quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Keith Jarrett e Brad Mehldau: a arte do improviso


Nada mais conservador e, ao mesmo tempo, nada mais revolucionário do que um piano trio de jazz. Conservador pela profusão de formações do tipo ao longo da história e por uma certa redundância de abordagens e de repertório – resultando no mais das vezes apenas num piano com acompanhamento. E revolucionário pelos pontos fora da curva dessa longeva e, por vezes, fadigada tradição musical: a linhagem que teve em Bill Evans um de seus expoentes máximos e que, em nossos dias, coloca em perspectiva – e também em certo antagonismo – os trios de Keith Jarrett e Brad Mehldau. Em discos recentemente lançados na praça, os dois afirmam suas conexões e seus distanciamentos.
O primeiro é Somewhere, do trio de Jarrett, que se acompanha dos veteranos Gary Peacock (baixo) e Jack DeJohnete (bateria). O álbum foi gravado durante um show em 2009 em Lucerne na Suíça e só agora chega ao público pelo selo ECM. Registro pontuado por certas precariedades no som, o disco quase não é lançado por diferenças de pontos de vista entre os músicos. Enquanto Peacock teve uma noite infernal em termos da qualidade do áudio, e custou a autorizar o lançamento do CD; Jarrett saiu em defesa da gravação: “Eu gosto das gravações mais cruas. Eu gosto do jeito que elas me são entregues na noite em que acontecem. Eu quero que as imperfeições permaneçam porque, pra falar a verdade, o jeito que eu toco em certo se deve ao local”.
O disco celebra os 30 anos do encontro entre os três para uma série de gravações em Nova York que resultaram nos álbuns antológicos da série Standards, que reposicionou a carreira de Jarrett – à época refém de seus concertos solo, marcados pelo improviso pleno -; e iniciou a exitosa carreira do trio, para muitos a maior formação do gênero em atividade. Através de dezenas de álbuns gravados ao longo desse período, a formação de Jarrett tornou-se célebre por conseguir transcender as versões originais das canções que executam, suspendendo o ouvinte numa luminosa atmosfera de liberdade e inventividade.
Em Somewhere, o trio nos traz novas e corajosas versões para clássicos do cancioneiro norte-americano como “Stars fell on Alabama”, “Between the devil and the deep blue sea”, “I thought about you” e a arrebatadora “Tonight”, poema musical de Leonard Bernstein. Essa permanente reinvenção faz a diferença entre o clichê e a genialidade. Para Jarrett, e ele diz isso em várias entrevistas, os “standards” devem ser levados a sério e tem de ser lidos sempre de um ponto de vista radical de improvisação. Daí a nova carga de emoções que pulsam de cada música (ou de cada versão) e, tem sido assim por três décadas, a fascinante capacidade de comunicação entre os músicos e entre esses e o público.

Brad Mehldau
Esse compromisso, esse ir além do lugar-comum e essa fluente inspiração que se manifesta através do improviso são características comuns ao trio de Jarrett e ao trio de Mehldau, que também está com novo disco na praça: Where do you start, lançado pela Nonesuch. Mas ao contrário de Jarrett, o trio de Mehldau explora outros tipos de cancioneiro, incluindo alguns extratos de música pop, e também traz uma abordagem mais cerebral para novos arranjos. “Bom, toda a gente me fala de Keith Jarrett. Eu não sou Keith Jarrett. Ele é um grande músico e eu ouvi muito sua música quando era criança. Mas a diferença entre a música de Jarrett e a minha parece-me ser basicamente de que o trio Standards faz um ‘reexame’ dos clássicos, enquanto o meu trio trabalha quase apenas sobre material novo”, disse Mehldau em uma de suas entrevistas.
Em Where do you start, Mehldau segue com sua fórmula. Ao lado de Jeff Ballard (bateria) e Larry Grenadier (baixo), parceiros de mais de uma década de trabalho, rearranja e grava, a seu modo, dez composições de outros autores – e diversas épocas e locais. Entre eles, Elvis Costello (“Baby plays around”), o mitológico trumpetista Clifford Brown (“Brownie speaks”), o jovem Sufjan Stevens (“Holland”) e os brasileiros Chico Buarque (“Samba e amor”) e Toninho Horta (“Aquelas coisas todas”). E também traz uma nova composição sua, “Jam”.
Do alto de seus quase 70 anos, Jarrett, que tem, de certa forma, uma fama parecida à intolerância e às esquisitices de João Gilberto, já soltou alfinetadas públicas a Brad. Incluindo um comentário de que sua música (dele, Mehldau) não tinha alma, não tinha coração. O exagero do comentário, que trai certo recalque do veterano Jarrett, mostra o quanto a semelhança entre os dois músicos (no palco, gravações e também no imaginário do público) parece incomodá-lo.
Noves fora a fogueira de vaidade, o fato é que os dois seguem atualizando uma tradição de gênios do improviso que remonta a Bach, Beethoven e Mozart. “Bach era genial improvisando ao órgão e em qualquer instrumento de teclado; Beethoven reclamava que via publicados nas semanas seguintes seus improvisos que ouvidos ladrões capturavam em suas janelas; e Mozart era o caso à parte, a ponto de escrever as partes de orquestra, mas deixar em branco a parte solista num concerto de piano que estrearia, improvisando diante do público. É preciso derrubar de uma vez por todas o preconceito de que música boa tem que ser música escrita”, defende o crítico João Marcos Coelho.

Abaixo, uma das faixas do novo disco de Mehldau e o trio de Jarrett interpretando "I thought about you" durante show em Tokyo, em 1993.


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