quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Um raro sabiá marrom


No fim dos anos 60, Alcione era apenas uma cantora do circuito Rio-São Paulo de boates. Até a noite em que Jair Rodrigues lhe viu em ação na Blow Up, tradicional reduto jazzista da pauliceia, e lhe apresentou a Roberto Menescal, que, na época, era diretor artístico da então toda-poderosa Philips. A partir daí, a maranhense de voz encorpada e rara percorreu um obscuro caminho de gravações entre compactos, trilhas de novela e os chamados "paus de sebos", aquelas coletâneas espalhafatosas e de repertório assistemático que eram lançadas anualmente reunindo novos nomes e artistas consagrados do cast dessas empresas. Eis que, em 1975, numa última aposta de fazer a carreira de sua pupila decolar dentro da gravadora, Roberto Menescal bancou a gravação do LP A Voz do Samba e Alcione explodiu com sucessos como "O Surdo" e "Não deixe o samba morrer".
O resto da história todos conhecem. Alcione gravou discos antológicos até a primeira metade dos anos 80, deixou-se seduzir por um repertório de gosto duvidoso e desde então ocupa uma curiosa posição na música brasileira: uma grande cantora que, a despeito de sua técnica e de seu alcance vocal, a crítica especializada (junto com boa parte do público sambista) não suporta ouvir. Mas rebobinando a história até seu princípio, a coletânea O samba raro de Alcione, que a Universal está lançando, coloca na roda justamente aquela série de gravações obscuras (ao lado de algumas sobras de estúdio e registros inéditos) que pavimentaram o início da carreira da Marrom - mas que foram obscurecidas pelo estrelato da fase pós-75.
Entre elas, estão "O sonho acabou", de Gilberto Gil; e "Figa de guiné", do então iniciante Nei Lopes; que formaram o primeiro compacto da cantora, lançado em 1972. Nessas gravações, é possível perceber a fluência de Alcione para além do samba, gênero para o qual a cantora foi "encaminhada" por Roberto Menescal para fazer frente às suas concorrentes das outras casas de gravação. No segundo compacto, lançado no ano seguinte, formado por "Tem dendê" (outra de Nei Lopes) e "Pinta de sabido" (da dupla mangueirense Rubens e Capoeira), também reunidas no CD, Alcione reafirma a nova condição de sambista por excelência. Dessa época, apenas a balada "Planos de papel", de Raul Seixas, gravada para a trilha da novela O Rebu, da TV Globo, foi o ponto fora da curva na imagem da negra bonita, simpática e, portanto, sambista - proposta pela Philips e seu departamento artístico.
Mas como Alcione sabia das coisas, o rótulo do samba nunca lhe pesou nem lhe soou artificial. Fosse o samba sincopado, o samba-canção (o CD traz a bela versão da Marrom para "Linda Flor") ou mesmo o samba de enredo, terreno em que raras vozes femininas se atreveram a entrar. Desse último gênero, o CD traz as versões de Alcione para quatro sambas do carnaval de 1975: "Imagens poéticas de Jorge de Lima", "O mundo fantástico do Uirapuru", "Festa do Círio de Nazaré" e "O segredo das minas do rei Salomão" - ainda hoje, exemplos da melhor produção de samba enredo de todos os tempos.
Entre os registros inéditos, aparece "Sabiá Marrom", do maestro francês Paul Mauriat, que compôs a música em homenagem a Alcione. Sobre a composição, o músico declarou em 1977: "Quando comuniquei à Phonogram minha intenção de gravar um disco só com músicas brasileiras, recebi um monte de discos de diversos artistas para ouvir e selecionar as faixas. Entre todos, os que mais me impressionou foi o de Alcione. Existe alguma coisa em sua voz que me deixou emocionado, uma espécie de véu, e cheguei a pensar que ela fumava. Depois é que vim saber que Alcione não fuma, é uma propriedade natural de sua voz. Além do mais, ela canta o que os franceses esperam ouvir de uma cantora brasileira".
Ao ouvir essas primeiras gravações - que embasariam o padrão de seus primeiros (e ótimos) discos -, pode-se dizer que, mais importante do que os caprichos dos gringos, Marrom já cantou o que os apreciadores do samba e da boa música brasileira esperam de uma cantora brasileira. Hoje, infelizmente, ela virou um pastiche auto-indulgente de si mesma. Pelo resgate da cantora grandiosa que Alcione um dia foi, essa coletânea da Universal é um dos discos mais importantes do ano.
Abaixo, as duas versões de "Sabiá Marrom". A primeira, instrumental. A segunda, na voz de Alcione (com letra de Totonho e Paulinho Rezende).

2 comentários:

Alessandro disse...

Comprei o CD "O samba raro de Alcione" nesta semana. Não conhecia nenhuma das músicas ali cantadas (exceto O Surdo e Sufoco em portugues, jamais em espanhol). Impressionante. Diria que conheci uma nova cantora, com o mesmo nome de uma outra Alcione, que hoje é sinonimo de musica dor de cotovelo e lacrimejante.
Daí eu pergunto: por que a Marrom abandonou aquele estilo tão lindo e contagiante de cantar? Apenas questões comerciais?? Se assim fosse, imagino que já deveria ter retomado o lado "cantora de verdade", já que a industria de discos está decadente.
Ainda terá tempo para Alcione se reencontrar?? Eu acho que sim!! A começar, poderia regravar e colocar num disco a linda "Sabiá Marrom", uma vez que não entrou em nenhum de seus discos oficiais.

Grupo Puro Acaso disse...

Olá,
Achei esse blog enquanto procurava conteúdos sobre a Alcione. Muito legal a postagem!
Abraços,
Grupo Puro Acaso
www.grupopuroacaso.com