terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Ano novo (poemetes araújos - XXIII)



Da carne, a faca
sabe
apenas a
vontade de ser
corte
e entrega.

Da faca, a carne
sabe
apenas a
vontade de ser
fio
e posse.

Da noite,
apesar da carne
e dos cortes,
sabemos
apenas
a vontade
de alguma
luz.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Futebol "desterritorializado"

Torcida do Ceará Sporting no Castelão: para a CBF, interessa cada vez mais
 que os santos de casa não façam milagres


Parafraseando Caetano, a paixão é senhora; desde que o futebol é futebol é assim. Tentar deslegitimar a paixão de um torcedor cearense por um clube de fora do Estado seria algo xenófobo e obtuso, que não compreenderia o fundamento mesmo do esporte. Nosso problema, portanto, não são os daqui que torcem por times de fora - em geral do Rio de Janeiro que, historicamente, se consolidou como o polo mais carismático do futebol brasileiro (em que pese a presença crescente dos times paulistas no coração dos torcedores de gerações mais novas). Além do que, as maiores paixões esportivas do Estado ainda são as duas principais forças das arquibancadas locais: Ceará e Fortaleza. E, apesar dos reveses em campo e de uma classe dirigente que - com algumas raríssimas exceções - não desembarcou no século XXI, no que diz respeito à dedicação e ao compromisso de alvinegros e tricolores com seus times, vamos muito bem obrigado.

Entretanto, como comentei ontem na edição do caderno de Esportes, nada mais interessante para o negócio do futebol, para os interesses das grandes corporações que regem esse mercado (com a famigerada CBF à frente de todas), do que um esporte “desterritorializado”, alienado de suas raízes, sua história e suas peculiaridades regionais. Sobretudo, num país continental como o Brasil. Por aqui, o “diferente”, o “exótico”, o ponto fora da curva, pode causar prejuízos à banca. Sem falar na necessidade de mostrar que os elefantes nababescos construídos com dinheiro público ficarão pardos pelo menos até a Copa do Mundo – depois da qual todos os paquidermes brancos ficarão como problema para as próximas gerações.

É nisso que certas mentalidades apostam e investem. A presença de times de fora em partidas caça-níqueis em outras praças é apenas uma das estratégias adotadas. Ontem, por exemplo, foi a vez de Fortaleza receber o onipresente Flamengo numa partida do campeonato brasileiro, o que, para muitos, dividiu a torcida entre a xenofobia e a alienação. Volto a dizer: no futebol, a paixão não é algo que se explique, portanto, não é algo que se possa desconstruir. Prefiro pensar que o objetivo da CBF é, justamente, não dividir a torcida. Seu sonho é ter o Brasileirão como um grande torneio Rio-São Paulo. E, para isso, ela trabalha fortemente para os santos de casa não fazerem milagres.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Keith Jarrett e Brad Mehldau: a arte do improviso


Nada mais conservador e, ao mesmo tempo, nada mais revolucionário do que um piano trio de jazz. Conservador pela profusão de formações do tipo ao longo da história e por uma certa redundância de abordagens e de repertório – resultando no mais das vezes apenas num piano com acompanhamento. E revolucionário pelos pontos fora da curva dessa longeva e, por vezes, fadigada tradição musical: a linhagem que teve em Bill Evans um de seus expoentes máximos e que, em nossos dias, coloca em perspectiva – e também em certo antagonismo – os trios de Keith Jarrett e Brad Mehldau. Em discos recentemente lançados na praça, os dois afirmam suas conexões e seus distanciamentos.
O primeiro é Somewhere, do trio de Jarrett, que se acompanha dos veteranos Gary Peacock (baixo) e Jack DeJohnete (bateria). O álbum foi gravado durante um show em 2009 em Lucerne na Suíça e só agora chega ao público pelo selo ECM. Registro pontuado por certas precariedades no som, o disco quase não é lançado por diferenças de pontos de vista entre os músicos. Enquanto Peacock teve uma noite infernal em termos da qualidade do áudio, e custou a autorizar o lançamento do CD; Jarrett saiu em defesa da gravação: “Eu gosto das gravações mais cruas. Eu gosto do jeito que elas me são entregues na noite em que acontecem. Eu quero que as imperfeições permaneçam porque, pra falar a verdade, o jeito que eu toco em certo se deve ao local”.
O disco celebra os 30 anos do encontro entre os três para uma série de gravações em Nova York que resultaram nos álbuns antológicos da série Standards, que reposicionou a carreira de Jarrett – à época refém de seus concertos solo, marcados pelo improviso pleno -; e iniciou a exitosa carreira do trio, para muitos a maior formação do gênero em atividade. Através de dezenas de álbuns gravados ao longo desse período, a formação de Jarrett tornou-se célebre por conseguir transcender as versões originais das canções que executam, suspendendo o ouvinte numa luminosa atmosfera de liberdade e inventividade.
Em Somewhere, o trio nos traz novas e corajosas versões para clássicos do cancioneiro norte-americano como “Stars fell on Alabama”, “Between the devil and the deep blue sea”, “I thought about you” e a arrebatadora “Tonight”, poema musical de Leonard Bernstein. Essa permanente reinvenção faz a diferença entre o clichê e a genialidade. Para Jarrett, e ele diz isso em várias entrevistas, os “standards” devem ser levados a sério e tem de ser lidos sempre de um ponto de vista radical de improvisação. Daí a nova carga de emoções que pulsam de cada música (ou de cada versão) e, tem sido assim por três décadas, a fascinante capacidade de comunicação entre os músicos e entre esses e o público.

Brad Mehldau
Esse compromisso, esse ir além do lugar-comum e essa fluente inspiração que se manifesta através do improviso são características comuns ao trio de Jarrett e ao trio de Mehldau, que também está com novo disco na praça: Where do you start, lançado pela Nonesuch. Mas ao contrário de Jarrett, o trio de Mehldau explora outros tipos de cancioneiro, incluindo alguns extratos de música pop, e também traz uma abordagem mais cerebral para novos arranjos. “Bom, toda a gente me fala de Keith Jarrett. Eu não sou Keith Jarrett. Ele é um grande músico e eu ouvi muito sua música quando era criança. Mas a diferença entre a música de Jarrett e a minha parece-me ser basicamente de que o trio Standards faz um ‘reexame’ dos clássicos, enquanto o meu trio trabalha quase apenas sobre material novo”, disse Mehldau em uma de suas entrevistas.
Em Where do you start, Mehldau segue com sua fórmula. Ao lado de Jeff Ballard (bateria) e Larry Grenadier (baixo), parceiros de mais de uma década de trabalho, rearranja e grava, a seu modo, dez composições de outros autores – e diversas épocas e locais. Entre eles, Elvis Costello (“Baby plays around”), o mitológico trumpetista Clifford Brown (“Brownie speaks”), o jovem Sufjan Stevens (“Holland”) e os brasileiros Chico Buarque (“Samba e amor”) e Toninho Horta (“Aquelas coisas todas”). E também traz uma nova composição sua, “Jam”.
Do alto de seus quase 70 anos, Jarrett, que tem, de certa forma, uma fama parecida à intolerância e às esquisitices de João Gilberto, já soltou alfinetadas públicas a Brad. Incluindo um comentário de que sua música (dele, Mehldau) não tinha alma, não tinha coração. O exagero do comentário, que trai certo recalque do veterano Jarrett, mostra o quanto a semelhança entre os dois músicos (no palco, gravações e também no imaginário do público) parece incomodá-lo.
Noves fora a fogueira de vaidade, o fato é que os dois seguem atualizando uma tradição de gênios do improviso que remonta a Bach, Beethoven e Mozart. “Bach era genial improvisando ao órgão e em qualquer instrumento de teclado; Beethoven reclamava que via publicados nas semanas seguintes seus improvisos que ouvidos ladrões capturavam em suas janelas; e Mozart era o caso à parte, a ponto de escrever as partes de orquestra, mas deixar em branco a parte solista num concerto de piano que estrearia, improvisando diante do público. É preciso derrubar de uma vez por todas o preconceito de que música boa tem que ser música escrita”, defende o crítico João Marcos Coelho.

Abaixo, uma das faixas do novo disco de Mehldau e o trio de Jarrett interpretando "I thought about you" durante show em Tokyo, em 1993.


Mário de Andrade: o Tiradentes modernista


A semana de arte moderno de 1922, na qual Mário de Andrade teve protagonismo decisivo – antes, durante e mesmo depois de sua realização -, foi uma aventura intelectual de um grupo de escritores, pintores, escultores e músicos que desejavam não apenas uma renovação no campo da expressão artística, mas uma nova posição da arte brasileira em relação à produção internacional. Desejavam, nas palavras do escritor em artigo publicado em 1920 na revista Ilustração Brasileira, fazer ruir “os palácios de mármore dos parnasianos”. Tudo “sob o alaúde vertiginoso da mocidade alegre e triunfal”.
Desde os primeiros anos do século XX e, sobretudo, ao longo da década de 1910, a “Pauliceia” de Mário palpitava “num esto incessante de progresso e civilização”, colocando em trincheiras opostas os conservadores – a “corvejar agouros” – e os jovens modernistas – ou “futuristas furiosos”. “Em 1921, as distâncias entre o Brasil e as ‘nações civilizadas’ já não eram as mesmas dos tempos do rei. Se o Jeca Tatu parecia nos condenar a um passado remoto, à margem da história, o ritmo da vida em cidades como Rio e São Paulo ecoava a experiência urbana moderna dos grandes centros internacionais”, defende o jornalista Marcos Augusto Gonçalves, em seu livro 1922, a semana que não terminou.
Curiosamente, aquele contexto de efervescência cultural - com a criação de entidades educacionais, científicas e artísticas; a promoção de eventos como exposições, banquetes e concertos; e a construção de edificações como o Teatro Municipal de São Paulo, em 1911 -; era financiado pelo dinheiro ligado às tradições conservadoras da elite cafeeira. “Diferentemente do Rio, antiga corte e capital da República, onde a produção artística já havia se organizado em instituições e encontrava meios mais avançados para circular no mercado, em São Paulo o ambiente ainda invertebrado pedia que a iniciativa privada entrasse em cena para estruturá-lo”, afirma Gonçalves.
Nos meses que antecederam o evento de 22, Mário era, diante da opinião pública, o “poeta futurista” por excelência, epíteto concedido por Oswald de Andrade em célebre artigo no Jornal do Comércio – e refutado por Mário naquele que seria o primeiro grande entrevero público entre os dois. Para Oswald, os versos do autor de Pauliceia Desvairada, sem métrica, sem rima, sem grandes epopeias espirituais, escapavam às convenções dominantes e traduziam a “metrópole incontida” que era São Paulo, fervendo de “arte boa e nova”. Depois da repercussão do artigo, a casa de Mário de Andrade virou ponto de encontro regular do grupo modernista, que fermentava cada vez mais os ideais que desaguariam na Semana de Arte Moderna.
Em sua palestra de 1942 sobre o movimento modernista, Mário disse não saber quem teria sido o autor da ideia de realização da semana. “Por mim não sei quem foi, nunca soube, só posso garantir que não fui eu”, afirmou. Embora, em artigos e entrevistas dispersas, credenciasse Graça Aranha e Di Cavalcanti como os primeiros articuladores do projeto, Mário mostrou-se, em diversos momentos (motivado por uma comezinha vaidade?), mais preocupado em exaltar a capacidade de financiamento e de realização do evento, ideia “audaciosa” e “dispendiosíssima”. Assim, acabou por colocar na berlinda o abonado Paulo Prado, que levantou, entre seus pares da alta sociedade paulistana, os meios para realizar os festivais no Municipal.

Vaias
Mais de 90 anos depois, historiadores, jornalistas e registros da época ainda divergem sobre o conteúdo das récitas literárias que ocorreram na Semana de 22. O próprio Mário costumava desconversar sobre o teor de sua participação, programada para o segundo dia de festival, a quarta-feira 15 de fevereiro. Há relativo consenso de que o poeta teria enfrentado a irascível plateia com os versos de “Ode ao burguês” (“Eu insulto o burguês! O burguês-níquel, o burguês-burguês! A digestão bem-feita de São Paulo! O homem-curva! O homem-nádegas! O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, / É sempre um cauteloso pouco-a-pouco!”). E também de que teria sido exaustivamente vaiado e que se mostrara um tanto nervoso diante dos apupos.
Sobre a fúria com que a plateia respondeu aos versos do poeta, Menotti del Picchia escreveria em A longa viagem: “Era contra Mário de Andrade que a revolta da assistência explodia com maior veemência. Como no Horto, o Filho do Senhor, Mário de Andrade pela primeira vez fraquejou. Adivinhei nos seus olhos a súplica que o Cordeiro dirigiu ao Pai celeste na hora suprema da agonia: ‘Afasta de mim esse cálice...’ Não havia ceder. Compreendi a angústia do mártir – pois Mário tornou-se o Tiradentes da nossa Inconfidência”.
Vinte anos depois, Mário comentou sobre a noite. E lembrou-se da coragem que teve para enfrentar o público. Para ele, suas experiências artísticas já vinham escandalizando a intelectualidade do País, mas, até então, apenas expostas em livros e artigos. “Como tive coragem para dizer versos diante duma vaia tão bulhenta que eu não escutava no palco o que Paulo Prado me gritava da primeira fila das poltronas? ... Como pude fazer uma conferência sobre artes plásticas, na escadaria do Teatro, cercado de anônimos que me caçoavam e ofendiam a valer? ...”, perguntou-se.
Segundo o escritor, o entusiasmo de seus pares acabou por lhe embebedar. Por ele, reconheceu, teria cedido. “Digo que teria cedido, mas apenas nessa apresentação espetacular que foi a Semana de Arte Moderna. Com ou sem ela, minha vida intelectual seria o que tem sido”, afirmou. Em relação a um autor da grandeza de Mário, a frase pode até ter sentido, sua vida intelectual talvez tivesse sido tão profícua quanto, independente da algazarra do Municipal. Mas, quase cem anos depois, sabe-se, a vida intelectual do País decididamente não teria sido a mesma.

* Texto publicado no jornal O POVO, edição de 30 de julho de 2013, dentro da série do caderno Vida & Arte sobre os 120 anos de Mário de Andrade

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Eles, os vândalos



Boa parte da crônica e da classe política teve enorme dificuldade em lidar com os recentes protestos pelo País não só em função de suas reivindicações difusas. Mas também por ter de encarar uma alteridade igualmente difusa em seu perfil. Um dos maiores pesadelos do homem moderno decidiu ir às ruas: o outro. E não havia um rosto disponível. Nem mesmo a tradição sebastianista de nossa cultura se fez valer: não havia salvadores nem mártires à mão.

Havia anarquistas de diversos matizes e aproveitadores de diferentes origens. Mas havia (e há), sobretudo, o estudante que passou a ter um novo padrão de exigência em relação ao País, a partir da melhora de sua própria condição de vida. O adolescente que experimentou as ruas e a discussão política pela primeira vez. O jovem da periferia, em seu desabafo violento contra a mesma polícia e a mesma institucionalidade que lhe esculacham diariamente nas sombras do tal estado de direito.
Entre tantos outros.

Desse caldo heterogêneo, emergiu a figura do “vândalo”, da “minoria baderneira”, apanágio de certa cobertura midiática ao lidar com essa alteridade sem rosto. A mesma cobertura que não consegue enxergar como tal outros vândalos cuja atuação está na raiz de todo esse “excesso” represado até então. Vândalos como Renan Calheiros e Henrique Eduardo Alves, presidentes do Poder Legislativo, despudorados ao fazer turismo em aviões da FAB. Como Garibaldi Alves, ministro igualmente surpreendido custeando seu lazer com recursos públicos. E até, ora vejam, vândalos como Joaquim Barbosa, constrangedoramente flagrado em seus passeios às custas do erário – num dos quais renovou o afeto com o amigo Luciano Huck, apresentador global que é, ora vejam também, patrão de seu filho.

Nos últimos dias, o melhor jornalismo não foi aquele que correu apavorado da anomia dos “vândalos” de rua e se refugiou na comodidade de um imaginário institucionalizado e preconceituoso. O melhor jornalismo tem sido aquele que vem dando um rosto aos verdadeiros vândalos em atividade no País.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

O "violêro" de volta a Fortaleza

Elomar: bachianas sertanejas
“Apois pro cantadô i violero/ só hai treis coisa nesse mundo vão/ amô, furria, viola, nunca dinhêro/ viola, furria, amô, dinhêro não”.
O refrão costura as longas estrofes de “O Violêro”, que abre o primeiro LP de Elomar, Das barranca do Rio Gavião, lançado há quarenta anos e já editado em CD. O disco sucedeu o compacto de 1968 e jogou o trovador baiano em definitivo no mundo da MPB. Na bagagem, Elomar trouxe seu violão rebuscado, embalando um cancioneiro que recendia a idade média e aos improvisos dos cantadores nordestinos. No repertório, já antecipava alguns de seus clássicos, como “O pidido”, “Zefinha”, “Cantiga de Amigo” e “Incelença prum amor ritirante”, uma das mais belas músicas da história da MPB. “Quem sabe não vai ser lá, no barato das galáxias e da música de Elomar, que eu vou acabar amarrando um bode definitivo e ficar curtindo uma de pastor de estrelas...”, escrevia um Vinícius de Moraes encantado com a figura caatingueira de Elomar no texto que acompanhava o encarte do disco. Elomar - cuja missão, segundo ele próprio, é “chiqueirar e pastorar, tangerino de ovelhas e bodes” - formou-se arquiteto, é fazendeiro no interior da Bahia e fez 75 anos em 2012. Quem nunca ouviu falar do homem pode, a partir desse disco - e desses shows este fim de semana em Fortaleza -, começar a se apaixonar por seu blues nordestino e suas bachianas sertanejas.


* Por ocasião dos shows de Elomar em Fortaleza, reescrevi, para o jornal O POVO, um texto já publicado aqui nesta porteira eletrônica.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

A metamorfose (Poemetes araújos - XXII)

Male and female (1942), de Jackson Pollock

Certo dia, acordou
saudoso de intensidades
              outrora sonhadas.
Ou, talvez, tenha
despertado após sonhar com
              intensidades já saudosas.
Em si, restou-lhe
abandonar um lar,
trair um país,
              sabotar sorrisos.
Restou esquecer a palavra no altar;
e virar sentido
em busca de altar
para sua palavra.

Quis saber dos atores para além
das cortinas.
Quis saber dos poetas em
suas esquinas.
Rasgou o livro da formalidade.
Restou-lhe ele próprio, saudoso
de um sonho de que já esquecera.
Restaram-lhe essas escaras,
esse vagar pesado,
essas queimaduras de paixão
               de terceiro grau.
Restou-lhe espiar
amores alheios, sem
saber que,
desde antes,
era o amor que lhe espiava:
               pacato, resignado.

Monumento ao soldado morto,
e desconhecido,
perdeu uma guerra que lutou
de trás pra frente.
Médico, fez-se paciente.
E ficou, à mão, sem qualquer verdade.

Resultado:
segue já não tão convicto
em suas dúvidas sobre
a felicidade.


segunda-feira, 1 de julho de 2013

O velho novo Maracanã



No início era o rádio, mais precisamente a rádio Nacional, que fazia o futebol carioca - assim como o samba - galvanizar o País. Com isso, para algumas gerações de torcedores brasileiros os clubes do Rio de Janeiro eram, ao lado de suas paixões regionais, efetivamente uma paixão nacional. Até os anos 90, raros eram os torcedores que, fora de São Paulo, por exemplo, torciam para clubes paulistas. Até então, salvo as disputas locais, o Brasil parecia se dividir entre os torcedores de Flamengo, Vasco, Fluminense e Botafogo. E os ídolos vinham quase todos de lá: Zizinho, Zico, Garrincha, Roberto Dinamite, Dida, Manga, Nilton Santos, Didi, Gerson, Assis etc.
Todo aquele carisma irradiado nacionalmente a partir do Rio tinha um palco, um templo que calava no coração e no imaginário de todo torcedor; o estádio Jornalista Mário Filho, o Maracanã, patrimônio material - e imaterial, pelas suas lendas, histórias e dramas - de todo apaixonado por futebol.
“Maracanã é nossa catedral /E com a Mangueira do seu lado, é bom sinal. /É futebol! /É carnaval! /Paixão igual a do meu povo /Eu não conheço nada igual”, canta Francis Hime na letra de Paulo César Pinheiro. “Domingo, eu vou ao Maracanã /vou torcer pro time que sou fã”, arrebatava Neguinho da Beija Flor. E, durante décadas, o Brasil inteiro, mesmo o torcedor que restava a milhares de quilômetros da Cidade Maravilhosa, “ia junto” com o sambista, com foguetes e bandeiras imaginárias, sagrar-se campeão.
O jogo de hoje entre Espanha e Brasil - para o bem e para o mal - leva novos tempos ao velho Maraca. Os clubes cariocas já não desfrutam do mesmo prestígio em âmbito nacional e vivem em estado pré-falimentar. O futebol, cada vez mais elitizado, virou um business cínico e calculista e a alegria popular da geral foi expulsa da arquitetura corrente. 
A quem serve esse novo gigante de concreto, não sei ao certo. A Copa das Confederações é um torneio atípico e, em sua partida final, certamente vai lotar todos os setores do estádio. Mas fico me perguntando como será a relação entre o estádio e o torcedor em campeonatos “reais”, como os deficitários campeonatos Carioca e Brasileiro.
Jogar no Maracanã era motivo de orgulho para todo desportista. Ser campeão em seu gramado, então, a glória suprema do futebol. Nesta Copa das Confederações, entretanto, atletas espanhois e italianos, por exemplo, já esbanjaram certa indiferença em relação à mitologia e à história do estádio. E mesmo para alguns jogadores brasileiros, tenho lá minhas dúvidas se fará tanta diferença ser campeão no Maraca ou em outro estádio qualquer.
É que a reforma recente, por mais luxuosa (e imoral em seus gastos), fez do Maracanã justamente um estádio qualquer. É o mesmo tipo de estádio que poderíamos encontrar em outros países; e, para completar, ainda bem menor, não mais o maior do mundo. Algo de muito valioso se perdeu junto com seus traços arquitetônicos originais. A partir de hoje, uma nova história começa a ser escrita.
* Texto publicado no caderno de Esportes do O POVO, edição de domingo, dia 30 de junho de 2013

FHC e o chá dos "umbigos delirantes"


A Academia Brasileira de Letras (ABL) – desde muito tempo – deixou de ser uma instituição relevante. Há anos, seu protagonismo se restringe a intervir nas cotações do mercado nacional de vaidades, afagando políticos e empresários. Vigora no casarão da avenida Presidente Wilson uma economia simbólica estéril e anacrônica que deixa para a história não mais que uma embolorada galeria de encômios casuístas. A ABL é a casa da burocracia do elogio fácil; um porfioso Baile da Ilha Fiscal da “inteligência” nacional.
Na semana passada, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi eleito “imortal”. Cadeira 36, cujo patrono é Afonso Celso – aquele do Por que me ufano do meu país. FHC, o superlativo de PhD, como definiu Millôr Fernandes. O intelectual que, chegando ao poder, pediu aos brasileiros que esquecessem o que havia escrito. O sociólogo outrora elevado à condição de “príncipe da sociologia”, mas que carrega em seu currículo graves acusações de plágio, sobretudo na formulação da sua “Teoria da Dependência”, cujas ideias centrais teriam sido despudoradamente copiadas de autores como Ruy Mauro Marini. Sem falar em sua “Mein Kampf” tropical, a biografia A soma e o resto, mesmo título de um livro do marxista francês Henri Lefebvre.
Não creio que cada país tenha os “imortais” que mereça. A Academia Brasileira de Letras, há muito, não vive no Brasil real, não dialoga com sua cultura, com seu povo, com os impasses de seu tempo. Prefere convidar “umbigos delirantes” para o chá dos fardões. “O que me impressiona é que esse homem, que escreve mal e fala pessimamente, as frases se contradizem entre si, é considerado o maior sociólogo brasileiro”, escreve Millôr Fernandes no genial O primado da ignorância, em que demole a escrita do ex-presidente ao analisar seu principal livro, Dependência e desenvolvimento na América Latina.
A história tratou de condenar o FHC presidente ao ostracismo - por seus malfeitos ao País. O FHC sociólogo, o próprio FHC presidente tratara de enterrar. Fico em dúvida sobre qual FHC a ABL tenta ressuscitar agora.
* Artigo publicado na página de opinião no jornal O POVO, edição de 01 de julho de 2013

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Seja bem-vindo*


Quarta-feira passada, início da tarde. Amigo carioca que reside em Fortaleza vai ao jogo com a esposa e a filha. Desavisadamente, segue de táxi pelo início da Alberto Craveiro para tentar acessar o estádio. Dá de cara com o protesto justo na hora do primeiro conflito entre os manifestantes e a tropa de choque. Protege-se daqui, desvia de lá, se esconde aqui, avança mais um pouco. Mesmo desnorteado e um tanto assustado, depois de um tempo ele consegue chegar à fileira de policiais e mostrar seu ingresso.
“Seja bem-vindo à Copa das Confederações”, diz-lhe polidamente um policial da tropa de choque. Surpreso, meu amigo fica sem palavras diante da gentileza do policial, que, entre pedras, gritos, balas de borracha e gás lacrimogênio, segue com as mesuras. “O senhor siga adiante que logo irá acessar o estádio. Agora, é bom se proteger e apressar o passo porque eles (os manifestantes) estão jogando muitas pedras para o lado de cá. Tenha um bom jogo”.
Meio tragicômico (sim, e é verídico), o episódio serve para ilustrar certa mentalidade da política brasileira, principalmente em suas expressões regionais, provincianas. Muitas das quais, aliás, estão na mira difusa dos protestos que se espalharam pelo País. É o tipo de político que naturaliza nossos impasses e se revela completamente alheio às demandas reais e aos dramas concretos da nossa vida, não raro achando-se acima do bem e do mal. É a mentalidade que segue, indiferente à grita da sociedade, construindo aquários surreais, erguendo pontes inúteis, levantando estádios nababescos.
Noves fora o condenável vandalismo e a patifaria golpista e antipartidária que tentou se aproveitar das passeatas, os protestos da semana passada foram muito positivos, entre outras coisas, por fazer essa grita cotidiana tornar-se ensurdecedora para muitos. Os militantes dessa pós-política encurralaram nossos governantes para que esses passem efetivamente a nos considerar em suas planilhas, a considerar o trato transparente com o dinheiro público, a respeitar critérios republicanos etc. E agora, sim: “doa a quem doer!”. Do contrário, a tendência é que turistas e demais convidados de tais megaeventos continuem a ser recebidos nesses termos surreais.
* Texto publicado na página de Opinião do jornal O POVO - 24 de junho de 2013

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Dilma e Lula tiveram um filho rebelde?


Por Juan Arias

Ambos foram protagonistas de uma década de governo na que o Brasil se impôs como um país com vontade de mudança real

Dilma encontrou o ex-presidente Lula em São Paulo, após o estouro dos protestos na rua. Qualquer jornalista daria qualquer coisa por assistir o que os dois disseram nesse momento em que o país está em chamas. Ambos foram protagonistas de uma década de governo na que o Brasil se impôs como um país com vontade de mudança real, principalmente no âmbito social, como também no econômico.

O mundo acreditou no despertar do gigante americano, cada vez mais forte no continente e mais integrado na geopolítica mundial.

Até disseram, talvez com ênfase excessiva, que a história do Brasil se dividia em antes e depois de Lula e Dilma, o ex-torneiro sindicalista e a ex-guerrilheira que chegou à Presidência de mãos dadas ao primeiro governante operário deste país.

O Presidente Obama chegou a afirmar que Lula era o político "mais popular do mundo" e hoje em dia dizem que Dilma é a "segunda mulher mais poderosa do planeta".

A magia dos números levou para o mundo quantias invejáveis de progresso: 30 milhões de pobres sentando ao banquete da classe média, um país sem desemprego, um crescimento econômico sonhado na Europa; uma força de confiança mundial conseguiu para o Brasil a Copa do Mundo e as Olimpíadas.

Lula e Dilma eram como aqueles pais que se sentem orgulhosos de ver seus filhos saírem da penúria, colocarem a gravata para ingressar na universidade; levarem no bolso o celular e as chaves da moto, e até do carro.

Os filhos cresceram, conheceram mais coisas da vida e da política que os pais,utilizando muito melhor que eles os endiabrados labirintos da tecnologia da informação moderna.

E começaram a fazer perguntas aos pais. E ousaram até fazer perguntas escabrosas. E, o que foi ainda pior, até discordar deles. Inclusive chegaram ao ponto de reclamar aos pais do que ainda não tinham ganhado, ou porque o que tinham ganhado estava estragado, que o brinquedo não funcionava bem.

O pior de tudo foram as perguntas insolentes, como quase todas as que os filhos fazem aos pais quando crescem. Lula chegou a elogiar o sistema de saúde do Brasil, numa frase que hoje ele preferiria esquecer. Disse que tinha chegado "quase à perfeição", e acrescentou que "no Brasil até dava vontade de ficar doente para desfrutar de um hospital".

Os filhos um dia foram a esses hospitais e viram que era melhor estar saudáveis.

Dilma e Lula sentiram-se orgulhosos diante do mundo quando conquistaram para o país a Copa do Mundo e as Olimpíadas. E dedicaram milhares de milhões de dólares nos preparativos. E explicaram quanta beleza, alegria e turistas esses eventos iriam trazer ao Brasil.

E os filhos que subiam no ônibus, pagando caro, nas grandes cidades, sendo empurrados, alguns tentando entrar pelas janelas, eles com perigo de ser assaltados, elas de ser abusadas sexualmente; em vez de se alegrar com os estádios de primeiro mundo, ingratos, começaram a dizer: "Podemos abrir mão da Copa, mas não de transportes, escolas e hospitais dignos".

Todas essas coisas e muitas mais que apareciam nas manifestações e protestos na rua, algumas ameaçantes, como "vocês não nos representam", devem ter sido examinadas por Dilma e Lula, enquanto o dólar estava subindo e a Bolsa descendo.

Alguns filhos foram tão desagradecidos que pediram na Internet que Dilma saia da Presidência. Até a manhã de hoje mais de 140.000 pessoas já tinham assinado. É como se o filho, que já cresceu e se rebelou, pedisse que os pais fossem embora de casa. Injusto.

Não sei se vamos saber o que a Dilma e o Lula decidiram fazer ou dizer ao filho que se rebelou e prefere morar na pós-política. Ao filho que para protestar e atuar na sociedade não precisa mais aderir o sindicato ou o partido político do pai, ou ir de mãos dadas com ele para se manifestar pelas ruas em contra do patrão.

Ele sabe ir só e livremente. "Não precisamos pertencer a nenhum partido para estar indignados e protestar", podia-se ler esta manhã no facebook.

Em São Paulo, um sondeio revelou que 80% das 65.000 pessoas que saíram às ruas não pertencem a nenhum partido político.

Dilma disse hoje: " O meu governo está atento às vozes que pedem mudanças, está comprometido com a justiça social". E acresceu: "Essas vozes precisam ser ouvidas".

Também os pais quando conversam sobre os filhos que se rebelam e protestam, costumam dizer "Precisamos ouvi-los".

Sem dúvida, Dilma e Lula terão saído do encontro como essa vontade de escutar, de dialogar com os filhos rebeldes. O temor agora é que tal vez esses filhos já não queiram falar com eles. Pode ser que prefiram falar por si mesmos.

É um momento difícil e, ao mesmo tempo, apaixonante, o que está vivendo o Brasil. Os aspectos positivos do protesto, que já abraçam quase o país inteiro, poderiam servir de exemplo aos países irmãos do continente.

Somente as águas paradas que apodrecem. Só nas famílias onde parece viver a calmaria costumam surgir as maiores tragédias.

É melhor gritar do que aguentar a raiva, dizem os psicólogos.

As biografias de Lula e Dilma estão cheias de gritos e raivas.

Ninguém melhor do que eles para dirigir esses filhos rebeldes para um crescimento político que conte com que hoje em dia o mundo é outro, diferente do que eles viveram; que a política não pode se fazer como fizeram eles, mesmo que fosse à base de suor e sangue, e que os filhos querem ser mais protagonistas do que nasce do que enterradores do que já morreu.

E quanto à pretensão perigosa de algumas pessoas de botar os pais para fora de casa, por muito que a política mudasse, em democracia existe somente uma maneira legítima de fazer isso: o voto livre.

O ano próximo os brasileiros irão às urnas.

No segredo do voto poderão resolver os seus conflitos. E que sejam também eles leais com a ética política.

Ontem alguém fez essa pergunta escabrosa, desta vez aos manifestantes: "Por que os que gritam contra os políticos corruptos acabam por votar neles nas urnas?"

Seria um ótimo cartaz para os próximos protestos nas ruas.

terça-feira, 11 de junho de 2013

A revolta dos crocs


Nota divulgada pelo Governo do Estado para a imprensa - em que sugere que milícias querem se infiltrar na manifestação do próximo dia 13 - acaba de potencializar a marmota que é esse movimento "Fortaleza Apavorada". Algo que tinha tudo para ser mais uma dessas pífias manifestações contra a violência (e nunca a favor da justiça social) - ou, como diz brilhantemente um amigo, a "revolta dos crocs" - acaba de ganhar efetividade. 
Já é um movimento vitorioso, porque obrigou o Governo a fazer seu principal pronunciamento sobre a (in)segurança pública até agora - na nota, o Palácio da Abolição admite que o crime chegou a níveis "intoleráveis" em Fortaleza. E tudo, mais uma vez, pela inaptidão da atual gestão para o diálogo; sem falar, obviamente, na incompetência para lidar com a questão da violência urbana. Qualquer crítica, qualquer contraponto, são sempre vistos pelo Governo como movimentos conspiratórios, articulações políticas sub-reptícias, bandeiras partidarizadas. É a crítica "ad hominem" levada ao paroxismo da paranoia. 
A nota , obtusa, tem o claro objetivo de apavorar ainda mais os "apavorados". A estratégia palaciana para esvaziar a passeata talvez dê certo. Talvez não. A nota pode ter despertado o interesse de quem, até então, estava dando de ombros para o tal movimento. Vejamos... 

Nós que nos amávamos tanto (e amávamos tanto o jornalismo...)



Nós jornalistas vivemos uma terrível esquizofrenia. Teoricamente, por termos curso superior, nos vemos como profissionais liberais; mas, ao contrário de dentistas, arquitetos, advogados, etc, somos obrigados a alienar nossa força de trabalho porque não podemos, afinal de contas, montar um jornal, uma TV, uma rádio para cada um de nós. Por outro lado, as promessas da internet ainda não vingaram como realidade pecuniária. O que temos, por enquanto, é apenas uma farra libertária, que é ótima como (um início de) democratização da informação, mas que ainda não se consolidou como mercado de trabalho.
Pelo menos toda uma geração ainda nos separa de uma nova realidade de produção da informação (independente, liberal e com rendimentos decentes) no mundo digital. Até lá, na internet, com raríssimas exceções, reinará um quase diletantismo. Por ora, seguiremos como funcionários, peões com jornadas de trabalho extenuantes e sob imensa pressão. Seguiremos como trabalhadores de baixa renda, numa profissão que passa por uma histórica crise estrutural; nosso desemprego é estrutural. Há os que se acham algo além por conviverem de perto com os poderosos da política e/ou os donos do poder econômico. São cínicos ou ingênuos. Ou tudo isso junto. Ou coisa pior...
O debate sobre o diploma me parece um falso debate. De um lado, há os que querem nivelar por baixo a discussão e acabar com sua obrigatoriedade - são os que defendem o bundalelê no mercado. Pois penso que devemos nivelar essa discussão por cima e fazer do jornalismo um curso de pós-graduação. Quer ser jornalista?! Forme-se em direito ou economia ou história ou computação ou engenharia ou o que for e faça uma especialização em jornalismo. Isso iria elevar decisivamente o nível da nossa produção e criar uma outra realidade de mercado.
A nosso favor, por enquanto, ainda temos o fato de que somos fundamentais para a democracia e para o chamado estado de direito. Somos fundamentais para restituir ao debate público o espírito crítico. Somos imprescindíveis para dar voz a quem não consegue se manifestar publicamente. Ainda somos... Entretanto, somos todos, indistintamente, proletários. E isso parece nos causar um desconforto, parece criar um tabu, ensejar um recalque que embaça nossa capacidade de articulação e de mobilização. Some-se a isso, como é o caso do Ceará, um sindicalismo pífio e personalista e, voilà, eis o nosso dia-a-dia.
Enfim, sou apaixonado pelo que faço e tenho sincero orgulho de ser jornalista. Seguirei com meu ofício por acreditar realmente nessa missão. Mas talvez daqui a algum tempo tenha de procurar outra profissão para pagar minhas contas e, quem sabe, também custear meu ofício. Como o advogado que é apaixonado pela marcenaria; ou o engenheiro que também é cozinheiro; ou o médico que também é poeta.
Poderei me reinventar (creio que terei de me reinventar) e passar a ser outra coisa, mas seguirei sendo jornalista. Isso me cria enormes problemas e dificuldades, mas me dá uma imensa alegria.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Poemetes Araújos XXI

Um pesadelo
noite adentro;
um grito rompe
a vigília:
risco n'água
nesse Atlântico
imemorial
de solidão.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Spike Jones, um gênio "criminosamente" gaiato


Pelo menos vinte anos antes de, por aqui, os Mutantes satirizarem impiedosamente o clássico seresteiro "Chão de Estrelas", Spike Jones (1911-1965) já era craque na arte de caricaturizar e desconstruir "standards" do cancioneiro norte-americano. Sua orquestra reunia alguns dos melhores músicos de seu tempo e marcou época no teatro, na televisão e no mercado fonográfico - onde produzia suas marmotas na toda-poderosa e pudica RCA Victor. "O fato de a Victor lhe dar carta branca era uma homenagem à sua formidável musicalidade, mesmo que usada para fins criminosamente gaiatos", comenta Ruy Castro em seu Tempestade Ritmos. Um fenômeno que anteciparia em algumas décadas outros geniais desatinos musicais; inclusive por essas latitudes, que veriam nascer zorras como Joelho de Porco, Premeditando o Breque, Falcão e Língua de Trapo.

Poemetes Araújos XX



O que pesa
mais
no alto? Em
pleno vôo,
a dúvida:
a leveza obtusa
dessas toneladas
de aço
com asas? Ou,
solitária,
minha falta
de fé?

quinta-feira, 23 de maio de 2013

O amor segundo Haneke




Apenas agora assisti ao badalado e controverso Amor, de Michael Haneke. Um dos filmes mais humanos e delicados de que tenho notícia. Um libelo sobre o tema que lhe dá nome: amor romântico, mas não afetado; intenso mas gentilmente sóbrio; extraordinário mas arraigadamente cotidiano. O profundo silêncio de sua narrativa me traduziu a calma e a naturalidade diante da vida a que os amantes são tão íntimos. Não é sobre amores de conveniência, mas sobre certa conveniência do amor – expresso em sua mágica renovação na insignificância da rotina. O amor de Haneke é a cumplicidade que atravessa horas de conversas, que traduz olhares, que compartilha secretamente dores, mas primordialmente – e preciosamente – divide alegrias. Não me pareceu um filme sobre eutanásia nem “contra” o amor, como alguns chegaram a escrever. Pelo contrário. O filme celebra a vida, através da relação apaixonada dos dois idosos protagonistas. Diante do ocaso físico de Emmanuele Riva, brilhante em sua atuação, o casal tenta seguir adiante com a normalidade de um cotidiano pontuado de pequenos gestos de amor. Aquém e além dele, há apenas vaidade, rancores, frustrações; há o mundo lá fora do qual os dois não querem notícia. E é quando a doença impede por definitivo qualquer troca, qualquer cumplicidade, qualquer olhar entre os dois – que seguiam amantes delicados mesmo nos momentos mais difíceis do entrecho médico -, que se revela a atitude final. Tudo servirá como rito de passagem para as memórias que seguirão. Nada, a rigor, foi interrompido. O amor é medida certa; ele sabe de si e, em silêncio, sabe que restará.

L'État c'est moi!



Para o filósofo Claude Leforte, o Estado Democrático é sempre maior que o Estado de Direito. Ou seja, experimenta direitos que ainda não estão incorporados ao segundo. É, segundo ele, “o teatro da contestação cujo objeto não se reduz à conservação de um pacto tacitamente estabelecido, mas que se forma a partir de focos que o poder não pode dominar inteiramente”. Vladimir Safatle, em seu inquietante A esquerda que não teme dizer seu nome, faz uma leitura muito produtiva sobre o assunto. Trata-se, portanto, de uma noção a ser sempre tensionada na relação que promove entre a Justiça e o Direito. E, longe de solapar a democracia, lembra Safatle, é algo que a funda e fortalece.

Nos termos correntes da política local, nossa desventura é que esse tensionamento, essa superação, se dá em negativo. Não pelas vias da soberania popular; mas na esteira de comezinhas conveniências pessoais, pelo devir de um projeto de poder e, pior, pela afetação de certos homens públicos. O caso do ex- governador Ciro Gomes, que ocupa uma surreal posição institucional dentro (ou fora?) da Secretaria de Segurança, é por demais emblemático. A (pouco clara) movimentação de Ciro Gomes na Instituição e suas cornetadas públicas são típicas de quem vê a legalidade como algo a posteriori, não a priori. Nessa posição, ele não age a partir dos limites institucionais; mas vai de encontro aos mesmos, redesenhando e distorcendo esses preceitos ao sabor de valores nada republicanos.  

À luz do organograma do Governo, a atuação de Ciro é tão ilegítima quanto serão criminosas, uma vez comprovadas, as supostas milícias que ora denuncia (conseguirá efetivamente provar algo sobre o assunto?). O ex-deputado age como alguém que não suporta a dialética da política e que prefere trocar a palavra política pela palavra polícia (entendida aqui como violência simbólica/estatal). Entre o Estado Democrático e o Estado de Direito, Ciro parece optar pelo Estado de Luis XIV, aquele do "L'État c'est moi". 

quinta-feira, 28 de março de 2013

Jazz cinco estrelas


Mais do que por sua virtuose, Miles Davis consagrou-se no mundo do jazz por sua atinada capacidade de estimular e agenciar talentos. Em mais de 50 anos de carreira, ele foi um exímio “olheiro” musical, que soube escolher seus pares e pupilos para, a partir deles, reinventar algumas vezes a música ao longo do século XX.

Sua trajetória pode ser contada em capítulos que dão conta dos chamados “grandes quintetos” que teve a seu lado. O primeiro deles, nos anos 50, com quem gravou obras-primas como Kind of Blue (1959) – muito provavelmente o melhor disco de jazz de todos os tempos. O segundo, nos anos 60, com quem Miles viajou o mundo e alcançou um sucesso comercial até então inédito para os padrões do jazz. E, por fim, o terceiro, a chamada “lost band”, já na virada dos anos 60 para os 70, com a qual Miles levou o jazz ao desbunde e à lisergia do fusion.

Em todos eles, Davis aparece liderando um elenco de estrelas da música que, consolidadas as carreiras individuais e as mitologias subsequentes, é difícil de imaginar que um dia tocaram todas juntas. John Coltrane, Red Garland, Paul Chambers, and Philly Joe Jones, no primeiro quinteto (que, em seguida, teria Cannonball Adderley, Bill Evans e Jimmy Cobb na formação em sexteto); Wayne Shorter, Ron Carter, Tony Williams e Herbie Hancock, no segundo; e Shorter, Chick Corea, Dave Holland e Jack DeJohnette, no terceiro.

Além do time estelar, outro fato é comum a quase todas essas formações: a vida efêmera. Embora tenham escrito páginas eternas da música instrumental, raramente os “ensambles” de Miles duravam mais de um ano. Em geral, bem menos que isso. Exceção feita apenas ao segundo quinteto, cujos quatro anos de existência soaram quase como uma eternidade na carreira do trompetista.

É sobre a turnê europeia de 1967 desse segundo “grande quinteto” que se debruça o primeiro volume de Bootleg Series, lançado em 2011 no exterior e que agora ganha edição nacional. A caixa, charmosa e com um belo material iconográfico, reúne três CDs e um DVD que registram apresentações do grupo em teatros e festivais na Bélgica, Dinamarca, França, Suécia e Alemanha.

Versões
À época, o jazz começava a experimentar certa decadência comercial nos Estados Unidos e o mercado europeu de shows e gravações tornou-se o salva-vidas de muitos músicos. Miles, que não era besta nem nada, ao mesmo tempo em que era sensível aos talentos que lhe brotavam ao redor, comercialmente também tinha um radar afiado – daí seus giros cada vez mais rotineiros pelo Velho Continente e seu diálogo com outras vertentes musicais, como o funk e o rock.

As gravações de Bootleg Series são todas inéditas e foram obtidas a partir de registros de TVs e de rádios europeias. O repertório é formado por alguns poucos “standards”, mas sobretudo por composições que foram (ou seriam) apresentadas nos discos de estúdio do quinteto – álbuns como E.S.P. (1965), Sorcerer (1967) e Nefertiti (1968) -, uma das fases mais brilhantes da discografia de Miles.

A maior parte das músicas se repete ao longo dos shows, a exemplo de “Agitation”, que abre quatro das cinco apresentações da caixa. Cada execução, entretanto, conduzida pela criatividade dos solistas, é carregada de sentidos e destinos particulares.

“Eu nunca me preocupei muito sobre por que ou quando Miles começava a fazer algo em particular; mas penso que ele tinha um acurado senso do que funcionaria na frente de determinada audiência”, afirma Herbie Hancock, no encarte.

A frase seria em parte desmentida pelo próprio Miles, em declaração também reproduzida no encarte: “Eu nunca penso sobre a audiência. Eu só penso sobre a banda. E se a banda está bem, eu sei que a audiência está satisfeita”.

Seja como for, o fato é que Miles, no centro do encontro, proporcionou um dos grandes momentos da história do jazz. Coisa de um genial “treinador” que, no mais das vezes, nem precisou entrar em campo para fazer seu time jogar um partidaço.

* Matéria publicada no caderno Vida & Arte (jornal O POVO), edição de 28.03.2013