A leitura que se seguiu, então, foi duplamente avassaladora: havia o afã em logo me inteirar da obra daquele gigante ao qual nunca creditara tanta importância; e havia também o prazer da leitura em si, motivado pela clareza e pelo vigor das análises de Lúcio. Entre textos sobre jazz, choro e, principalmente, samba, acumulados caudalosamente ao longo de mais de três décadas na imprensa carioca, Rangel foi um dos primeiros sistematizadores da nossa crítica no âmbito da música popular.
Inicialmente, com sua pioneira coluna de música popular, publicada entre 1945 e 1947 no suplemento literário de O Jornal. Em seguida, com a sua Revista de Música Popular, lançada em 1954 com Pixinguinha na capa de estréia e um time de colaboradores em que despontavam gente como Mário de Andrade, Orestes Barbosa, Bororó, Vinícius, Rubem Braga, Di Cavalcanti, Sérgio Porto, Almirante, Millôr Fernandes, Paulo Mendes Campos, Thomaz Santa Rosa, Haroldo Barbosa, Guerra Peixe e Marques Rebelo. A publicação durou pouco mais de dois anos e, depois de virar relíquia de colecionadores, foi resgatada numa recente edição fac-similar patrocinada pela Funarte e produzida pela editora Bem-te-vi.
Não bastasse sua trajetória de estudioso, divulgador e crítico, Rangel, que também era boêmio peso-pesado, também soube estar nos lugares certos nas horas certas, tornando-se protagonista da história de nossa música. Para resumir essa sua persona, basta dizer que foi ele quem apresentou Vinícius de Moraes a Tom Jobim, num distante 1956. Ao entrar num bar no Centro do Rio e avistar Lúcio, o poetinha lhe disse que precisava urgentemente de um novo parceiro musical para a ópera popular Orfeu da Conceição. Por problemas de saúde, Vadico (parceiro de Noel) não poderia assumir a tarefa. Incontinente, Lúcio indicou um jovem músico que tomava um chope a três mesas de onde eles conversavam. Tom Jobim logo aceitou o convite e todo sabemos no que deu.
Como não poderia deixar de ser, as análises de Lúcio não são consensuais. A posteridade tratou de lhe desmentir em uma série de posturas. Como no caso de sua pueril resistência ao jazz feito por brancos (desnecessário falar de Horace Silver, Chet Baker, Bill Evans, Stan Getz, entre muitos outros). Ou de sua birra em relação à Bossa Nova - apesar do respeito com que tratava a música de João Gilberto, Tom Jobim e Carlos Lyra. Em algumas de suas teses, Lúcio voltou atrás, como no caso de suas críticas a Carmen Miranda (a quem chamava de "baiana portuguesa de Hollywood" e com quem se reconciliaria) ou mesmo de sua resistência a Frank Sinatra (em quem, a princípio, não via mais que um "intérprete de enfadonhas baladas e romances") populares"). Mas, em geral, seguiu defendendo suas posições até o fim da vida. Como no caso de sua reticência em relação a Maysa, que, em sua ótica de crítico tenaz do samba-canção, nunca deixou de ser a personificação da "incompreensão total da verdadeira música brasileira".
Exageros à parte, um episódio mostra exatamente ao lado de quem Rangel esteve - ou melhor, quem esteve ao seu lado - na história de nossa cultura. No início de 1959, depois de ser violentamente agredido pelo violonista Fafá Lemos, que andava enfurecido com as críticas a seu respeito no Última hora, Lúcio recebeu 106 mensagens de solidariedade assinadas por celebridades de todas as áreas. De Pixinguinha a Carlos Drummond de Andrade, de Ary Barroso a Rubem Braga, de Paulo Mendes Campos a Ismael Silva. Ao lado de Fafá, ficaram apenas os colunistas sociais Ibrahim Sued (!) e Chuck (!!).
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