terça-feira, 7 de setembro de 2010

Contrapé


Importa-me o sangue: pulsação de sonhos e sentidos. Não me convidem ao chá das cinco, que levarei comigo meu hálito de cachaça, de boemia; meu escarro amarelo recendendo o mau gosto da esperança. Deixo manchas em toalhinhas de mesa e pratas finas, é minha ventura gordurosa que quer impregnar a casa. Lá na frente, não suportarei ter saudades de mim, saudades do que poderia ter sido. O diabo costuma vender o caminho errado na encruzilhada, que alguém percorre em paralelo a si. É isso o diabo, o outro caminho, a curva à esquerda, a contramão de um mesmo. O espelho turvo em que você não consegue se ver, mas que te atormenta o sono servindo de paisagem para o mais assustador dos teus pesadelos: não ter sido! Não há imagem clara nesse espelho, a luz brota por trás, embaçando moldura e emoldurado; mas, como as meninas de Velásquez, você sabe que, no contrário do olhar, ali repousa um modelo, uma cartografia tua, um projeto teu a ser seguido não fosse o diabo. E aí um belo dia, você pára e pronto! Viveu outra vida. A essência virou dissonância e um câncer brotou dentro da tua alma. É isso o diabo: o contrapé de Deus.
Diabo é palavra, apenas. Assim como Deus. Além do horizonte, existe apenas a moral para fazer nossos genes seguirem em frente. É preciso matar Deus e o diabo, mas sem perder a ternura. A evolução só é possível pela poesia, que é o que nos arranca da condição de pedra, de pato, de boi. "Leve um homem e um boi ao matadouro, o que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi". Como o tempo não anda pra trás, malandragem, tu berra e berra e berra... E nenhum anjo torto virá em teu socorro.
Se a poesia está morta, tudo é impossível. Quero ser como o poeta que repousa no campo de batalha, semeando sob o cadáver insepulto da frustração os sonhos mais arrebatadores. Portanto, não me convidem para o almoço em família, que levarei minhas mãos sujas de terra, minhas unhas negras escondendo as sementes mais sujas e inglórias. Em meu banquete, servem-se os amigos, não os castradores. É isso o diabo, a receita do teu avesso, o feijão azedo que vai fermentar em tuas tripas até o dia em que tu cria coragem e se levanta da mesa. Enquanto esse dia não chega, tu vai dormir embalado pelo coro dos contentes. Ao conforto do clichê, prefiro a nota fora da pauta. Quem tem medo do perigo é o diabo. Ou Deus, sei lá.

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