quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Do arco dos velhos


O curso caudaloso - mas impregnado de beleza e alegria - do livro Rabecas do Ceará (Expressão Gráfica/Laboratório de Estudos da Oralidade), do professor e pesquisador Gilmar de Carvalho, convida o leitor a se colocar diante de um trabalho que é, ao mesmo tempo, uma aventura estética e uma experiência intelectual que, no limite, desagua num impasse.
Aventura porque Gilmar - ao lado do fotógrafo Francisco Sousa - se lançou, ao longo de quase três anos, num empreendimento ousado, percorrendo, entre o oco do sertão e a umidade das serras, cerca de 40 municípios e compilando mais de uma centena de interlocutores em seu mapeamento da rabeca e dos rabequeiros no Estado. 
Dessa cartografia musical e antropológica, Gilmar saiu-se com um livro que é verdadeira epopéia sobre a paixão e a intensidade com que os rabequeiros cearenses se dedicam às cordas de seu instrumento. E também sobre os usos, costumes e particularidades que foram cercando, no Ceará, a história de um instrumento cuja origem é milenar - remonta aos instrumentos de cordas tocados por um arco que já eram usados em todas as grandes civilizações da Ásia e da África antes mesmo da produção dos textos bíblicos. 
Em texto publicado na edição digital da revista Raiz, o jornalista Alexandre Bandeira conta que a rabeca teria viajado até a Europa, durante a dominação dos mouros, onde se tornaria bastante apreciada nas mãos dos menestréis medievais. Com o surgimento do violino e seu timbre mais limpo, no entanto, a rabeca foi perdendo a atenção da nobreza e se refugiando nas aldeias distantes dos centros urbanos, virando instrumento preferido da população de menor poder aquisitivo.
“É, além do mais, dos instrumentos típicos dos cegos e pedintes urbanos”, define o livro Instrumentos musicais populares portugueses, de Ernesto de Oliveira e Benjamin Pereira (Ed. Gulbenkian, 2000). “Rabeca é como chamam ao violino os homens do povo no Brasil”, reforça Mário de Andrade no seu Dicionário musical brasileiro. Muitos entusiastas da rabeca, no entanto, refutam essa definição e defendem a autonomia entre os dois instrumentos. De qualquer forma, sem aval erudito ou aristocrático, e mesmo restrita às festas populares e religiosas, o fato foi que a rabeca se espalhou pelo Brasil, adaptando-se à cultura de cada região, do Sul ao Nordeste; e, não raro, cruzando a fronteira do Brasil oficial nas mãos de artistas como Antônio Nóbrega, Mestre Salustiano e o grupo pernambucano Mestre Ambrósio. 
Esse Rabecas do Ceará é o capítulo definitivo a respeito do quinhão cearense dentro da história da rabeca no Brasil. Um capítulo que remonta, segundo Gilmar, não apenas às cordas persas e européias, mas também a um "supreendente e dionisíaco instrumento de aroeira, couro e tripas de carneiro, conhecido como 'nabim', fabricado e tocado em Crateús". Hoje, quase todos os rabequeiros cearenses localizados por Gilmar são velhos. Em geral, a chave de acesso do instrumento às novas gerações de cearenses são programas de iniciação musical (Itapajé), ações de ONGs (Nova Olinda), a experimentação da luteria (Juazeiro do Norte) e a proposta de bandas como Dona Zefinha (Itapipoca). 
"Quase todos (os tocadores de rabeca entrevistados no livro) foram filhos de agricultores e também viviam de suas roças de subsistência, quase sempre na terra dos outros. A música era a possibilidade de fuga desse cotidiano", escreve Gilmar. Outro traço que une todos os rabequeiros do livro - de seu André Venceslau, entrevistado em Saboeiro; ao "lendário" Quincas Firmino, de Quiterianópolis, a quem Gilmar define como a "personificação da ética sertaneja" - é o aprender a tocar "de ouvido". "A música estava na ciência de pressionar as cordas no ponto certo e fazer o arco deslizar com suavidade ou energia. Era preciso mais que isso para se ter música: a 'alma', colocada no bojo da rabeca, aumentando sua capacidade de emissão de som". 
Ao localizar e contar a(s) história(s) de seus protagonistas, o trabalho hercúleo de Gilmar – que também registrou em áudio a arte de seus entrevistados, reunindo as gravaçõs num CD que acompanha o livro - dá visibilidade a uma tradição que já não se renova com a mesma dinâmica e que parecia perdida no tempo, extemporânea, à espera de alguém - quem sabe ele mesmo, Gilmar - que lhe restituísse a contemporaneidade. O livro lança luzes a algo que, soando novo para o leitor, já é velho. Eis o impasse citado no início do texto. Um impasse que foi, durante muito tempo, a própria bússola do trabalho de inúmeros folcloristas no Brasil; mas que, nos termos do livro, é superado pela argúcia do olhar e pela profundidade do trabalho do pesquisador. 
Gilmar, para utilizar uma expressão de Lilian Moritz Schwarcz, não aprisiona a cultura em nome de sua preservação. Pelo contrário, é ciente de que não pode reter a tradição e, portanto, aponta seu trabalho de "resgate", de "preservação" ou de "inventariação" - termos tão caros a folcloristas de outras épocas - para o contexto das dinâmicas da cultura. Postura que é facilitada pela compreensão do significado da palavra "criação" no contexto da tradição popular e pelo interesse renovado (mas ainda tímido) pelo instrumento por parte das novas gerações de músicos e artesãos. 
"Criar é gostar do que se toca. Ou como explicar que um deles (um dos rabequeiros entrevistados) tenha dito que determinada música era sua porque gostava de tocá-la? Saber o gosto do povo e estar atento a um diálogo com a natureza (dialogando com o canto dos pássaros) seriam pressupostos estéticos dessa mesma música de oitiva", escreve Gilmar.  "Eles pareciam congelados diante das novas tendências e a rabeca volta com a retomada da tradição como pressuposto de uma criação contemporânea. Pode ser um pouco tarde para a maioria deles". 
Se ecos dessa pesquisa de Gilmar puderem ser ouvidos em futuros trabalhos de etnomusicologia ou de antropologia, no entanto, o livro pode significar um auspicioso "antes tarde do que nunca" para a rabeca cearense.

Um comentário:

Américo Souza disse...

Recebi um exemplar desse livro faz apenas alguns dias, ônus de estar distante de casa. Ainda não acabei de ler, confesso. Mas do que vi até agora assino embaixo da sua crítica e ouso acrescentar algo mais.
Em sua abordagem Gilmar de Carvalho nos mostra que a permanência no tempo é qualidade não só daquelas obras sociais que, à primeira vista, parecem mais duradouras - as cidades, a arquiterura, as instituições - mas também de atributos humanos mais subjetivos e individuais - as sentimentalidades, as sensibilidades. Todavia, essa permanência precisa de um "suporte" material que a inscreva, de alguma forma, em alguma linha de continuidade que possa ser reconhecida no futuro. Suporte que, no caso em questão se apresenta na forma de rabeca.