segunda-feira, 27 de abril de 2009

Sant´anna e os neo-sofistas da arte


O jornal O POVO publicou hoje uma interessante entrevista com o escritor e teórico Affonso Romano de Sant´anna, em que ele reivindica um novo olhar sobre a crítica e sobre a produção artística contemporânea, profundamente marcada, segundo ele, pela falta de princípios éticos e pela crença afetada no discurso daqueles a quem chama de neo-sofistas. Abaixo, dois trechos da entrevista.

"Existe em relação à arte contemporânea, de hoje em dia, uma desestabilização total. Ninguém mais sabe o que é arte. Não se pode fazer uma discussão sobre a arte, nem sobre ideologia em que nós estamos metidos, sem uma perspectiva epistemológica. A palavra é um pouco esquisita para muita gente. Epistemologia é um ramo da Filosofia que ensina as pessoas a questionarem o próprio conhecimento. Eu devo me perguntar simplesmente quando eu afirmo conhecer alguma coisa a partir de que perspectiva eu estou fazendo as minhas afirmativas. Para se estudar arte - na cultura chamada pós-moderna -, temos que entender uma série de pressupostos. Nesse livro e nessa palestra, eu toco na questão de paradigmas. Até o princípio do século XX, havia certas certezas, certos paradigmas. A partir da modernidade, da teoria da relatividade, do Einstein, do teatro do absurdo, de Beckett e Ionesco, a partir dos questionamentos de Nietzsche, depois Focault e Derrida, os paradigmas entraram em colapsos. Alguns artistas e muita0s pessoas, ao invés de analisarem essas mudanças de paradigma, mergulham nisso de cabeça e irracionalmente. Acabam decretando que não existem princípios, não existe verdade, não existe sistema. Qualquer coisa é arte. Isso é um dos grandes equívocos do século XX. Meu esforço, nesse livro e nos dois livros anteriores, Desconstruir Duchamp e A cegueira e o saber, é questionar uma série de práticas e teorias do século XX. Estou questionando o relativismo de Duchamp, de Roland Barthes, de Derrida, de Focault e de uma série de outros pensadores, que fizeram a cabeça da minha geração, a partir dos anos 70".

"A crítica está muito mal. Está perdida. O fenômeno artístico - ou que pretende ser fenômeno artístico - que é exposto nas bienais ou em muitas galerias é um produto que transcende o espaço da arte. Só pode ser bem compreendido através da Antropologia, da Psicanálise, da Linguística, da Sociologia, dos estudos de Marketing e, sobretudo, da Filosofia. Por exemplo, um dos itens fundamentais da Filosofia que tem tudo a ver com a arte de hoje se chama “o paradoxo do mentiroso”. É um tópico através do qual se tenta entender por meio da verdade e da mentira. Ou seja, quando um mentiroso fala a verdade, nós devemos acreditar nele ou ele está mentindo? Ou seja, o mentiroso joga um jogo habilidoso e confunde o sentido do certo e do errado. A arte contemporânea se rejubila de jogar com o falso e o verdadeiro, a cópia e o original, o original e a reprodução. Isso tem tudo a ver com uma questão não-estética, mas filosófica. Da mesma maneira, nesse livro, eu faço uma análise exaustiva do ponto de vista linguístico, analisando os textos de grandes críticos, como Octavio Paz, Roland Barthes, Derrida e outros. São pessoas que se apaixonaram tanto pela linguagem que acham que a linguagem substitui o real. Por isso, eu os considero sofistas contemporâneos. Sofistas acham que o conceito é que gera a realidade. Com efeito, a chamada arte do século XX se baseia, em grande parte, na arte conceitual. Onde o conceito é mais importante que a realização".

quinta-feira, 23 de abril de 2009

A biblioteca mundial


Um dos textos mais famosos de Jorge Luis Borges é Biblioteca de Babel, um conto em que o escritor argentino propõe ao leitor uma biblioteca infinita, matriz da própria realidade. Ou das realidades, dependendo do modo como o leitor articula suas leituras dentro do acervo disponível naquele espaço. Como o mundo é uma construção que se opera no âmbito da linguagem, a partir da leitura de Borges podemos comparar a realidade a uma grande biblioteca cheia de infinitos textos e infinitas possibilidades de articulação desses textos. 
Lembrei do texto de Borges ao saber do lançamento da Biblioteca Digital Mundial (ou World Digital Library, da sigla WDL), uma iniciativa da Unesco que vai permitir ao internauta o acesso gratuito ao acervo de bibliotecas e instituições culturais de inúmeros países. Entre eles, o Brasil. A WDL foi lançada na última terça-feira e é formada dezenas de milhares de livros, imagens, manuscritos, mapas, filmes e gravações disponíveis em bibliotecas de todo o mundo. Esse acervo global  foi digitalizado pela Unesco, traduzido para diversas línguas e reunido no site da Biblioteca Digital (www.wdl.org).
Entre as preciosidades disponíveis no site, estão tesouros como O Conde de Genji, romance japonês datado do século XI e considerado um dos mais antigos do mundo; o primeiro mapa que menciona a América, uma obra datada de 1507 produzida pelo frei alemão Martin Waldseemueller; e o maior manuscrito medieval do mundo, conhecido como a Bíblia do Diabo, que pertence à Biblioteca Real de Estocolmo, na Suécia. 
O projeto contou com a colaboração de 32 instituições, de países como Brasil, China, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, México, Rússia, Arábia Saudita, Egito, Uganda, Israel e Japão. O
lançamento do site será acompanhado de uma campanha para conseguir aumentar o número de países com instituições parceiras para 60 até o final do ano. "As instituições continuam proprietárias de seu conteúdo cultural. O fato de ele estar no site da Unesco não impede que seja proposto também a outras bibliotecas", explicou Abdelaziz Abid, coordenador do projeto.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Sertão do dia


Pelo sertão não se tem como
não se viver sempre enlutado;
lá o luto não é de vestir, 
é de nascer com, luto nato. 

Sobre de dentro, tinge a pele
de um fosco fulo: é quase raça;
luto levado toda a vida
e que a vida empoeira e desgasta.

E mesmo o urubu que ali exerce,
negro tão puro noutras praças,
quando no Sertão usa a batina
negra-fouveiro, pardavasca.

João Cabral de Melo Neto, O Luto no Sertão.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Mariana Aydar: ou "Vou deixar a resenha pra lá"


Nos últimos meses, antes de encarar a tela em branco para escrever uma resenha, tenho procurado ouvir um disco novo repetidas vezes até que ele decante seus sentidos, suas entrelinhas, suas paixões. Na época em que trabalhava em redação - todos os jornalistas passam por isso - esse tempo nem sempre me era permitido (na verdade, quase nunca) e os textos saíam de atropelo, dando vazão a uma sensibilidade regida pelo relógio. Não raro, carregava nos esquematismos e escapavam-me as delicadezas de determinado trabalho. Só percebia certas relações quando já não mais podia estabelecê-las de público, já que um outro disco (ou livro, ou filme, etc) se impunha com a urgência de um novo comentário. E assim por diante. 
Aqui no Talabarte, tenho evitado resenhar discos novíssimos na tentativa de exercer um tempo diferente de apreciação. Afinal, pauteiro, editor e repórter (que maravilha esse negócio de blog, não?), optei por uma agenda de espontaneidades, pessoal, intransferível e alheia à marcação frenética da indústria, do catálogo das gravadoras, das gôndolas das lojas. 
Bom, mas pra que, afinal, todo esse nariz de cêra?
Porque, mal adotei essa nova "política editorial", fui surpreendido pelo novo disco de Mariana Aydar, Peixes, pássaros, pessoas. Terminei a primeira a audição e, pimba!, rasguei minha cartilha. Tive vontade de gritar ao mundo: QUE DISCO BOM DA PORRA! QUE CANTORA! ESCUTEM! ESCUTEM! Da maneira mais afetada possível. E assim vim correndo ao computador para dizer apenas isso. Escutem! Para aquém e além das fronteiras fingidas do samba, da MPB, do pop, escutem. Para aquém e além da produção, que, ao optar por sonoridades tão velhas, não poderia ter soado mais moderna; ou, ao optar por um clima absolutamente contemporâneo, não poderia ter dialogado de maneira mais inteligente e sestrosa com a tradição, escutem. Escutem! Vou deixar a resenha pra lá. 
Mariana Aydar, o nome da moça.
E, além de tudo, insuportavelmente linda! 

quarta-feira, 15 de abril de 2009

O bombardino contra a lei da gravidade

Eufônio. Ou bombardino. Uma espécie de ovelha negra da família das tubas. Esse é o instrumento com que um jovem paulista chamado Rafael Mendes, de 23 anos, vem surpreendendo o mundo da música erudita. No fim do ano passado, ele venceu a finalíssima da quarta temporada do Prelúdio, festival de música erudita promovido pela TV Cultura de São Paulo. Muito do assombro com as performances de Rafael se deve ao fato de que o eufônio geralmente é utilizado na pontuação harmônica da música ou em raras linhas melódicas. Nunca nos solos. Pois é nos solos que Rafael, do alto de seus 110 Kg e empunhando o pesado bombardino, vem desafiando a lei da gravidade.
A duas semanas da final do concurso, Rafael mudou seu repertório. Trocou Harlequin, do britânico Philip Sparke, um célebre eufonista contemporâneo; por Variações sobre o Carnaval de Veneza, do francês Jean-Baptiste Arban (1825-1889), uma obra virtuosística escrita para trompete e que custa pelo menos dois meses de estudo a um solista erudito profissional. Rafael, dono de uma virtuose impressionante e de uma respiração precisa, estudou a peça em quinze dias e deixou toda a platéia a dois palmos do chão por inacreditáveis sete minutos e meio(!).
O vídeo da final do concurso segue abaixo.

A retomada da aura da obra musical


Muito se tem discutido sobre o futuro da música: o destino do CD, os novos suportes digitais, a queda na venda de discos, os prejuízos causados pela pirataria e a hipocrisia das grandes gravadoras diante do assunto, etc. Essa discussão, no entanto, me parece muito mais um debate sobre o futuro dos suportes da música "pop" do que uma exegese sobre os (des)caminhos da criação musical e sua relação com o público. A música de autor, com o perdão do trocadilho com a expressão "cinema de autor", também tem sofrido com essas questões. No entanto, depois das previsões mais alarmantes, parece-me que voltou a ser embalada por ventos bem mais estimulantes.

Uma pesquisa recente feita pela consultoria Nielsensoudscan revela que, em 1990, os discos da chamada música erudita representavam apenas 3,1% do total de discos vendidos, porcentagem que caiu para 2,4% em 2006. No entanto, um ano antes, em 2005, a música erudita respondia por 12% dos downloads realizados. Ano passado, esse valor subiu para 15%. Esse crescimento foi embalado por iniciativas como a da BBC de Londres, que, durante duas semanas de 2007, disponibilizou para download as nove sinfonias de Beethoven. Resultado: 1,4 milhão de internautas baixaram os arquivos.

Outro número interessante é o da violinista Janine Jansen, que teve 75% das vendas de seu novo disco - dedicado às célebres Quatro Estações, de Vivaldi - realizadas através de downloads. Ou seja, estamos diante de números surpreendentes. Tanto mais se considerarmos que alguns "especialistas" da área já haviam vaticinado a morte da música clássica. Junto com esses números animadores, no entanto, há novidades também na outra ponta do processo. Paradoxalmente, o maior beneficiado com o processo de diluição das alternativas de consumo musical colocado pela Internet - que acarretou a queda vertiginosa na venda de disco e um desespero generalizado nos CEOs do mercado fonográfico - foi o músico, que teve de retornar com mais intensidade lugar de origem: o palco, a performance. Ou alguém ainda acredita no modelo de consagração atrelado aos contratos milionários com as "majors" e à vitrine do disco e do rádio?

Vejam, por exemplo, esse trecho de um artigo escrito pelo crítico musical João Marcos Coelho e publicado no Estado de São Paulo do último domingo: "O avassalador balde de democracia da internet na produção e recepção de música transformou a derrocada anunciada da indústria num inesperado recomeço. Músicos e seu público estabelecem agora contato imediato. Um diálogo virtual que leva ao limite o qeu Walter Benjamin chamou lá atrás de perda da aura da obra de arte. Ele louvava a democratização do acesso à arte. Mas o fato é que as artes performáticas parecem ter recuperado ao menos parte de sua aura neste início de século XXI".

O texto foi escrito tomando como base a realidade da música erudita. Mas se aplica com muita tranquilidade ao novíssimo "mercado" de gêneros como o choro, o samba e o rock alternativo. Gêneros que, a rigor, nunca precisaram do grande mercado para sobreviver. "Durante meio século, músicos se esfalfavam para alcançar o status de gravar um disco. Hoje, ganham dinheiro na sua atividade-fim: em recitais e concertos. Ainda bem", completa Coelho. De fato, ainda bem.

terça-feira, 14 de abril de 2009

"Ingenuidade", por Clementina, Roberto e, agora, João Bosco e Caetano Veloso

João Bosco retomou a parceria com Aldir Blanc e está prestes a lançar um disco de inéditas com uma nova safra da dobradinha que escreveu algumas das páginas mais belas da música brasileira dos últimos 40 anos. O CD deverá sair no segundo semestre pelo selo MP,B e também traz uma nova fornada da parceria de Bosco com o filho Francisco e com o sambista Nei Lopes. Caetano Veloso está lançando hoje, oficialmente, seu novo CD, o aguardado Zii e Zie. OK? E o que tem a ver uma coisa com a outra? É que, entre os dois discos, há uma coincidência: a (re)gravação de "Ingenuidade", samba de Serafim Adriano gravado magistralmente por Clementina de Jesus em 1976 e por Roberto Ribeiro em 1979 (sei, sei, sou suspeito para falar...).
A letra, de uma simplicidade e de uma sinceridade tocantes, é uma das minhas preferidas no trabalho do Roberto: "Não / Eu não podia enganar-me assim / Com uma criança qualquer / Que veio ao mundo bem depois de mim / Eu não condeno o que ela fez / Só condeno a mim mesmo / Por ter me enganado outra vez (eu não) // Eu fiz o papel de um garotinho / Quando arranja a primeira namorada / Na ingenuidade, acredita em tudo / Porque do amor não entende nada / Esqueci que um dia machuquei meu coração / E levei muito tempo pra curar (tempo pra curar) / E fui tornar molhar meus olhos / Coisa que eu luto há muito tempo pra enxugar".
Aí eu faço meu desabafo. Há anos escuto esse samba nas boas rodas de samba da vida; mas só agora, anotem, a música vai ganhar o País. Antes tarde...

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Voragem

Segunda-feira em Fortaleza. Feriado para o Município. O sol pegou carona: chuva a manhã inteira. Mais ingrata que uma segunda-feira é uma segunda-feira que não se permite uma manhã de sol. "A folha branca é a tradução mais aproximada do nada", propunha Cabral de Melo Neto. Uma manhã chuvosa de segunda-feira é outra tradução possível. É o marco de uma realidade sem sentidos que volta a se impor. Abismo e queda. Declinando um ócio preguiçoso sobre o fastio dessa manhã, eu tento espiar de fora. E apelo novamente aos agrestes de Cabral: tanta lucidez dá vertigem, faz perder pé na realidade. Meio tonto, decido encarar a voragem. Chove chuva, chove sem parar. Que falta de sentido seria escutar um samba de Jorge Ben nessa segunda-feira. Nada mais dissonante aos tons monocórdicos de uma segunda-feira, chuvosa ainda por cima, do que o sol alentador do violão de Benjor.  Arquimedes às avessas, desejo encontrar não um ponto de apoio para mover a terra, mas algo que pegue essa segunda-feira em seu contrapé: parando o mundo e sua ciranda de inexistências. 

sexta-feira, 10 de abril de 2009

A histeria Rouanet


O texto mais importante sobre política cultural produzido no País nos últimos anos não é nenhum ensaio ou tratado sobre o tema, mas um pequeno post do escritor e jornalista Guilherme Scalzilli sobre a histeria que vem cercando as mudanças na Lei Rouanet gerenciadas pelo ministro Juca Ferreira (foto). Segue abaixo:

"Para quem já tentou conquistar patrocinadores e “produtores culturais”, é delicioso assistir à histeria com que parte deles recebeu as mudanças na Lei Rouanet. A discussão já se arrasta há meses, senão anos. Compunha os planos da gestão Gilberto Gil no Ministério da Cultura (a melhor da história republicana brasileira), mas o músico deixou a incumbência para seu sucessor, Juca Ferreira.
As reações contrárias à nova legislação de renúncia fiscal são marcadas por espírito corporativo e mesquinharia. “O dinheiro público é meu!”, parecem gritar, acusando o governo de dirigismo, estatismo e os cambau.
Dirigismo coisa nenhuma. O que essas posturas revelam é a arrogância de uma elite que não se conforma em perder as regalias recebidas nos nefastos anos FHC, quando um ministro da Cultura (Francisco Weffort) aparecia em ensaios da revista Caras, posando junto a fontes romanas.
Dirigismo é deixar a produção cultural brasileira nas mãos de um punhado de estafetas ineresseiros que despacham nos gabinetes das grandes companhias privadas. Dirigismo é prestigiar Ivete Sangalo, Cirque du Soleil e comédias de Daniel Filho em detrimento de milhares de artistas talentosos, miseráveis e ignorados neste país continental. Dirigismo (e muita cara-de-pau) é acusar de autoritária uma política cultural que foi endossada pelo voto popular e depois exaustivamente discutida.
As mudanças propostas possuem o objetivo não garantido de inserir um pouco de razoabilidade à lei Rouanet, antes que ela se transforme em mamilo para o enriquecimento de uma casta de espertalhões que todos no meio conhecem muito bem, mas que ninguém acusa porque, afinal, é ruim para os negócios. Do jeito que está, a renúncia fiscal virou uma atrocidade a ser extinta.
Curioso: nessas horas ninguém aparece defendendo a auto-regulação do mercado, a superioridade da “competência”, a representatividade social do entretenimento, etc."

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Tia Zulmira

Olhando nos olhos de Stalin e Trotski, Zulmira Ponte Preta fez a previsão: "Vocês são tão calhordas que vão acabar inimigos". As amizades influentes e o "rigor" da análise política são apenas dois entre os inúmeros predicados da tia de Stanislaw Ponte Preta, o personagem criado por Sérgio Porto que, de tão famoso em seus escritos, ofuscou seu próprio autor e acabou ganhando uma árvore genealógica. Numa das pontas dessa árvore, estava Zulmira, que também foi cozinheira da Coluna Prestes, musa de Noel Rosa e paquera de Charles Darwin, além de ter sido professora de literatura de "discípulos" que lhe veneravam; entre eles, Andrézinho, que era como se referia a André Gide.
Publicado originalmente em 1961, Tia Zulmira e Eu voltou às livrarias em edição da Agir, com direito a ilustrações e apresentação de Jaguar e prefácio do próprio Sérgio Porto, que, garante, não "suportava" uma leitura mais detida dos escritos de Stanislaw. Com o livro, avisa a editora, a Agir prossegue com a deliciosa reedição da obra integral desses "autores impagáveis", Stanislaw Ponte Preta e Sérgio Porto - "Não necessariamente nessa ordem". A leitura da obra de Stanislaw é, de certo modo, a releitura de uma época em que o Brasil sabia rir de seu próprio "festival de besteiras" e ainda era capaz de enxergar "o frondoso absurdo de sua própria realidade". Tanto que foi capaz de produzir "intelectuais" de finíssima cepa como Millôr Fernandes e o próprio Sérgio Porto.

Emoção rediviva


Mesmo tendo como pano de fundo a dureza dos anos de chumbo, os anos 70 viveram grandes shows que deram origem a grandes discos. As dobradinhas intercambiadas entre Chico, Caetano e Bethânia, por exemplo, renderam três ótimos LPs (Caetano e Chico, de 1972; Chico Buarque e Maria Bethânia Ao Vivo, de 1975; e Maria Bethânia e Caetano Veloso, de 1978). Outro desdobramento antológico entre show e disco foi o projeto O importante é que nossa emoção sobreviva, que reuniu, numa série de shows realizados no Rio e em São Paulo, Eduardo Gudin, Paulo César Pinheiro e Márcia. As apresentações renderam dois LPs (o primeiro, de 1975; e o segundo, resultado do sucesso do primeiro, de 1976), transformados em CD em 2002 numa edição da EMI que reunia os dois discos. Parceiros desde a adolescência, Gudin e Pinheiro estavam no auge de sua produção musical e contaram com a classe e a fibra da voz de Márcia para o show. No repertório, algumas intervenções poéticas de Pinheiro e uma ou outra composição de Guinga, Nelson Cavaquinho, Pixinguinha e Copinha. 
Em 1995, os três voltaram a se encontrar para celebrar os vinte anos do projeto. Mais uma série bem sucedida de shows e, por tabela, mais um disco indispensável: Tudo o que mais nos uniu, lançado no ano seguinte.


quinta-feira, 2 de abril de 2009

Tessitura do dia


"O processo todo da década de 60 acentuou o lugar original que a música popular vinha ocupando no Brasil, pela sua pertinência simultânea e contraditória a vários sistemas culturais. Meio e mensagem no Brasil, pela tessitura densa de suas ramificações e pela sua penetração social, a canção popular soletra em seu próprio corpo as linhas da cultura, numa rede complexa que envolve a tradição rural e a vanguarda, o erudito e o popular, o nacional e o estrangeiro, o artesanato e a indústria. (...) Em suma, não funciona dentro dos limites estritos de nenhum dos sistemas culturais existentes no Brasil, embora se deixe permear por eles". 

José Miguel Wisnik, em "Algumas questões de música e política no Brasil".

Por ser contra o diploma, sou a favor dele

O STF adiou a decisão sobre a obrigatoriedade do diploma de graduação em jornalismo para o exercício da profissão. Alguns analistas têm misturado as coisas e colocado a discussão sobre o tema no mesmo balaio da discussão sobre a lei de imprensa, uma das últimas heranças do regime militar em vigor no Brasil. Tratam a obrigatoriedade como um "entulho" autoritário que limitaria a liberdade de expressão no País. É, no mínimo, cínico e mal intencionado, tal argumento. 

Agora, é importante repensarmos o papel do diploma em jornalismo em outros termos. Ou em outro patamar já que, em geral, essa discussão tem sido nivelada por baixo. Pode parecer contraditório, mas não é: sou contra o formato atual da obrigatoriedade do diploma, mas também sou contra sua extinção nos termos colocados pelos interessados na questão, em especial os donos de jornais e revistas.

Acabar com o diploma, hoje, é atender os interesses de quem não está interessado em uma sociedade verdadeiramente republicana e democrática. É ir ao encontro dos interesses de quem não quer uma democracia efetivamente madura, plena de direitos à verdade e à privacidade dos cidadãos. No entanto, acredito que um novo formato, baseado em um curso de jornalismo em nível de pós-graduação - e não mais apenas como curso de graduação - possa determinar uma nova rota de exercício da atividade em nosso País. Ainda mais qualificado. Mas isso, por enquanto, até que o STF se manifeste, é uma outra conversa. 

Fico na torcida pela permanência do diploma - para que depois possamos pensar numa alternativa a ele.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Roberto e Alcione

Essa é pessoal e intransferível. O melhor cantor de samba de todos os tempos: Roberto Ribeiro. A melhor voz feminina do samba: Alcione. Não é a "maior" cantora porque, de uns vinte e cinco anos pra cá, tem manifestado um critério muito nebuloso na hora da escolha de seu repertório. Mas como canta a mulher. Nesse vídeo do youtube, os dois se encontram.

Hipocrisia do dia

"Investiga-se um vasto esquema de corrupção envolvendo quase todo espectro político nacional, ministros do Tribunal de Contas da União e uma das maiores empresas do país, e tudo que a grande imprensa consegue é pedir temperança à autoridades e criticar os servidores que nada fazem além de cumprir seu dever funcional.Onde está agora a turma do 'Cansei'? Não era apartidário e desapegado? E a OAB, calará? Ou defenderá a concessão de habeas corpus para empresários, enquanto pobres diabos padecem anos nas masmorras do sistema penitenciário sem que alguém descubra que suas penas já expiraram ou seus processos foram irregulares? E as redações, estarão dispostas a investigar todos os casos de abusos policiais ocorridos nas delegacias da capital paulista, ou sua indignação só serve para a Daslu e a Camargo Corrêa? E os nobres ministros do STF, perderão a pressa, ou devemos violar procedimentos para impedir que os crimes da Camargo Corrêa prescrevam? E os probos parlamentares da oposição, não lhes interessa agora propor um CPI?Um bando de hipócritas ideológicos, eis o que são".

Guilherme Scalzilli (foto), escritor e jornalista em seu blog. Leia íntegra do texto aqui.

Sobre colonizados e provincianos


Em entrevista à Folha de São Paulo, no fim do ano passado, Danuza Leão - que, na época divulgava seu livro Fazendo as Malas, uma compilação de relatos de viagens, "reflexões" sobre a dura vida de turista e outras frivolidades sobre consumo, elegância e dinheiro - confessou sua falta de paciência com a "mania" do brasileiro pedir uma "taça" (ou "tacinha") de vinho, enquanto o mundo supostamente civilizado é unânime em pedir um "copo" de vinho ("un verre de vin", "a glass of wine", etc). Para além da banalidade implícita em seu enunciado, a reclamação da colunista e escritora - se é que podemos tratar Danuza dessa maneira - lançou algumas questões muito produtivas sobre a relação entre colonizadores e colonizados, entre "centro" e "periferia" no Brasil de nossos dias.

"É curioso que um livro que se pretenda tão cosmopolita contenha uma visão tão provinciana", arrematou Francisco Bosco em sua coluna na revista Cult. Ele lembra que, ao pedir a tal famigerada "taça" de vinho - e não um "copo" de vinho, como reclama Danuza -, o brasileiro está sendo apenas literal, chamando as coisas pelo nome que lhes foi dado em nossa língua. "Menosprezar esse comportamento é assumir o ponto de vista do colonizado, que é um outro nome para provinciano. Pois, uma vez que chamamos um objeto pelo seu nome correto em nossa língua, por que isso seria pior do que o modo como falantes de língua inglesa e francesa o fazem, a não ser pelo simples fato de eles serem americanos, ingleses, francesas, etc, e nós, brasileiros?".

Eis, segundo Bosco, o princípio do pensamento colonizado: o que fazemos aqui é pior do que o que os "colonizadores" fazem lá pelo simples fato de que o fazemos aqui. Desse princípio, dessa relação desigual entre "centro" e "província", emerge como consequência extremada, como seu negativo, o elogio da província pela província. Ou seja, o que Bosco chama de menosprezo do "centro" pelo "centro". Trata-se da postura, igualmente negativa, adotada por aqueles que supõe legitimar o "valor" de qualquer experiência da vida na província apenas pelo fato de essa experiência ter se dado na província, fora do "centro".

"O que determina um estereótipo é antes o olhar do que o objeto. Uma pessoa pobre de espírito pode ler Sthendal e não ter nenhuma experiência; uma pessoa com grandeza de espírito pode olhar de modo novo para um objeto pisado e repisado", defende Francisco Bosco. Essa discussão sobre descentramento, sobre o "centro" e a "periferia", ilumina muitas das questões envolvendo a vida em Fortaleza. Em geral, falta-nos esse olhar com grandeza de espírito para nos relacionarmos com a Cidade.

Aqui, essa tensão é alimentada duas vezes: somos brasileiros - e portanto, estamos fora de um suposto "centro" global, como faz crer a obtusidade de Denuza Leão - e, ao mesmo tempo, estamos fora de um "centro" nacional, formado em linhas gerais pelas coisas do eixão Rio-São Paulo. Dessa posição, nascem dois tipos mais corriqueiros de comportamento, dois critérios éticos que estão longe de orientar de maneira positiva o nosso estar no mundo. O primeiro, e mais evidente, é o provincianismo colonizado, aquele hiato entre o cidadão e sua Cidade alimentado pelos sonhos de uma falsa civilidade que só se dá em outro lugar. Uma ética sartreana às avessas, onde o paraíso são os outros, os do Centro, nunca os daqui. Esses, os daqui, não podem constituir uma matriz ideal de convivência, de produção simbólica porque são os daqui e não os de lá.

O segundo critério é o que se poderia chamar de provincianismo esclarecido, um sectarismo que privilegia a província justamente por sua condição de província, de subúrbio. Aqui, as coisas da província são abraçadas indistintamente, apenas por conta de seu lastro sócio-geográfico-cultural. Uma consequência mais imediata desse antolho, dessa mentalidade recalcada é justamente a falta de parâmetros que nos coloque em perspectiva. O provinciano esclarecido não sabe do outro e, portanto, sem referenciais, não sabe de si.

Os dois extremos são resultantes do mesmo equívoco: a ilusão de que a cultura caminha em escalas regulares, evolutivas e concêntricas. Há muito, o modernismo quebrou essa noção e começou a pensar e a celebrar nossa condição de descentrados, de deslocados; começou a operar novos delocamentos, simultâneos e muitas vezes contraditórios.