segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Alento gastronômico e de civilidade



Artigo publicado na edição do dia 22.12 do jornal O POVO 

Apesar da presença cada vez maior - e embrutecedora - de grandes empreendimentos verticais do mercado imobiliário, ainda há beleza e delicadeza pulsando pelas ruas e praças do Bairro de Fátima. A Praça Argentina Castelo Branco, entre as ruas Dep. João Pontes e Dr. Costa Araújo, na altura da Conselheiro Tristão, é um desses redutos de resistência de gentileza urbana que vai disputando espaço com os imensos blocos de concreto. Foi olhando para a praça que, há cerca de três meses, se estabeleceu no bairro o restaurante Raízes. Um alento gastronômico e de civilidade.
Junto com a praça, o restaurante compõe um conjunto em que a leveza das brincadeiras das crianças e o vai e vem dos caminhantes, corredores e peladeiros de basquete dialogam de forma harmoniosa com o frisson dos comensais e boêmios acidentais. Uma pausa para o olhar e o sentir. Há, no casarão que abrigou o empreendimento, dois espaços: um fechado, ao ar condicionado; e outro aberto, espalhando suas mesas pelos corredores laterais e dividindo com a rua a brisa gostosa do bairro. A música é discreta e de boa qualidade.
No cardápio, me explica a garçonete de verve cortês, o forte é a comida regional. O repertório tradicional de nossa gastronomia, no entanto, ocupa apenas uma parte do cardápio. Mas está lá: panelada, buchada, peixe na telha, carneiro e quejandos. A maior parte das opções – sempre servidas em porções generosas - mistura referências locais a receitas universais, como o Bacalhau com broa de milho; a Maminha Arre Égua, acompanhada de farofa de cuscuz e batata doce; ou o agridoce Camarão Africano servido com açafrão e pêssego gratinado. O Camarão Jaguaruana, flambado no conhaque e arroz de castanha de caju, é o mais novo prato da casa.
O Raízes abre para o almoço e para o jantar. Se o caso é apenas petiscar, o Suvaco de Cobra, à base de carne do sol, é tiro certo. Há também um Pedacinho do Céu, nem tão interessante quanto a memória nos sugere do que era esse petisco no saudoso Cais Bar. Aos zitolibadores errantes, também vale o pit stop: a cerveja é impecável. Pelo menos foi assim, tal qual o atendimento, no dia da visita deste resenhista – que não se identificou como jornalista.
Na relação entre custo e benefício, vale cada casa decimal da conta. Na relação entre bairro e cidade, mais ainda. Porque empreendimentos do tipo podem impedir – ou retardar – que o bucólico e pacato Bairro de Fátima se transforme num novo Meireles, com seus prédios gigantescos e suas ruas mortas e insípidas.
 
Serviço
Restaurante Raízes
Onde: Rua Conselheiro Tristão, 1555, Fátima. 
Horário de funcionamento: de terça a domingo, de 11h a 0h.
Telefone: (85) 3055.6060. 
Não possui estacionamento próprio.
Cartões Visa e Mastercard.

O Barcelona e os colonizados



Artigo publicado no jornal O POVO na edição do dia 22.12.2011

O Barcelona é um time extraordinário? Sim! Dá gosto ver Messi e companhia em campo? Claro. O modelo do Barcelona deve servir ao futebol brasileiro? Alto lá. Devagar com o andor que há santos de barro (com trocadilho, por favor) nesse cortejo.
Muitos vaticinaram a impiedosa peia do time catalão sobre os santistas como o ocaso do futebol brasileiro. Um debate que me parece açodado.
Primeiro porque o Santos não é o melhor time brasileiro do momento (Neymar, sim, é nosso melhor jogador) e, nem de longe, representa uma escola brasileira (o estilo de Neymar sim). Os times de Muricy Ramalho, apesar dos títulos, costumam chatear os próprios torcedores por suas retrancas e sua pouca vibração tática.
Além disso, o estilo de jogo do Barcelona, dinâmico, com muitas variações de jogadas, pressão constante na marcação e muita rapidez no ataque – mas, registre-se, muito refém do talento de Messi - não é novo. E é muito brasileiro. Remonta, claro, à Holanda “mecânica” de 74. Mas também a times como o Flamengo de 1981, que tinha a liderança de Zico e uma extraordinária qualidade de passe. Ou a seleção de 70, em que, do meio pra frente, os jogadores também alternavam posições. Ou ainda às fanfarras de Didi, Vavá, Garrincha e Pelé.
Futebol pesado, duro, disciplinado, sempre foi uma marca europeia. Nós somos do improviso: da imprecisão, da dança e da beleza. No final dos anos 80, o Milan de Van Basten era o bicho papão e tornou célebre o esquema de jogo com o líbero. O Brasil passava por uma seca de títulos internacionais – inclusive, entre clubes – e o debate era semelhante. Precisávamos jogar como o Milan, seguir aquele modelo tático, etc, etc. Lazaroni, então técnico da seleção brasileira, foi na onda de copiar o modelo milanês. Deu no que deu.
Portanto, saudemos o Barcelona e seu belo futebol. Mas deixemos de lado esse pensamento colonizado. Aliás, por falar em colonizado, não era à toa que os portugueses conquistavam nossos índios oferecendo espelhos. Não deixa de ser uma alegoria oportuna.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Muniz Sodré


"Interesso-me pelo esotérico, pelo oculto, sim.
É que, em tudo que desabrocha e se mostra (isto é physis, natureza), algo se retrai, se cala, se oculta: isto é mysis, de onde deriva mística.
Meu interesse não é de fundo religioso, mas existencial, pois traduz uma vontade de experiência.
Quero dizer, uma vontade de lidar com a surpresa, com o indeterminado, com o inesperado. Isto é experiência, algo que se perdeu na modernidade oficial, mas que permanece como um fundo de reserva para quem sabe olhar e aguardar.
Não creio que daí advenha qualquer espiritualidade.
Nem daí, nem da freqüência a templos ou igrejas.
Espiritualidade é ter livre o espírito, portanto, é ser independente das amarras do ego.
O contato com os fenômenos arrolados sob rubrica do oculto não têm a ver com espiritualidade.
Mas têm a ver com experiência.
No entanto, eu tenho perfeita consciência de que o interesse pelo dito oculto pertence também ao misticismo paranóico, senão a um certo tipo de direita política (a elite nazista adorava os esoterismos).
Sei também que esse interesse atrai muxoxos da parte dos supostos donos da razão. A experiência comporta todos esses riscos" - Muniz Sodré, em entrevista ao Centro de Mídia Independente

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Cristina Buarque no Kukukaya

No último sábado, aconteceu a primeira edição do projeto "Roda de Samba"no Kukukaya. A convidada especial foi ninguém menos que Cristina Buarque - o que fez da tarde um momento histórico.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Os meios, o fim e o Enem



Estudei no Colégio Christus. Do tempo que passei naquela instituição "cristã", carrego comigo um patrimônio inestimável que são as amizades cultivadas e que perduram até hoje. Mas jamais colocaria um filho meu para estudar lá, pois discordo da proposta pedagógica desumanizada e alienante, e também do falso moralismo com que a instituição constrói sua relação com os alunos. A ferro e fogo, seus meios todos conduzem para um mesmo fim: uma boa cota de aprovação no vestibular (na minha época) e no Enem (agora) - como se as demandas mais profundas de formação do ser humano se resolvessem num gabarito de prova. Não me parece, portanto, uma instituição de ensino mais ou menos ética que outras tantas que existem na Cidade e que se engalfinham nessa sanha hipócrita em torno dos exames do ensino médio. Claro, não se pode julgar antecipadamente. Esperemos que a apuração da Polícia Federal seja concluída - embora existam fortes indícios que houve vazamento criminoso da prova. Mas me incomoda muito essa tentativa de blindar antecipadamente a escola, sem chamá-la à responsabilidade.

domingo, 16 de outubro de 2011

O mandíbula e o maestro



Uma raridadezinha que registra o encontro de Count Basie com o gênio visceral Lockjaw Davis.

O gosto e a barbárie


Na arte, gosto não só se discute, como deve ser discutido. O cerne da questão do consumo não está na perspectiva supostamente ingênua e inofensiva - quase aleatória - das afinidades pessoais. O ato de se escutar esse e não aquele gênero musical, por exemplo, reflete fundamentalmente uma opção política e estética que aponta para um projeto (ou projetos) de civilização. Penso isso à luz das declarações de Jacques Rancière (foto acima) à revista Cult, em que o pensador francês analisa como a estética e a política são maneiras de organizar o sensível: "de dar a entender, de dar a ver, de construir a visibilidade e a inteligibilidade dos acontecimentos". "Temos de pensar na estética em sentido largo, como modos de percepção e sensibilidade, a maneira pela qual os indivíduos e grupos constroem o mundo", ele defende.
Afinal, que mundo poderá ser construído a partir da visão sexista e rasteiras das letras do forró eletrônico? Que civilização poderemos divisar através dos xingamentos e trocadilhos de mau gosto presentes na chamada swingueira? Que delicadeza, que sentidos de solidariedade esperar de um proprietário de um famigerado paredão de som e seus convivas? Que intensidade esperar de alguém refém de melodias pobres e redundantes, de ritmos recorrentes e repetitivos? Que originalidade imaginar em alguém que só convive entre pastiches?
Em geral, a crítica cultural apresenta certo fastio para tratar desse assunto. E, não raro, setores da academia tentam relativizar essas questões estabelecendo pontos de fuga para esse elemento central que é nossa inexorável barbárie cotidiana - que cada vez menos pessoas estão sabendo reinventar em atitudes e sensibilidades positivas.

Bill Evans



A tristeza é senhora. Mas Bill é senhor de todos os alentos.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O palhaço dos reis


Nos Estados Unidos, o formato “stand up” fez a glória de nomes como George Carlin - que ridicularizava a boçalidade religiosa de seus compatriotas - e Lenny Bruce - um pioneiro que, diz-se, morreu de “overdose de polícia”, tantas e tão recorrentes eram suas prisões ao deixar o palco. Geralmente motivadas pela paranoia moralista da época. Os dois foram reis entre os palhaços, pela coragem e pela inteligência.
Rafael Bastos, que bebeu nessa fonte e foi um dos que transformaram o gênero em moda por aqui, sempre pareceu tentar seguir a trilha desses ídolos. Mas, por viver em outro país, com uma história já de si politicamente incorreta, lastreada por um atávico espírito colonialista e escravocrata, confundiu coragem com agressão gratuita, espírito crítico com graça compulsória. E humor, nos lembra Chico Anysio em entrevista à Carta Capital, “deve visar a crítica, não a graça. Ele vai ser engraçado onde puder”.
No caso de Bastos, suas performances nunca lograram uma coisa nem outra: nem a crítica nem o humor. Ainda assim, suas diatribes – que incluíam a defesa do estupro de mulheres feias – eram saudadas por seus pares (inclusive os de bancada do CQC).
Mal sabia ele que os ultrajes e a suposta contestação ao patrulhamento do politicamente correto eram apenas a embriaguez e a prepotência de um jovem diante de uma falsa concepção de liberdade. Aquela que “só existe no abuso da liberdade sem freios, sem regras, sem respeito pela liberdade do outro”, no dizer do sociólogo José de Souza Martins.
Questionamentos como a representação do Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo ao Ministério Público não lhe renderam maiores problemas. Mas eis que “Rafinha”, de forma desastrada e grosseira, ousou mexer com os “coronéis”, com os dos donos do dinheiro. Acabou demitido e teve contratos cancelados. Descobriu que, para usar a expressão de Millor Fernandes, em vez de rei dos palhaços (como o foram Bruce e Calin) era apenas um palhaço dos reis.

Artigo publicado no Jornal O POVO, edição de 13 de outubro de 2011.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Bernardo Carvalho


"Ninguém é preso em flagrante, porque todo mundo se entrega antes, mostra antes.
Não faz mais sentido falar em vigilância (nem combatê-la, nem denunciá-la, o que não significa que ela não seja mais eficaz que nunca) numa sociedade tautológica, de autoexposição voluntária. A transgressão foi anulada pela banalização do consentimento coletivo. É como se toda a sociedade de repente fizesse a passagem de que fala Freud, da atividade do voyeurismo para a passividade do exibicionismo.
Afinal, todos têm seus minutos de celebridade, como previu Andy Warhol, e todos têm seus minutos de puta, com a desvantagem de, em geral, não receber nada por isso. E o mais perverso desse mecanismo é que a promessa de celebridade massificada resulta sempre em mais anonimato, na indiferenciação das diferenças e das individualidades. A rede vende a ilusão de que a exceção é a regra e assim anula a exceção".

Bernardo Carvalho, em artigo para a revista Zum, lançada pelo Instituto Moreira Sales. 

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Poemetes araújos XVII


Mataram o professor,
governa a dor.
Mas parece
não temos que: 
tempo para
seu drama.
E matarão outros:
professores, engenheiros, médicos e
garis, taxistas, motoristas e
homens de bem.
Desvastarão famílias
à luz das melhores fotografias
e álbuns de lembranças:
terceira margem
da vida.
Mataremos, nós,
uns aos outros.
O sangue será
servido em falsas
tigelas de prata
aos comensais do rei,
genros e amigos
e acólitos da farsa.
A impunidade dos salões
e colunas sociais é a mãe
de todas as impunidades
e todas as putas.
Triste Ceará esse
que troca de tiranos
ao subir e descer das marés.
E constroi aquarios
para celebrar seu
atraso, sua
indigência.
Querem sufocar o grito
da família, filhas e futuro.
Mas há cordas que não cessam de vibrar;
nelas residirá alguma melodia
e resistência.
Sei porque quero que
elas existam.
Ai de ti Benfica,
essa ilha urbana
de esperança
cercada de indiferença
por todos os lados.
Que não seja em vão.
Que não sejamos vãos.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

E ainda tem uns moleques teimosos por aí... (Estamos velhos mas ainda não morremos)


Peço licença aos amigos do blog Receita de Samba e reproduzo aqui neste Talabarte o texto de Thomás Lopes Ferreira sobre o novíssimo movimento - com ramificações consistentes em todo o País - de resgate dos tradicionais compositores dos subúrbios cariocas e do formato acústico das rodas de samba, cheias de canto, alegria e poesia. Sem correria e com um profundo respeito à cadência do ritmo e dos versos. Ao fim do post, um vídeo com a linda homenagem a Chico Santana na Portelinha comandada por artistas como Tuco (um líder em ascenção) e a moçada do Terreiro Grande. De arrepiar!


Por Thomás Lopes Ferreira

Quando o vapor berrou no vale do Paraíba, logo após sinhá Izabel assinar a carta de alforria, descendentes de bantos, benguelas e monjolos juntaram seus trapos em busca de oportunidade na cidade portuária e logo se arregimentaram no nascente subúrbio carioca. O século XIX finalizava e morros como Serrinha, Congonhas e Tamarineira, assim como o bairro próximo de Oswaldo Cruz, já marcavam o ritmo de uma localidade chamada Madureira.
Lá, nas casas das famosas tias: rangos e rezas, jongos, lundus e cachaças davam vida aos corpos manchados de sol, suor e trabalho. Carregar e descarregar mercadorias do porto compunha a labuta diária de um povo, agora “liberto” para trabalhar ainda mais. Sob os olhares atentos das pequenas gigantes tias, o batuque ia se transformando, assimilando a modernidade iniciada pela escola primeira do Estácio de Sá. Eulalias, Marias e Alfredos foram aos poucos se juntando, onde antes somente existiam tambores, para se arriscarem em instrumentos eruditos, nos quais a turma da Santíssima Trindade já ousava dar notas músicas.
Foi no bairro de Oswaldo Cruz, na ainda bucólica Estrada do Portela, que um certo Paulo Benjamin de Oliveira foi morar e gravou seu nome para sempre na história do samba. Conhecido nas redondezas como professor, Paulo organizava encontros, reuniões e pagodes, onde versava seus primeiros partidos, que anos mais tarde Chico Santana, Manacéa, Alvaiade e Natalino iriam dar continuidade. Esse compositor popular que tantas músicas compôs fundou, ao lado dos companheiros Antônio Caetano e Antônio Rufino, a escola da águia altaneira sob a sombra de uma jaqueira. Com um estilo próprio Paulo passou a ser o Paulo da Portela e conduziu Oswaldo Cruz rumo à imortalidade.
O samba de lá não tinha palco, não tinha “artistas”, não tinha vaidade, era uma festa. Quem não sabia tocar, não tinha problema, se envolvia do mesmo jeito. Acompanhava na palma da mão, na lata, no prato e na faca, no reco-reco, no gogó, no que tivesse, mas tudo com o maior respeito e organização. O pagode era e é assim, uma festa, que ao mesmo tempo em que divertia a todos, unia num mesmo canto as dores do dia a dia tão difícil. Esses bambas se desafiam em versos e o coro era composto, por ninguém menos, do que todos que estavam presentes.
Décadas mais tarde, Candeia com o sonho da multidão voltar a tomar as rédeas da escola, inovando na linguagem, recorre às mesmas armas, que antes municiaram Paulo e seus companheiros, mas os tempos tinham mudado... Nas escolas a figura do sambista, compositor e partideiro estava desaparecendo e a indústria fonográfica começava a mostrar suas caras e personagens. Surgia a figura do carnavalesco e o terreiro além de ir aos poucos mudando de cor, muda também de nome e passa a ser chamado de quadra.
Tentando influenciar os rumos da escola, não apenas com palavras, mas com apoio popular, Candeia organiza verdadeiras marchas, em dia de ensaio, rumo ao terreiro, descendo os morros do bairro e pegando o trem, junto a uma multidão que cantava seus versos e de muitos outros grandes partideiros. Não mudou os rumos, mas deixou um legado de continuidade, não da mesma forma, não sem inovar, mas com o mesmo propósito que o professor tanto versou:
“Ouro desça do seu trono. Venha ver o abandono de milhões de almas aflitas, como gritam. Sua majestade, a prata, mãe ingrata, indiferente e fria, sorri da nossa agonia”. Era a mensagem da música popular, que com diversão e lamento, no coro, na palma da mão, no improviso e com respeito, cantava o cotidiano de uma gente sofrida. “O meu nome já caiu no esquecimento, o meu nome não interessa a mais ninguém” denunciava Paulo, anos antes, já preocupado com os rumos das escolas, após uma confusão que acaba tirando-o do desfile, quando as escolas ainda se apresentavam na saudosa Praça Onze.
Tem gente, que pensa que o samba desse jeito acabou, e que agora o palco dominou, onde um só vocalista canta e grupos pequenos comandam a vez, onde as grandes rodas nas ruas dos subúrbios não existem mais, onde gostos e cheiros das gordas feijoadas não se misturam mais ao suor do dançar e ao sorriso do cantar junto. Confesso que às vezes me desanimo e penso assim também. Mas uns poucos anos atrás, meninos e meninas, na maior parte moleques, no que há de melhor nessa palavra, inspirados em histórias e jeitos de cantar da teimosa velha guarda azul e branco, começaram a organizar encontros em várias cidades do país batuqueiro.
Tocando sem amplificadores, quando muito um violão tenor ou de sete é amplificado, com três, quatros e até mesmo cinco cavacos, pandeiros em partido ou na marcação cadenciada, surdos de virada, reco-recos, tamborins, ganzás, repiques de mão, repiques de anel e apitos dando forma à cozinha e...... o mais bonito e contagiante: tudo no gogó, no coro e no verso improvisado.
Novamente, no mesmo jeito que o professor ensinou, mas também com inovação, rompem o abismo que separa os músicos do seu público, aproximando-os com olhares, histórias e cantos, fazendo todo o sentido para o autêntico pagode se apresentar. São partideiros e versadores, manos da Terra da Garoa, da Cidade Maravilhosa, da Beira do Guaíba e das Gerais que, para além de tudo, tem o amor ao samba, à sua história infinita, à sua inovação, aos seus versos e memórias, é o samba sem vaidade, sem palco, sem dono e com respeito aos antigos e aos novos, se (re) fazendo novamente para se tornar pleno. Assim se fazem imortais, mais uma vez.
Se fazem sorriso, outra vez, se fazem modos de cantar, de tocar e de agradecer aos Candeias, Manacéas e Chicos, Alcides, Natais, Caetanos e Alvarengas, Paulos e Rufinos pela imensa alegria de ter a oportunidade de continuar. Simplesmente, fazem samba, se fazem popular. Serão lembrados, assim como lembramos outros bambas, serão louvados assim como louvamos outros mestres, por cantar a vida, por mostrar o sofrimento, por não nos deixar esquecer que a beleza existe, que a esperança é eterna, que a chama não se apagou e nem se apagará. Enquanto nos fizermos seres humanos, teremos essa possibilidade.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Maffesoli: Admirável Mundo Novo



Entrevista com Michel Maffesoli publicada no jornal O POVO e assinada em parceria com o repórter Emerson Maranhão. Foto de Igor de Melo.

Não só a razão, mas também os afetos. Não apenas o indivíduo, mas a pluralidade da persona. Não só a política abstrata, mas a concretude da solidariedade. Em sua carreira como teórico da comunicação e da pós-modernidade, o francês Michel Maffesoli tem seguido a cartilha marxista de procurar “ouvir as plantas crescerem” para entender o que há de revolucionário no mundo. E tem decantado uma nova ordem mundial baseada não mais em conceitos tradicionais, mas em novos valores e protagonistas que se articulam pela internet, dissolvendo e reinventando as noções de estado, de educação, de gênero e de poder. 
“O que temos é uma ordem verticalizada, que caracteriza a ordem moderna, os partidos políticos, a democracia. Creio que isso vai deixar lugar para uma nova ordem, uma nova forma de solidariedade e de generosidade, que parte de baixo pra cima, de uma forma indutiva. E não simplesmente de cima pra baixo”, afirma.
Fim da educação
Professor emérito da Universidade de Sorbonne, Maffesoli esteve em Fortaleza no último dia 5 de setembro. Em entrevista exclusiva ao O POVO, ele discutiu essa nova ordem mundial e anunciou a falência de grandes narrativas como o marxismo, além de apontar para o que considera o fim da educação.
“Os astrofísicos, por exemplo, dizem que nós ainda enxergamos hoje a luz de uma estrela que já morreu muito tempo atrás. Você precisa de tempo pra enxergar que aquela estrela morreu. A estrela da educação morreu, mas nós ainda enxergamos a sua luz”, defende.

O POVO - Em suas obras, o senhor chama atenção para forças sociais que se colocam distantes do poder político tradicional. Que forças são essas e que novas políticas elas propõem?
Maffesoli - Se você me permitir ser radical, acho que a política está saturada. Na Europa, as novas gerações realmente não têm muito interesse político. Todas as eleições têm de 60% a 70% de abstenção, pessoas que simplesmente não querem votar. Li que aqui o voto é obrigatório, mas que mais e mais jovens não querem ir votar. O que quero dizer com isso é que atualmente existem novas formas que não são mais políticas no sentido tradicional. Manifestações como estamos vendo na Inglaterra, em Madri, em Paris. Ou seja, estamos num momento onde se busca uma nova maneira de intervir na vida política. Não é mais aquela política como conhecemos, aquela coisa programática, onde tenho um programa reformista, revolucionário ou conservador. Hoje, existe essa ideia da volta à emoção, à parte emocional, às nossas raízes. Ou seja, é uma ordem política diferente.

OP - Que nova ordem é essa?
Maffesoli - Uma nova ordem está em fase de gestação. Vou tentar explicar isso de uma forma meio rápida e também de uma forma provocativa. Eu acredito que o que caracteriza a pós-modernidade é uma ordem anarquista, sem estado. É um ajuste, um rearranjo, um convívio a partir dos grupos de base, das comunidades. A ordem verticalizada caracteriza a ordem moderna, os partidos políticos, a democracia. Creio que isso vai deixar lugar para uma nova ordem, uma nova forma de solidariedade e de generosidade, que parte de baixo pra cima, de uma forma indutiva. E não simplesmente de cima pra baixo. Essa é a tendência. O que vemos nas manifestações jovens, é uma verdadeira erupção dessa sensibilidade anarquista, o que chamo de lei da irmandade, dos irmãos.

OP - Que avaliação o senhor faz das redes sociais e da internet como ferramentas de mediação e articulação dessas novas forças sociais?
Maffesoli - Na origem grega, a palavra política é a cidade, é a gestão da cidade, a gestão daquilo que está próximo a nós. Hoje, a política é justamente o contrário, é uma coisa que está distante de nós. A vida política é um jogo para alguns, para uma elite, para poucos. Não tem mais nada a ver com o povo. Para mim, temos que voltar ao povo. Então, o povo é arcaico, naquele sentido grego, que é aquele que vem primeiro, que é fundamental. Acho que é isso que está acontecendo na França, esse retorno ao povo. Isso está abrindo caminho para as redes sociais, fóruns de discussão, orkut, twitter, quer dizer, toda essa horizontalidade da vida societária. Ou seja, é algo que é vivenciado com os outros. E essa nova solidariedade com certeza recebe ajuda do desenvolvimento tecnológico. Estamos no início dessa revolução que está acontecendo com o telefone celular, edes sociais, internet, toda a comunicação instantânea. Essa ideia de comunicação viral, de vírus, isso está mudando o convívio das pessoas com a política. Não há mais lugar para a política abstrata em relação à vida social. Eu diria que a política vai continuar, ela não vai desaparecer. Ela faz parte da nossa vida. Mas a vida verdadeira vai ser nos bairros, nas casas, nos lares.

OP - Em um livro recente, Saturação, o senhor discute como a solidariedade está migrando do estado social provedor para o quadro comunitário e para as técnicas interativas. Pensando isso à luz da grave crise econômica que afeta alguns países da Europa, que novo tipo de estado pode estar sendo definido por essas forças e por esse cenário que o senhor discute?
Maffesoli - Nós estamos vendo o fim do estado. Estamos voltando ao ideal imperial. Não no sentido do imperialismo americano, por exemplo. Mas da constituição de identidades macroscópicas. Podemos pensar num império norte-americano, mas também num império sul-americano, europeu, asiático, africano, etc. Ou seja, as grandes identidades e, dentro dessas identidades, o retorno, o resgate da comunidade. E, a partir disso, um estado não-centralizado, uma disseminação. Um exemplo: na Europa, nós tínhamos os estados centralizados, e isso se manifestava na aviação e nas ferrovias. Em cada estado, as vias aéreas, as ferrovias começaram a se centralizar em uma capital. E aquilo era o símbolo da centralização do estado-nação. Hoje, existe uma circulação ferroviária ou aérea que liga Barcelona a Milão, Lyon a Colônia, Toulouse a Roma. Quer dizer, simbolicamente falando, isso significa que não existe mais essa centralização por estado. Ao contrário, há o retorno dessa idéia imperial, como acontecia na idade média, sem fronteiras. Há uma espécie de comunicação entre as regiões, entre as cidades, ou seja, entidades humanas. Entidades em que não vemos mais aquele estado provedor, que vem de cima pra baixo. Na verdade, existe uma nova forma de solidariedade, que se exerce nesse conceito de proximidade. E o desenvolvimento tecnológico faz parte disso. Numa pesquisa que realizamos recentemente, discutimos como essa nova geração desenvolve na Europa novas formas de hospitalidade. Se ela vai sair de Paris, onde ela vai ficar em Barcelona? Em Berlim? E vemos que existem essas redes de solidariedade concretas, que fazem com que se crie essa nova forma de hospitalidade, uma nova sociedade.

OP - A solidariedade é uma marca da pós-modernidade?
Maffesoli - Gosto da expressão lei dos irmãos ou irmandade. Isso me diz sobre novas maneiras de convívio, que vêm de baixo pra cima. É isso a solidariedade afinal. É ceder algo para comer, para abrigar alguém, para receber ajuda psicológica, espiritual. Algo que tem a ver com os sentimentos, com a emoção. Então, acredito que a palavra solidariedade é uma das palavras-chave da pós-modernidade. É algo que não está relacionado a valores abstratos, mas a valores concretos. Para mim, a cultura verdadeira é comer, se vestir, amar, não é verdade? Nós vemos que é uma nova forma muito concreta, que está se realizando nessas redes. Redes para procurar um par amoroso, para procurar hospedagem, redes para qualquer coisa, fóruns de discussão. Então, solidariedade é isso. Não é uma coisa abstrata. É na verdade uma realidade muito concreta.

OP - Em um livro recente, A República dos Bons Sentimentos, o senhor questiona o “bem-pensar”, o politicamente correto que estaria ancorado em conquistas teóricas do século passado e mesmo do século XIX. Grandes narrativas como o marxismo ou a psicanálise estão sendo mal interpretadas em nossos dias ou elas não dão mais conta da nossa realidade?
Maffesoli - Todas são obsoletas para mim (risos). Totalmente ultrapassadas. A intelligentsia – ou seja, os jornalistas, os políticos, aqueles que têm o poder de dizer -, esteve muito no centro da filosofia das luzes e foi alimentada pelos grandes sistemas de emancipação dos séculos XIX e XX, o marxismo, o funcionalismo etc. Tudo mediado pela noção de contrato social. Essa ideia de que você é um homem racional, eu sou um homem racional também e nós podemos ter uma comunicação racional. Então, até o freudismo consiste em liberar e estudar o inconsciente para que ele se torne racional. É por isso que digo que essa intelligentsia, essa elite continua com ideias do século XVIII ou XIX, consciente ou inconscientemente. Nós não temos que conhecer tão bem a teoria marxista para conhecer isso, mas ela está tão entranhada que parece que vem do leite materno. Nós permanecemos com essas ideias e exercemos esse moralismo. Esses são os bons sentimentos. Nós continuamos pensando o que nós devemos fazer. Weber chama isso de a lógica do dever ser. Ou seja, nós continuamos com essa lógica do dever ser e nós não sabemos mais o que somos. Penso que é necessário um resgate do emocional, da paixão. Nós temos de nos purgar dessas grandes interpretações. Em termos filosóficos, nós temos que não simplesmente representar o mundo, mas saber presentar.

OP - Esse apego a ideias dos séculos passados não seria uma forma de resistência à pós-modernidade?
Maffesoli - Nós preferimos as certezas do que as incertezas. Mesmo que as certezas nos impeçam de ver o que está acontecendo. A reação essencial, a reação humana, é de medo. Medo ao que é estranho, ao que nós não entendemos. Medo desse mundo que está efervescendo culturalmente. Um exemplo é o caso de Adorno. Ele dizia que o jazz era a barbárie. Porque estava acostumado com a sinfonia, com as orquestrações da música erudita. Ele temia o jazz. É a mesma coisa nos sistemas teóricos. Algo que foi anômico torna-se canônico. É a mesma coisa com os sistemas sociais do século XIX, que eram alternativos e se tornaram conservadores. Eles não souberam prestar atenção ao que estava em gestação. Marx tinha uma fórmula muito boa. Ele dizia que você tem que ouvir as plantas crescerem, as ervas crescerem. O nosso é trabalho é exatamente o de ouvir as plantas e as flores crescerem. Mesmo se isso for alternativo, mesmo se isso nos choca. Nós temos de nos chocar com a vida. E a vida é sempre cheia de desafios, a vida é perigosa

OP - Em vez de educação, o senhor prefere falar em iniciação. Eu queria que o senhor falasse um pouco dessa ideia.
Maffesoli - Isso é muito importante pra mim. A tecnologia e as redes comunitárias apontam para um saber coletivo, que é a noosfera, a esfera do conhecimento, o saber coletivo. Isso mostra que o processo educacional é reacionário. Ou seja, continuamos com o processo que é aquele saber que vem de cima pra baixo. Prefiro falar em iniciação. A educação traz sempre a noção de poder, eu sei e você não sabe. Na iniciação, você tem um tesouro que você vai ter que guiar, fazer esse tesouro aflorar. O processo educacional foi uma coisa ótima, que marcou os séculos XVIII e XIX. Mas em meados do século XX, nós vimos a saturação. Em 64 em Berkeley, em 68 nas revoluções estudantis em Paris. Foram os primeiros sinais e daí houve todo um processo mais acelerado de transformação. Quando uma forma social não é mais pertinente, a gente precisa de um tempo pra entender isso. Os astrofísicos, por exemplo, dizem que nós ainda enxergamos hoje a luz de uma estrela que já morreu muito tempo atrás. A estrela da educação morreu, mas nós ainda enxergamos a sua luz. E vai demorar tempo para ver que ela morreu de fato.

O POVO - Como o senhor entende a questão das liberdades sexuais na pós-modernidade?
Maffesoli - A maneira de se vestir, a maneira de se comportar, a postura corporal, os cabelos etc. Atualmente, tem alguma coisa de indeterminação sexual. Não é mais simplesmente o heterossexual que é considerado normal. Há uma saturação de identidade sexual típica, única. E podemos dizer a mesma coisa para a identidade política, para a identidade profissional. Eu posso agora ser um professor gente boa, bem vestido, com uma boa aparência e, hoje à noite, posso me vestir completamente diferente numa boate, posso me comportar diferente. São personagens, são máscaras. Não é esquizofrenia. São múltiplas facetas do que nós somos. Existe uma realidade físico-química que é a individualidade, eu sou eu, você é você etc. Mas tem um momento em que essa base, essa individualidade toma a forma da pessoa, plural, múltipla etc. Nós estamos nos deslocando do indivíduo para a pessoa.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Rio: 1936

O Rio de Janeiro em 1936. Ainda mais maravilhoso, posto que mais ingênuo e bucólico.




quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Neoliberais: suas ideias não correspondem aos fatos



O texto abaixo é de autoria do economista Márcio Pochmann e foi publicado na edição no. 100 da revista Fórum

O resultado do processo político das três últimas eleições nacionais parece não ter sido suficiente para inibir – pelo menos – a arrogância dos defensores do neoliberalismo no Brasil. Permanecem resistentes como se nada houvesse mudado na sociedade, fazendo desconhecer, inclusive, a regressão socioeconômica pela qual mantiveram o país prisioneiro por quase duas décadas. No ano 2000, por exemplo, o Brasil situava-se na posição de 14ª economia do mundo, ocupando o terceiro posto no ranking do desemprego global, enquanto em 1980 encontrava-se entre as oito economias mais importantes do planeta e estava na 13ª posição do desemprego mundial.
A estabilização monetária a partir do Plano Real foi um avanço, não obstante a demora assistida até a sua obtenção, após mais de quatro anos de experimentalismo neoliberal. Por conta disso, o Brasil se tornou um dos últimos países a superar a superinflação, posto que desde os anos 1990 ela praticamente se afastou do alto patamar verificado nas décadas de 1970 e 1980. Mesmo assim, a estabilidade monetária obtida no país desde 1994 se mostrou incompleta e insuficiente para permitir a volta sustentável ao desenvolvimento nacional, uma vez que o dinamismo econômico esteve contido e extremamente vulnerável, com perversos efeitos sociais. Naquela época, por exemplo, bastava que algum país tossisse para que o Brasil registrasse uma baita pneumonia, o que foi comprovado nas crises financeiras da segunda metade da década de 1990 (mexicana, asiática e russa). Todas elas, por sinal, acompanhadas tanto pela elevação interna dos juros e da carga tributária como pela contração do gasto público e dos investimentos. O resultado era a ampliação do desemprego e a redução da participação dos salários na renda nacional. Com isso, o conjunto da renda dos proprietários (lucro, juro, aluguel e renda da terra) se mantinha inatingível e com maior presença na riqueza do país.
O contrário ocorreu em 2008, quando os países ricos se contaminaram com uma grave pneumonia que atingiu o mundo todo. O Brasil, contudo, acusou um resfriado. Um ano depois, a economia nacional encontrava-se entre as sete principais do mundo, ao passo que, juntamente com a China e a Índia, transformou-se em uma das novas locomotivas a puxar o crescimento econômico global. Evidentemente, isso não resultou de simples mágica, mas da alteração profunda nas opções de políticas econômicas e sociais desde o primeiro mandato do governo Lula. O corte gradual na taxa de juros, com suave recomposição da carga tributária, ocorreu simultaneamente à difusão dos investimentos e do gasto público, com elevação real do poder aquisitivo do salário mínimo e a ampliação da rede de proteção social. Mesmo durante a crise global do capitalismo, em 2008, o Brasil seguiu reduzindo a pobreza e a desigualdade de renda, a ponto de oferecer até 2015 o horizonte de superação da miséria e do reposicionamento da economia nacional entre as cinco mais importantes do mundo. É nesse contexto que a participação do rendimento do trabalho voltou a recuperar o terreno perdido frente à renda do conjunto dos proprietários. O quadro atual é de escassez de mão de obra qualificada, somente vivido pelo país durante a primeira metade da década de 1970.
Apesar disso, os defensores do neoliberalismo seguem atualmente inflexíveis, com críticas contínuas ao papel do Estado e ao gasto público, bem como à ausência das reformas de segunda geração (privatização do que ficou, como o Banco do Brasil, a Petrobrás, a Eletrobrás, a previdência e assistência social, entre outros). Exemplos disso não faltam e podem ser encontrados recorrentemente na mídia, como no caso dos artigos publicados no jornal Valor Econômico, no dia 13 de junho, e, especialmente, na Folha de S.Paulo, do dia 17 de junho, quando L. C. Mendonça de Barros introduziu uma novidade mágica. Ou seja, a atribuição ao governo FHC – do qual participou ativamente na privatização do setor produtivo estatal – a responsabilidade principal pela construção da nova economia brasileira. Para isso, utilizou-se do argumento central relativo à evolução real da massa de salários para negar a existência de uma “herança maldita” ao governo Lula.
Interessante a resistência dos neoliberais, sobretudo em argumentos como os adotados por Mendonça de Barros, que considera o comportamento da remuneração do trabalho desconectado da evolução da renda dos proprietários no Brasil. Destaca-se que a estabilidade monetária obtida nos governos Itamar/FHC não recompôs a distribuição entre lucros e salários, mantendo-a aberta à sangria dos juros altos e do elevado desemprego. Somente a ruptura com as políticas de corte neoliberal durante o governo Lula permitiu que a participação do rendimento do trabalho na renda nacional passasse a crescer continuamente, ultrapassando o peso relativo da renda somada dos proprietários e mista ao final da década de 2000.
Entre 1990 e 1996, por exemplo, a participação do rendimento do trabalho na renda nacional diminuiu 15,4%, com sua leve e não sustentável recuperação de 4,9% entre 1996 e 2001. De 2001 a 2004 houve nova queda de 2,1% no peso relativo do rendimento do trabalho na renda nacional, para, a partir de então, registrar a tendência de elevação dos salários acima da renda dos proprietários, cuja estimativa de aumento acumulado seria de 10,3% até 2010. Neste ano, em especial, o peso relativo do total da remuneração dos trabalhadores na renda nacional teria ultrapassado o conjunto das demais rendas pela primeira vez desde a ascensão das políticas neoliberais. Ou seja, quase 20 anos depois.
A resistência dos neoliberais segue inviabilizada pela verdade dos fatos. Seus argumentos procuram menosprezar o sucesso das políticas econômicas e sociais atuais, quando, na realidade, nada apresentam de conexão com a regressão socioeconômica da década de 1990. Apenas a ilustração referente à evolução da distribuição funcional da renda nacional permite constatar o sucesso do Brasil pós-neoliberal.

sábado, 20 de agosto de 2011

Dia Internacional da Fotografia: Iana Soares




A música, essa não-linguagem. Inefável seu enquadramento, indizível sua luz. A fotografia, essa pura melodia, a desconstruir e reinventar a atávica harmonia do olhar. Partitura do tempo: canto e contracanto de espaços e silêncios. Novo andamento, novo pulso – uma proposta de estar. A voz interior que ressoa em escalas imemoriais, o foco no bendito e na saudade. É só escutar. Outras melodias há para o ser humano. Para além do sofrimento e da melancolia imediatas, outras melodias. Para além do alheio e do estranhamento, outras sinfonias. Outros silêncios. Há o olhar piedoso de Cristo, não mais piedoso que o da senhora em seu reflexo, quase um indulto à nossa pressa, ao nosso açodamento. Um larghissimo que só sabe reger quem sabe das coisas do tempo, quem já se enredou em suas veredas. Sertão ou mar, lugar não se define aqui; nem define perspectiva. É o tempo. Um concerto de Brahms não nos fala mais do que aquele olhar cerrado, a contemplar sons e memórias. Escutemos, pois, a pausa quase insuportável: imagens e sonatas. O resto é (nosso) ruído.

Texto e imagens publicados no jornal O POVO, caderno Vida & Arte em homenagem ao Dia Internacional da Fotografia. As fotos são de Iana Soares

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Goran Bregovic

Goran Bregovic e a genial trilha sonora do igualmente genial Underground, uma das obras-primas de Kusturica. Cantemos: Iô-Iô, Iô-Iô... Ou em bom sérvio: "Joj, Joj"




Chico explica a crise

Se você não consegue entender direito a natureza da crise econômica mundial, que fez os EUA beijarem a lona, nem aguenta mais a Miriam Leitão defendendo a rapinagem dos malandros engravatados do mercado financeiro, segue um rápido "Entenda o caso", escrito há mais de trinta anos por Chico Buarque, esse sim um bom malandro.



O malandro/Na dureza
Senta à mesa/Do café
Bebe um gole/De cachaça
Acha graça/E dá no pé
O garçom/No prejuízo
Sem sorriso/Sem freguês
De passagem/Pela caixa
Dá uma baixa/No português
O galego/Acha estranho
Que o seu ganho/Tá um horror
Pega o lápis/Soma os canos
Passa os danos/Pro distribuidor
Mas o frete/Vê que ao todo
Há engodo/Nos papéis
E pra cima/Do alambique
Dá um trambique/De cem mil réis
O usineiro/Nessa luta
Grita(ponte que partiu)
Não é idiota/Trunca a nota
Lesa o Banco/Do Brasil
Nosso banco/Tá cotado
'Tá cotado
No mercado/Exterior
Então taxa/A cachaça
A um preço/Assutador
Mas os ianques/Com seus tanques
Têm bem mais o/Que fazer
E proíbem/Os soldados
Aliados/De beber
A cachaça/Tá parada
Rejeitada/No barril
O alambique/Tem chilique
Contra o Banco/Do Brasil
O usineiro/Faz barulho
Com orgulho/De produtor
Mas a sua/Raiva cega
Descarrega/No carregador
Este chega/Pro galego
Nega arrego/Cobra mais
A cachaça/Tá de graça
Mas o frete/Como é que faz?
O galego/Tá apertado
Pro seu lado/Não tá bom
Então deixa/Congelada
A mesada/Do garçom
O garçom vê/Um malandro
Sai gritando/Pega ladrão
E o malandro/Autuado
É julgado e condenado culpado
Pela situação

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Os Otavinhos odeiam o Brasil


Abaixo, texto de Emir Sader publicado originalmente na Carta Maior.

Os otavinhos são personagens típicos do neoliberalismo. Precisam do desencanto da esquerda, para tentar impor a ideia do tango Cambalache: Nada é melhor tudo é igual.
Os otavinhos são jovens de idade, mas envelhecem rapidamente. Passam do ceticismo – todo projeto de transformação deu errado, tudo é ruim, todo tempo passado foi melhor, a política é por natureza corrupta – ao cinismo –quanto menos Estado, melhor, quanto mais mercado, melhor.
São tucanos, seu ídolo é o FHC, seu sonho era fazer chegar o Serra – a quem não respeitam, mas que lhes seria muito funcional – à presidência. Vivem agora a ressaca de outra derrota, em barzinhos da Vila Madalena.
Tem ódio ao povo e a tudo o que cheira povo – popular, sindicatos, Lula, trabalhadores, PT, MST, CUT, esquerda, samba, carnaval.
Se consideram a elite iluminada de um país que não os compreende. Os otavinhos são medíocres e ignorantes, mas se consideram gênios. Uns otavinhos acham isso de si e dos outros otavinhos.
Só leem banalidades – Veja, Caras, etc. -, mas citam muito. Tem inveja dos intelectuais, da vida universitária, do mundo teórico, que sempre tratam de denegrir. Tem sentimento de inferioridade em relação aos intelectuais, que fazem a carreira que eles não conseguiram.
São financiados por bancos da família ou outras entidades afins, para ter jornais, revistas, editoras, fazer cinema, organizar festivais literários elitistas.
Fingem que gostam da França, mas são chegados a Miami.
Ficaram para trás com a internet, então abominam, como conservadores, reacionários idosos que é sua cabeça.
Se reúnem para reclamar do mundo e da sua decadência precoce.
Os otavinhos não tem caráter e por isso se dedicam a tentar denegrir a reputações dos que mantem valores e coerência, para tentar demonstrar que todo mundo é sem caráter, como eles.
Os otavinhos assumem o movimento de 1932, acham que São Paulo é a “locomotiva da nação”, que é uma ilha de civilização cercada de bárbaros por todos os lados. Os otavinhos detestam o Brasil, odeiam o Rio, a Bahia, o Nordeste. Odeiam o povo de São Paulo, querem se apropriar de São Paulo com seu espírito de elite.
Os otavinhos moram ou ambicionam morar nos Jardins e acham que o Brasil seria civilizado quando tudo fosse como nos Jardins.
Os otavinhos nunca leram FHC, não entendem nada do que ele fala, mas o consideram o maior intelectual brasileiro.
Os otavinhos são órfãos da guerra fria, da ditadura e do FHC. Andam olhando pra baixo, tristes, depressivos, infelizes.
Os otavinhos compram todas as revistas culturais, colocam no banco detrás do carro e não lêem nenhuma. Lêem a Veja e Caras.
Os otavinhos acham que a ditadura foi um mal momento, uma ditabanda.
Os otavinhos são deprimidos, depressivos, derrotados, desmoralizados, rancoroso, escrevem com o fígado. Os otavinhos têm úlcera na alma.
Os otavinhos odeiam o Brasil, mas pretendem falar em nome do Brasil, para denegri-lo, promover a baixa estima. Os otavinhos pertencem ao passado, mas insistem em sobreviver.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Amanda e o prêmio PNBE

Abaixo, a íntegra da carta com a justificativa da professora Amanda Gurgel em não receber o Prêmio do Pensamento Nacional de Bases Empresariais: 
Natal, 02 de julho de 2011
Prezado júri do 19º Prêmio PNBE,
Recebi comunicado notificando que este júri decidiu conferir-me o prêmio de 2011 na categoria Educador de Valor, “pela relevante posição a favor da dignidade humana e o amor a educação”. A premiação é importante reconhecimento do movimento reivindicativo dos professores, de seu papel central no processo educativo e na vida de nosso país. A dramática situação na qual se encontra hoje a escola brasileira tem acarretado uma inédita desvalorização do trabalho docente. Os salários aviltantes, as péssimas condições de trabalho, as absurdas exigências por parte das secretarias e do Ministério da Educação fazem com que seja cada vez maior o número de professores talentosos que após um curto e angustiante período de exercício da docência exonera-se em busca de melhores condições de vida e trabalho.
Embora exista desde 1994 esta é a primeira vez que esse prêmio é destinado a uma professora comprometida com o movimento reivindicativo de sua categoria. Evidenciando suas prioridades, esse mesmo prêmio foi antes de mim destinado à Fundação Bradesco, à Fundação Victor Civita (editora Abril), ao Canal Futura (mantido pela Rede Globo) e a empresários da educação. Em categorias diferentes também foram agraciadas com ele corporações como Banco Itaú, Embraer, Natura Cosméticos, McDonald’s, Brasil Telecon e Casas Bahia, bem como a políticos tradicionais como Fernando Henrique Cardoso, Pedro Simon, Gabriel Chalita e Marina Silva.
A minha luta é muito diferente dessas instituições, empresas e personalidades. Minha luta é igual a de milhares de professores da rede pública. É um combate pelo ensino público, gratuito e de qualidade, pela valorização do trabalho docente e para que 10% do Produto Interno Bruto seja destinado imediatamente para a educação. Os pressupostos dessa luta são diametralmente diferentes daqueles que norteiam o PNBE. Entidade empresarial fundada no final da década de 1980, esta manteve sempre seu compromisso com a economia de mercado. Assim como o movimento dos professores sou contrária à mercantilização do ensino e ao modelo empreendedorista defendido pelo PNBE. A educação não é uma mercadoria, mas um direito inalienável de todo ser humano. Ela não é uma atividade que possa ser gerenciada por meio de um modelo empresarial, mas um bem público que deve ser administrado de modo eficiente e sem perder de vista sua finalidade.
Oponho-me à privatização da educação, às parcerias empresa-escola e às chamadas “organizações da sociedade civil de interesse público” (Oscips), utilizadas para desobrigar o Estado de seu dever para com o ensino público. Defendo que 10% do PIB seja destinado exclusivamente para instituições educacionais estatais e gratuitas. Não quero que nenhum centavo seja dirigido para organizações que se autodenominam amigas ou parceiras da escola, mas que encaram estas apenas como uma oportunidade de marketing ou, simplesmente, de negócios e desoneração fiscal.
Por essa razão, não posso aceitar esse Prêmio. Aceitá-lo significaria renunciar a tudo por que tenho lutado desde 2001, quando ingressei em uma Universidade pública, que era gradativamente privatizada, muito embora somente dez anos depois, por força da internet, a minha voz tenha sido ouvida, ecoando a voz de milhões de trabalhadores e estudantes do Brasil inteiro que hoje compartilham comigo suas angústias históricas. Prefiro, então, recusá-lo e ficar com meus ideais, ao lado de meus companheiros e longe dos empresários da educação.
Saudações,
Professora Amanda Gurgel

domingo, 3 de julho de 2011

Poemetes araújos - XVI


O nome dela.
Nome e sobrenome.
Fibra!
Mãe da minha filha,
ela: filha, mãe, mulher
e amor.
É bela e linda e bela
do começo ao fim,
Verbo e advérbio.
Adjetivo não lhe supõe,
posto que sua luz
é substantiva.
Traço de ternura e humanidade.
O que poderíamos ser.
Não fomos.
No altar do que virá, ficarei eu:
a insegurança e o medo.
Se não fomos, ainda ela
soa o melhor
concerto de Brahms,
o melhor solo de Coltrane,
o melhor samba de
Paulinho,
a melhor voz de Roberto
Ribeiro, meu herói.
Ela, heroína.
Tempos diferentes os nossos:
Problema meu, que
hei de me agarrar com toda poesia
possível para dar conta
do sorriso dela.
Não deu a gente.
Pena.
Mas sempre, ela, o farol.
Fartura de ser:
Gente.
Eu, ateu.
Ela, sobre patins.
Irradiando esperanças para algo que venha.
Sentido que venha.
Verbo que venha.
: e que tem Luisa.
Espelho.
E luz!
Dela.

Obrigado: por tudo.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Tony Superstar

O quinteto "Superstar" do mago Tony Williams. Joe Henderson (sax), Freddie Hubbard (trompete), Ron Carter (baixo) e Kenny Barron (piano). Classe e virtuose!

quinta-feira, 9 de junho de 2011

A invenção do sagrado

Júlia Miranda: religiosidade é uma infinidade de relações sentimentais com objetos
bem terrenos (foto de Deyisson  Teixeira)

Entrevista publicada no caderno III da série Santificados do jornal O POVO. A íntegra do caderno pode ser lida aqui.

Antes da religião, a religiosidade. Esta podendo existir sem aquela. Nunca o contrário. E antes da religiosidade, o sofrimento, catalisador da crença na felicidade eterna. Na vereda trilhada pelo cristianismo no Nordeste, há pouco sacerdote para tanto desejo de salvação. Os santos populares seriam a medida dessa dessemelhança, desse distanciamento entre o nordestino e o catolicismo oficial. “A gente simples do Nordeste não resiste ao catolicismo oficial, recusando-o e a seus ‘santos oficiais’. Ao contrário, ela o aceita e respeita, mas ao seu modo.
Acrescenta, permite-se transgressões e faz usos particulares”, explica Júlia Miranda (foto), professora titular do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará e coordenadora do Núcleo de Estudos de Religião, Cultura e Política da UFC.
Em 1998, Júlia acompanhou no Piauí o caso do jornalista Donizetti Adauto, candidato a deputado federal assassinado a poucos dias das eleições. Por seu carisma entre a população mais pobre do Estado, Adauto galvanizou o imaginário religioso dos piauienses num movimento que deixou a pesquisadora ao mesmo tempo fascinada e surpresa. “O local onde ocorreu o atentado, à margem de uma das principais avenidas de Teresina, transforma-se em ponto de”, conta.
O novo mártir era, portanto, alguém que estava próximo fisicamente dos fieis, que por sua vez puderam ver e conviver com ele. Algo bem diferente dos “santos oficiais”, separados do povo por um distanciamento geográfico e histórico que forçavam o imaginário dos devotos a um exercício de abstração. “Quase nenhuma identificação além das supostas qualidades apresentadas pela Igreja (geralmente coragem, sofrimento, bondade)”, explica Júlia, que, por e-mail, concedeu a seguinte entrevista.

O POVOQue leitura a senhora faz dessa busca pelo sagrado por parte do homem comum; dessa invenção espontânea do sagrado, num processo alheio ao cânone “oficial” e “institucionalizado” do Vaticano?
Júlia Miranda - O Nordeste tem uma história muito particular no que concerne aos desenvolvimentos históricos do cristianismo, principalmente do catolicismo, se comparada a outras regiões do país. Aqui, sempre foi muito grande a liberdade dos leigos religiosos, antes e depois da romanização levada a efeito pela Igreja Católica depois da separação oficial entre Igreja e Estado no País. O número de sacerdotes sempre esteve muito aquém das necessidades de dispensa dos bens de salvação a um povo que vê religiosamente o mundo. No interior nordestino, os leigos sempre “casaram e batizaram” conforme a expressão já consagrada pelo uso. Podemos acrescentar que canonizaram também. E o fazem cada vez mais.

OP - O Ceará se revela um terreno fértil para esse tipo de “santificação” pelas dificuldades econômicas e sociais experimentadas pela maioria de sua população? A carência estaria no íntimo dos crédulos (para recorrer a Schopenhauer)?
Júlia – (Georg) Simmel diz que a religiosidade precede a religião e o que está na origem da religiosidade é o sentimento de piedade, ou seja, uma disposição para amar, não direcionada a um indivíduo, sequer necessariamente a um deus. Esta concepção desvincula o sentimento religioso de qualquer ligação exclusiva aos objetos transcendentes; ele é uma infinidade de relações sentimentais com objetos bem terrenos; homens ou coisas, que podemos designar de religiosas (a criança, o patriota, o subalterno, o soldado, por exemplo). Logo, pode haver religiosidade sem religião, mas não o contrário. As religiões – como é consenso entre os cientistas sociais – estão caracterizadas, principalmente, pelas instituições que as representam. Penso que a combinação dos elementos de natureza, social, econômica e política dão historicamente lugar a manifestações variadas dessa piedade segundo culturas e povos.

OP - O que o Vaticano tem a ganhar e o que tem a perder com esse tipo de santidade popular?
Júlia - O nordestino é religioso porque ergue templos, cultua santos “oficiais” e cria outros tantos, segue rituais tradicionais, inventa novos ritos e adere aos sacramentos, ou tudo isso resulta de alguma disposição particular cuja origem promove a reunião da “piedade” com o cotidiano vivido através das práticas de dominação disfarçadas de compadrio e proteção? Parece que estamos aqui diante de uma aproximação particular de piedade e religião que implica justamente nesse seguimento da Igreja Católica e de seus preceitos ao mesmo tempo em que se permite uma extrema liberdade de recomposição de elementos.

OP - Os “santos” relatados por nossa reportagem emergem no imaginário popular independente da chancela do Vaticano. De que maneira eles expressam um sentimento de resistência e/ou de transgressão a esse mesmo cânone oficial da Igreja?
Júlia - A canonização popular não é resistência. Transgressão sim, pois implica um modo de “apropriação do dado” conforme as condições sociais daqueles que a fazem, obedecendo sua visão do mundo e da transcendência, seguindo-lhes o modo de sentir e de expressar sentimentos.

OP - Santificações como a de Antonio Conselheiro e José Lourenço, por exemplo, tiveram como pano de fundo atos de profundo sentido político. Em que medida a senhora acredita que o apelo ao sagrado é também um gesto de resistência política?
Júlia - Hoje mais do que nunca, as canonizações deixam a nu sua dimensão política latu e strictu sensu. Será por acaso que a Igreja Católica faz “vista grossa” a essas canonizações populares? Será igualmente coincidência o fato da canonização de José Maria Escrivá de Balaguer, o fundador da Opus Dei, e da quase concluída canonização do Papa João Paulo II terem seguido tempo recorde? É bom lembrar a história de Dom Oscar Romero, arcebispo de El Salvador que, nos anos 70, afirmava que a missão da Igreja é identificar-se com os pobres e é assim que ela encontra sua salvação. Próximo do cristianismo de libertação latinoamericano e solidário das lutas do povo salvadorenho, ele foi morto na igreja, quando celebrava a missa. O pedido para sua canonização está tramitando desde 1994. Fontes do Vaticano dizem que é preciso cuidado, pois há que ter certeza se o seu martírio foi religioso ou político. Você me pergunta se o apelo ao sagrado é também um gesto de resistência política. Inúmeros episódios analisados, mesmo por intelectuais marxistas, mostraram, como faz Michael Löwy sobre a guerra dos camponeses liderada por Munzer na Alemanha do século XVI e quando se refere à dimensão política do MST, que a religião pode ser uma linguagem política de resistência sim. O cristianismo como o islamismo – não aquele fundamentalista e praticante da violência, mas aquele da rejeição à xenofobia “ocidental” de certos governos europeus, por exemplo – têm na religião um estímulo à resistência. Isso é o século XXI. São novas linguagens e práticas políticas do religioso como fenômeno. Se formos ao sertão nordestino, os anos 70 são prenhes de episódios exemplares dessa resistência que fala a linguagem religiosa, como as romarias da terra, por exemplo. Os “santos do povo” não me parecem fruto de uma simples prática de resistência. Até porque a gente simples do Nordeste não resiste ao catolicismo oficial, recusando-o e a seus “santos oficiais”. Ao contrário, ela o aceita e respeita, mas ao seu modo. O que isso quer dizer? Acrescenta, permite-se transgressões e faz usos particulares. Seria no mínimo uma resistência que merece análise para não ser objeto de generalizações simplórias. Prefiro falar de apropriação. Mesmo porque resistência tem entre nós uma conotação política vinculada à luta dos oprimidos e implica conhecimento das causas e consequências das situações de dominação e de sua recusa, o que não é o caso aqui. Casos como o do padre Cícero parecem apontar para uma ação de afirmação de direitos. O direito de participar da decisão sobre quem deve ser santo.

OP - Todos os santos relatados em nossa reportagem são pessoas que experimentaram situações extremas de dor e sofrimento. Esse seria um elemento obrigatório na construção da “santidade” popular?
Júlia - A fé barroca é a fé do sofrimento ostensivo. Fé que oferece um testemunho público. O imaginário fértil do catolicismo barroco, com sua ênfase temática sobre a batalha entre o bem e o mal ou entre deuses e demônios; sobre o sacrifício e o sofrimento, é permanentemente reforçado pelas condições de vida da gente nordestina. A salvação da alma torna-se central nesse cotidiano inóspito, do qual não há como fugir, mas que pode ser recompensado com a felicidade e a paz eternas. A busca pela boa morte torna-se preocupação permanente para os fiéis. É um catolicismo de dor e de paixão, cujos imaginários sócio-religiosos se afinam com uma exuberante imagética (de formas e cores). Para o católico dos sertões nordestinos em particular, se o sofrimento é garantia de felicidade eterna ele deve ser reverenciado. E aquele que muito sofre, que morre sofrendo, merece homenagem, pois foi purificado pelo sofrimento e pode mediar a relação dos fiéis com deus, intercedendo por eles. Em contrapartida, os fiéis o cultuam, elevando esses “santos do povo” à mesma condição dos “santos oficiais”, milagrosos, mas distantes culturalmente. Fisicamente mesmo, pois dos “santos do povo” se sabe as histórias, convive-se com pessoas que os conheceram. Para a gente simples pensar os “santos oficiais” é um exercício de abstração. Quase nenhuma identificação além das supostas qualidades apresentadas pela Igreja (geralmente coragem, sofrimento, bondade). Compreende-se que tenham necessidade das imagens e que lhes deem um tratamento “personalizado”. As imagens possibilitam a proximidade. Mas, a Congregação para a Causa dos Santos, responsável pelo recebimento, análise e encaminhamento dos processos de canonização especifica que o amor à fé católica deve ser o motivo que determina o sofrimento do candidato a santo. Ele deve ter seu sofrimento associado à defesa e à pertença a essa fé. O processo de canonização, que vai da atribuição do status de servo de deus até o de santo, passando pelo de venerável e o de beato, costumava ser bem demorado. Curiosamente, durante o papado de João Paulo II, novas diretrizes agilizaram os procedimentos e esse papa fez mais canonizações do que a soma de seus antecessores. Roma precisa de santos. Eles e seus cultos é que garantem um elemento particularmente importante para a sobrevivência da Igreja Católica, ou seja, para sua presença no espaço público, sua visibilidade e reconhecimento, através de algo que só ela detém: os milagres. E os milagres fazem sair do cotidiano de sofrimento, do ordinário da vida. Provam o reconhecimento e a proteção de Deus mediados pela intercessão daqueles que a Igreja ou o povo elegeram.

OP - Nessa relação entre os devotos e os santos populares, fotos, altares, estátuas, etc, configuram-se como elementos mediadores da devoção. De que forma essas imagens fortalecem e alimentam esses mitos?
Júlia - O trabalho de catequese e as atividades pastorais tiveram sempre presente a advertência feita pelo papa Gregório, O Grande, de que “a imagem é a escritura dos iletrados”. Assim, no Brasil, a pobreza da pintura clássica ou erudita teve como contrapartida, o fato de, desde cedo, a religiosidade popular, ter-se tornado fértil terreno para a prática da representação iconográfica, principalmente através da estatuária e dos santeiros, como lembra José de Souza Martins. Os imaginários da fé cristã são indissociáveis das representações dos santos, nas pinturas e imagens esculturas de todo tipo. A arte barroca, que cedo marca a religiosidade popular, acrescenta às imagens o estilo teatral, como parte da mensagem.

OP - Alguma história de “santificação popular” e/ou “santidade popular” marcou sua vida?
Júlia - Em 1998, durante a campanha eleitoral em que o então governador Mão Santa, do Piauí, buscava a reeleição, tive a oportunidade de acompanhar o movimento do imaginário religioso – ou imaginário piedoso – dos nordestinos. Deixou-me fascinada e surpresa. Assim começam as mistificações que, no “processo popular de construção de santos”, estão na origem dessas canonizações. A poucos dias das eleições, o jornalista e candidato a deputado federal pelo PPS, Donizetti Adauto, é assassinado, supostamente a mando de seu companheiro de dobradinha. Donizetti, um jovem paranaense queridíssimo pelos segmentos mais pobres do estado e, sobretudo, da capital, trabalhava para o Grupo Meio Norte, pertencente ao adversário de Mão Santa, embora integrasse a coligação do governador. Sua prática desafiava os poderosos do estado segundo se diz. Enquanto ambos os grupos políticos tentam tirar proveito do fato, incriminando-se mutuamente, a população beatifica Donizetti Adauto. O local onde ocorreu o atentado, à margem de uma das principais avenidas de Teresina, transforma-se em ponto de romaria para onde acorrem populares, dia e noite, primeiro para prestar homenagem e depois, pouco a pouco, para pedir graças e pagar promessas. Os milagres, conforme ouvi, multiplicavam-se. E com eles os cartazes com poesias e declarações de saudade, as fotos, fitas, flores, velas e garrafas d’água. O Grupo Meio Norte manda finalmente erigir um monumento com o busto do jornalista por quem choram os segmentos populares que viam nele o defensor de seus direitos. Embora eu não tenha lá voltado nos últimos anos, penso que o processo de canonização não chegou a termo e deixo aos leitores a tarefa de especular sobre os elementos explicativos.