quinta-feira, 9 de junho de 2011

A invenção do sagrado

Júlia Miranda: religiosidade é uma infinidade de relações sentimentais com objetos
bem terrenos (foto de Deyisson  Teixeira)

Entrevista publicada no caderno III da série Santificados do jornal O POVO. A íntegra do caderno pode ser lida aqui.

Antes da religião, a religiosidade. Esta podendo existir sem aquela. Nunca o contrário. E antes da religiosidade, o sofrimento, catalisador da crença na felicidade eterna. Na vereda trilhada pelo cristianismo no Nordeste, há pouco sacerdote para tanto desejo de salvação. Os santos populares seriam a medida dessa dessemelhança, desse distanciamento entre o nordestino e o catolicismo oficial. “A gente simples do Nordeste não resiste ao catolicismo oficial, recusando-o e a seus ‘santos oficiais’. Ao contrário, ela o aceita e respeita, mas ao seu modo.
Acrescenta, permite-se transgressões e faz usos particulares”, explica Júlia Miranda (foto), professora titular do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará e coordenadora do Núcleo de Estudos de Religião, Cultura e Política da UFC.
Em 1998, Júlia acompanhou no Piauí o caso do jornalista Donizetti Adauto, candidato a deputado federal assassinado a poucos dias das eleições. Por seu carisma entre a população mais pobre do Estado, Adauto galvanizou o imaginário religioso dos piauienses num movimento que deixou a pesquisadora ao mesmo tempo fascinada e surpresa. “O local onde ocorreu o atentado, à margem de uma das principais avenidas de Teresina, transforma-se em ponto de”, conta.
O novo mártir era, portanto, alguém que estava próximo fisicamente dos fieis, que por sua vez puderam ver e conviver com ele. Algo bem diferente dos “santos oficiais”, separados do povo por um distanciamento geográfico e histórico que forçavam o imaginário dos devotos a um exercício de abstração. “Quase nenhuma identificação além das supostas qualidades apresentadas pela Igreja (geralmente coragem, sofrimento, bondade)”, explica Júlia, que, por e-mail, concedeu a seguinte entrevista.

O POVOQue leitura a senhora faz dessa busca pelo sagrado por parte do homem comum; dessa invenção espontânea do sagrado, num processo alheio ao cânone “oficial” e “institucionalizado” do Vaticano?
Júlia Miranda - O Nordeste tem uma história muito particular no que concerne aos desenvolvimentos históricos do cristianismo, principalmente do catolicismo, se comparada a outras regiões do país. Aqui, sempre foi muito grande a liberdade dos leigos religiosos, antes e depois da romanização levada a efeito pela Igreja Católica depois da separação oficial entre Igreja e Estado no País. O número de sacerdotes sempre esteve muito aquém das necessidades de dispensa dos bens de salvação a um povo que vê religiosamente o mundo. No interior nordestino, os leigos sempre “casaram e batizaram” conforme a expressão já consagrada pelo uso. Podemos acrescentar que canonizaram também. E o fazem cada vez mais.

OP - O Ceará se revela um terreno fértil para esse tipo de “santificação” pelas dificuldades econômicas e sociais experimentadas pela maioria de sua população? A carência estaria no íntimo dos crédulos (para recorrer a Schopenhauer)?
Júlia – (Georg) Simmel diz que a religiosidade precede a religião e o que está na origem da religiosidade é o sentimento de piedade, ou seja, uma disposição para amar, não direcionada a um indivíduo, sequer necessariamente a um deus. Esta concepção desvincula o sentimento religioso de qualquer ligação exclusiva aos objetos transcendentes; ele é uma infinidade de relações sentimentais com objetos bem terrenos; homens ou coisas, que podemos designar de religiosas (a criança, o patriota, o subalterno, o soldado, por exemplo). Logo, pode haver religiosidade sem religião, mas não o contrário. As religiões – como é consenso entre os cientistas sociais – estão caracterizadas, principalmente, pelas instituições que as representam. Penso que a combinação dos elementos de natureza, social, econômica e política dão historicamente lugar a manifestações variadas dessa piedade segundo culturas e povos.

OP - O que o Vaticano tem a ganhar e o que tem a perder com esse tipo de santidade popular?
Júlia - O nordestino é religioso porque ergue templos, cultua santos “oficiais” e cria outros tantos, segue rituais tradicionais, inventa novos ritos e adere aos sacramentos, ou tudo isso resulta de alguma disposição particular cuja origem promove a reunião da “piedade” com o cotidiano vivido através das práticas de dominação disfarçadas de compadrio e proteção? Parece que estamos aqui diante de uma aproximação particular de piedade e religião que implica justamente nesse seguimento da Igreja Católica e de seus preceitos ao mesmo tempo em que se permite uma extrema liberdade de recomposição de elementos.

OP - Os “santos” relatados por nossa reportagem emergem no imaginário popular independente da chancela do Vaticano. De que maneira eles expressam um sentimento de resistência e/ou de transgressão a esse mesmo cânone oficial da Igreja?
Júlia - A canonização popular não é resistência. Transgressão sim, pois implica um modo de “apropriação do dado” conforme as condições sociais daqueles que a fazem, obedecendo sua visão do mundo e da transcendência, seguindo-lhes o modo de sentir e de expressar sentimentos.

OP - Santificações como a de Antonio Conselheiro e José Lourenço, por exemplo, tiveram como pano de fundo atos de profundo sentido político. Em que medida a senhora acredita que o apelo ao sagrado é também um gesto de resistência política?
Júlia - Hoje mais do que nunca, as canonizações deixam a nu sua dimensão política latu e strictu sensu. Será por acaso que a Igreja Católica faz “vista grossa” a essas canonizações populares? Será igualmente coincidência o fato da canonização de José Maria Escrivá de Balaguer, o fundador da Opus Dei, e da quase concluída canonização do Papa João Paulo II terem seguido tempo recorde? É bom lembrar a história de Dom Oscar Romero, arcebispo de El Salvador que, nos anos 70, afirmava que a missão da Igreja é identificar-se com os pobres e é assim que ela encontra sua salvação. Próximo do cristianismo de libertação latinoamericano e solidário das lutas do povo salvadorenho, ele foi morto na igreja, quando celebrava a missa. O pedido para sua canonização está tramitando desde 1994. Fontes do Vaticano dizem que é preciso cuidado, pois há que ter certeza se o seu martírio foi religioso ou político. Você me pergunta se o apelo ao sagrado é também um gesto de resistência política. Inúmeros episódios analisados, mesmo por intelectuais marxistas, mostraram, como faz Michael Löwy sobre a guerra dos camponeses liderada por Munzer na Alemanha do século XVI e quando se refere à dimensão política do MST, que a religião pode ser uma linguagem política de resistência sim. O cristianismo como o islamismo – não aquele fundamentalista e praticante da violência, mas aquele da rejeição à xenofobia “ocidental” de certos governos europeus, por exemplo – têm na religião um estímulo à resistência. Isso é o século XXI. São novas linguagens e práticas políticas do religioso como fenômeno. Se formos ao sertão nordestino, os anos 70 são prenhes de episódios exemplares dessa resistência que fala a linguagem religiosa, como as romarias da terra, por exemplo. Os “santos do povo” não me parecem fruto de uma simples prática de resistência. Até porque a gente simples do Nordeste não resiste ao catolicismo oficial, recusando-o e a seus “santos oficiais”. Ao contrário, ela o aceita e respeita, mas ao seu modo. O que isso quer dizer? Acrescenta, permite-se transgressões e faz usos particulares. Seria no mínimo uma resistência que merece análise para não ser objeto de generalizações simplórias. Prefiro falar de apropriação. Mesmo porque resistência tem entre nós uma conotação política vinculada à luta dos oprimidos e implica conhecimento das causas e consequências das situações de dominação e de sua recusa, o que não é o caso aqui. Casos como o do padre Cícero parecem apontar para uma ação de afirmação de direitos. O direito de participar da decisão sobre quem deve ser santo.

OP - Todos os santos relatados em nossa reportagem são pessoas que experimentaram situações extremas de dor e sofrimento. Esse seria um elemento obrigatório na construção da “santidade” popular?
Júlia - A fé barroca é a fé do sofrimento ostensivo. Fé que oferece um testemunho público. O imaginário fértil do catolicismo barroco, com sua ênfase temática sobre a batalha entre o bem e o mal ou entre deuses e demônios; sobre o sacrifício e o sofrimento, é permanentemente reforçado pelas condições de vida da gente nordestina. A salvação da alma torna-se central nesse cotidiano inóspito, do qual não há como fugir, mas que pode ser recompensado com a felicidade e a paz eternas. A busca pela boa morte torna-se preocupação permanente para os fiéis. É um catolicismo de dor e de paixão, cujos imaginários sócio-religiosos se afinam com uma exuberante imagética (de formas e cores). Para o católico dos sertões nordestinos em particular, se o sofrimento é garantia de felicidade eterna ele deve ser reverenciado. E aquele que muito sofre, que morre sofrendo, merece homenagem, pois foi purificado pelo sofrimento e pode mediar a relação dos fiéis com deus, intercedendo por eles. Em contrapartida, os fiéis o cultuam, elevando esses “santos do povo” à mesma condição dos “santos oficiais”, milagrosos, mas distantes culturalmente. Fisicamente mesmo, pois dos “santos do povo” se sabe as histórias, convive-se com pessoas que os conheceram. Para a gente simples pensar os “santos oficiais” é um exercício de abstração. Quase nenhuma identificação além das supostas qualidades apresentadas pela Igreja (geralmente coragem, sofrimento, bondade). Compreende-se que tenham necessidade das imagens e que lhes deem um tratamento “personalizado”. As imagens possibilitam a proximidade. Mas, a Congregação para a Causa dos Santos, responsável pelo recebimento, análise e encaminhamento dos processos de canonização especifica que o amor à fé católica deve ser o motivo que determina o sofrimento do candidato a santo. Ele deve ter seu sofrimento associado à defesa e à pertença a essa fé. O processo de canonização, que vai da atribuição do status de servo de deus até o de santo, passando pelo de venerável e o de beato, costumava ser bem demorado. Curiosamente, durante o papado de João Paulo II, novas diretrizes agilizaram os procedimentos e esse papa fez mais canonizações do que a soma de seus antecessores. Roma precisa de santos. Eles e seus cultos é que garantem um elemento particularmente importante para a sobrevivência da Igreja Católica, ou seja, para sua presença no espaço público, sua visibilidade e reconhecimento, através de algo que só ela detém: os milagres. E os milagres fazem sair do cotidiano de sofrimento, do ordinário da vida. Provam o reconhecimento e a proteção de Deus mediados pela intercessão daqueles que a Igreja ou o povo elegeram.

OP - Nessa relação entre os devotos e os santos populares, fotos, altares, estátuas, etc, configuram-se como elementos mediadores da devoção. De que forma essas imagens fortalecem e alimentam esses mitos?
Júlia - O trabalho de catequese e as atividades pastorais tiveram sempre presente a advertência feita pelo papa Gregório, O Grande, de que “a imagem é a escritura dos iletrados”. Assim, no Brasil, a pobreza da pintura clássica ou erudita teve como contrapartida, o fato de, desde cedo, a religiosidade popular, ter-se tornado fértil terreno para a prática da representação iconográfica, principalmente através da estatuária e dos santeiros, como lembra José de Souza Martins. Os imaginários da fé cristã são indissociáveis das representações dos santos, nas pinturas e imagens esculturas de todo tipo. A arte barroca, que cedo marca a religiosidade popular, acrescenta às imagens o estilo teatral, como parte da mensagem.

OP - Alguma história de “santificação popular” e/ou “santidade popular” marcou sua vida?
Júlia - Em 1998, durante a campanha eleitoral em que o então governador Mão Santa, do Piauí, buscava a reeleição, tive a oportunidade de acompanhar o movimento do imaginário religioso – ou imaginário piedoso – dos nordestinos. Deixou-me fascinada e surpresa. Assim começam as mistificações que, no “processo popular de construção de santos”, estão na origem dessas canonizações. A poucos dias das eleições, o jornalista e candidato a deputado federal pelo PPS, Donizetti Adauto, é assassinado, supostamente a mando de seu companheiro de dobradinha. Donizetti, um jovem paranaense queridíssimo pelos segmentos mais pobres do estado e, sobretudo, da capital, trabalhava para o Grupo Meio Norte, pertencente ao adversário de Mão Santa, embora integrasse a coligação do governador. Sua prática desafiava os poderosos do estado segundo se diz. Enquanto ambos os grupos políticos tentam tirar proveito do fato, incriminando-se mutuamente, a população beatifica Donizetti Adauto. O local onde ocorreu o atentado, à margem de uma das principais avenidas de Teresina, transforma-se em ponto de romaria para onde acorrem populares, dia e noite, primeiro para prestar homenagem e depois, pouco a pouco, para pedir graças e pagar promessas. Os milagres, conforme ouvi, multiplicavam-se. E com eles os cartazes com poesias e declarações de saudade, as fotos, fitas, flores, velas e garrafas d’água. O Grupo Meio Norte manda finalmente erigir um monumento com o busto do jornalista por quem choram os segmentos populares que viam nele o defensor de seus direitos. Embora eu não tenha lá voltado nos últimos anos, penso que o processo de canonização não chegou a termo e deixo aos leitores a tarefa de especular sobre os elementos explicativos.

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