terça-feira, 28 de setembro de 2010

Francis e o efêmero da afetação


Paulo Francis, que completaria 80 anos este mês, não morreu devido ao suposto erro médico que confundiu um lento e vigoroso ataque cardíaco com uma bursite. Francis morreu vitimado pela rara e explosiva combinação de inteligência, empáfia, carisma e obtusidade que lhe temperaram a verve. Na discussão sobre jornalismo, sempre fiquei meio cismado com o discurso segundo o qual Diogo Mainardi, Reinaldo Azevedo e quejandos seriam apenas uma cópia menor, imperfeita, menos letrada, de Francis. Este, sim, segundo o tal raciocínio, um exemplo maior de talento, cultura e brilhante mordacidade. Bobagem. Francis foi apenas mais um aríate debochado e despudorado do conservadorismo que sempre segurou as rédeas do jornalismo de massa em nosso país.
Nunca me pareceu que suas (auto-)anunciadas qualidades pudessem servir de exemplo para nada ou ninguém. Seja porque nunca consegui divisar, nele, nada além do cronista racista, leviano, plagiário e fanfarrão; seja porque acredito num jornalismo que se constroi com fatos, confronto dos contrários, entrevistas e muita transpiração. Acredito num ofício que é feito de impressões, mas também de apuração, seres humanos e de rua (não necessariamente no sentido físico, mas a rua como o olhar, como a abertura para a alteridade). Francis foi o contrário disso, foi a personificação de um ofício meio dândi, auto-indulgente e profundamente cínico. Algo mais próximo do teatro e da performance - teatro e performances ruins - do que do jornalismo. A vida real sempre me pareceu mais provocadora do que os trocadilhos emplumados e supostamente "provocadores" de Francis.
Ao arrotar que os diretores da Petrobras mantinham dinheiro no exterior, ele caiu na armadilha que vendia para seus leitores - a confusão entre jornalismo e uma outra coisa que se equilibrava entre a literatura (medíocre), a embriaguez, o ranço conservador e a afetação que costuma ocupar o lugar da falta de argumentos racionais. Sem provas que materializassem seu "furo", atravessou a fronteira que separa o jornalismo real do opinionismo leviano, a vida real do esnobismo novaiorquino. Foi processado e suas coronárias não aguentaram o tranco.
Nelson Hoineff lhe dedicou um bom e belo documentário no ano passado. Soube reconstruir de modo honesto a imagem controversa do jornalista, mas não explorou de modo enfático nenhum flanco mais constrangedor para a memória de seu protagonista. Preferiu focar o carinho dos amigos, onde afinal persiste a única posteridade possível para um doxômano como Francis, escritor frustado que não deixou filhos nem nenhuma realização artística/jornalística de relevo. O efêmero do cotidiano, onde o jornalismo reinventa seu enredo diariamente, segue arrastando seus textos e comentários - todos datados - para o esquecimento. A vida real (e jornalismo real, quem sabe), afinal, é sempre mais forte.

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