quarta-feira, 14 de julho de 2010

O Pulitzer e o Publica


No último domingo, o jornal O POVO retomou, com um bom caderno sobre o tema, a discussão a respeito da nova (re)configuração dos jornais diante da consolidação de novas tecnologias de disseminação e de consumo da informação. Por coincidência, na mesma semana do caderno, o tradicionalíssimo Jornal do Brasil (curiosamente, o primeiro jornal brasileiro a fincar sua bandeira na internet) anunciou que iria fechar sua edição impressa, mantendo apenas seu formato digital. Entre a sanha "apocalíptica" de ver no episódio do fim JB impresso o prenúncio definitivo do fim do jornal, da vitória da superficialidade, etc; e a sedução "integrada" de divisar uma nova era de Aquarius para os jornalistas com essas novas possibilidades tecnológicas - que prescindiriam da discussão sobre as condições materiais de trabalho da categoria; lembrei-me do caso do prêmio Pulitzer deste ano, em que, pela primeira vez na história, uma organização de mídia digital ganhou a honraria.
Resultado de dois anos e meio de um penoso trabalho de investigação, a reportagem "As escolhas mortais no Memorial", de Sheri Fink, repórter do portal ProPublica, ganhou a famosa premiação oferecida pela Universidade de Colúmbia. O trabalho "digital" venceu na categoria reportagem investigativa, fato inédito na história do Pulitzer - criado em 1917 em homenagem ao editor Joseph Pulitzer.
A vitória de Sheri ganhou espaço na mídia em todo o mundo; tanto pelo ineditismo da premiação dada a um veículo digital quanto pelo conteúdo da matéria vencedora, um consistente e emocionante relato da história da médica Anna Pou, que no dia seguinte ao desastre do furacão Katrina em New Orleans, teve de fazer uma triagem entre os pacientes do Memorial Medical Center para definir quem iria sobreviver à inundação que atingiu o hospital. Os pacidentes com maior chance de cura foram os primeiros a ser retirados pelo heliponto do hospital; os demais tiveram de esperar pelo resgate. Pelo menos quatro morreram em função da "lista" de Pou. O caso motivou um amplo debate nos Estados Unidos sobre a ética dos profissionais de saúde em situações extremas. Anna Pou foi acusada de ser a responsável pela morte dos pacientes, mas acabou absolvida por júri popular.
A premiação de Sheri (re)colocou na berlinda a história de Anna e também a história do portal ProPublica, que abrigou a reportagem. No Brasil, o Estado de São Paulo publicou, em abril, uma matéria sobre a premiação de Sheri e sobre o funcionamento do ProPublica. Fundado em 2008 pelo ex-editor executivo do Wall Street Journal, Paul Steiger, o site não tem fins lucrativos e é financiado por doações de fundações norte-americanas que têm interesse em projetos na área de mídia. Como o casal de banqueiros californianos Hernert e Marion Sandler que realizaram uma doação de U$ 10 milhões há dois anos e garantiram as finanças do site até 2012. O portal se especializou em matérias investigativas de "clara importância moral" e "claro interesse público", que, na visão de Steiger, seriam as primeiras a ser atingidas (pela complexidade e pelo alto custo de sua produção) em tempos de escassez financeira. "Para a democracia funcionar, precisamos de jornalismo de qualidade. É nisso que acreditamos", define Sheri, resumindo o conceito que motiva os outros 31 jornalistas que compõem a redação do Pro Publica, que, por seu caráter não lucrativo, autoriza os demais veículos a reproduzirem suas matérias. "Roubem nossas histórias", o site convoca.
A discussão sobre a premiação do portal norte-americano coloca mais lenha na fogueira que, esta semana, recomeçou a arder com o caderno do O POVO e com a notícia em relação ao destino do JB. Uma primeira - e óbvia - conclusão que se tira a partir da leitura do caso de Sheri é a de que o bom jornalismo, o jornalismo de produção de conteúdo, é fundamental para a democracia. Ou melhor, discutir os rumos do jornalismo é discutir as novas configurações da vida democrática, com novos mecanismos de produção e de acesso à informação e novas estruturas e velocidades de discurso sendo disseminadas.
Outra constatação que o caso Sheri traz à tona é que não é possível falar em novas plataformas de jornalismo sem falar nas condições materiais de produção do conteúdo, sem a reflexão sobre as condições de trabalho dos jornalistas - e sua galopante degradação. No caso do ProPublica, fica a ressalva de que se trata de um caso específico de organização sem fins lucrativos e financiada por doações (que lhe dá uma maior liberdade de ação, mas não soluciona nem serve como modelo geral para o impasse sobre as formas de financiamento do jornalismo). No entanto, as velhas maneiras de funcionamento capitalista das redações terão de conviver com novas formas de articulação e de formalização trabalhista, sejam elas o cooperativismo, o formato de fundações ou outras estratégias que apontem, no limite, para a sobrevivência da profissão e do próprio jornalismo.
Uma terceira evidência em torno da premiação do ProPublica é que a redação, mesmo num veículo digital, é um organismo imprescindível para a produção de conteúdo. Sobre o tema, o jornalista e professor Ronaldo Salgado, da Universidade Federal do Ceará, já havia cantado a pedra no O POVO. "Sem querer me colocar numa posição de contrariedade aos que aplaudem e defendem essa realidade tecnológica insofismável, eu quero crer que a redação, leia-se a estrutura redacional e o corpo profissional com a sua capacidade de ler a realidade, não pode ser deixada de lado em termos de importância na aferição da qualidade do jornalismo. A redação ainda é de forma categórica, o local ou o elemento fundamental para a atividade jornalística".
Por fim, vale atentar para a questão do prestígio conferido pelo Pulitzer a um veículo do meio digital, sobre o qual ainda pesa alguma resistência em termos de credibilidade. Para Mike Webb, diretor de comunicações do Pro Publica, entrevistado pela reportagem do Estado de São Paulo, o prêmio teve um efeito positivo sobre a redação e deve facilitar as arrecadações de fundos de agora em diante. "Se alguém tinha alguma dúvida sobre nós, agora elas foram apagadas", comemora.

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