por ninguém menos que Paulinho da Viola ao cavaco e César Farias (pai de Paulinho) ao violão.
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