terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Luiza Dionísio: uma voz na terceira margem

Um livro fundamental para se entender a conformação da "música brasileira" é O século da canção, de Luiz Tatit (Ateliê Editorial). Nesse ensaio, o musicólogo e compositor paulista constata que a prática musical brasileira do século XX sempre esteve associada à mobilização melódica e rítmica de palavras, frases e pequenas narrativas cotidianas. É como se essa prática só engendrasse um sentido quando as formas sonoras se mesclam às formas linguísticas inaugurando o "gesto cancional". 
Temos música instrumental, claro, mas ela está longe de constituir a praxis decisiva de nossa história musical, é o que defende Tatit. Esse papel decisivo, desde meados do século XIX, fica com o formato "canção". "Tudo ocorre como se as grandes elaborações musicais estivessem constantemente instruindo um modo de dizer que, em última instância, espera por um conteúdo a ser dito", ele propõe. Mas há algo mais. Dependendo do intérprete vocal, esse modo de dizer se completa tanto pelo conteúdo quanto pela força da dicção do cantor ou da cantora em questão. É quando o "gesto cancional" alcança uma terceira margem da história. 
É o caso de Luiza Dionísio, cantora carioca que lança seu primeiro CD, Devoção. Em suas gravações, há algo além desse encontro primevo entre música e letra. Seu canto é um gesto que, embalado por sua voz intensa, percorre uma zona fronteiriça, onde acabam os sentidos musicais e se instala um sentido maior, mais profundo, que remonta a figuras como Clementina de Jesus e Clara Nunes. Uma força atávica que ressoa em regiões recônditas da alma brasileira, que faz dançar signos imemoriais e inefáveis da nossa cultura. 
"Você não pode cantar meu samba assim sem alma/ Tem que ter calma pra poder compreender / Que o samba traz / Um sentimento / Que só com alento irás perceber/ que o samba não é só um momento", ela defende com dolência em "Alma", ótimo samba de Ratinho. 
Dionizio, dionisíaca. Tem "na veia o sangue dos boêmios", como canta em "Velho amigo", um abraço chorão de Paulo César Pinheiro e Luiz Carlos Máximo em Aldir Blanc. Em "Conceição da Praia", outro golaço de Luiz Carlos Máximo, ela renova a certeza na amplidão espiritual de nossa música, com versos como "Hoje ouvi/ Bater os tambores/ Vi o teu nome a velejar// Senti o odor das flores/ Perfumando em cores o mar". E completa: "Joguei ao ar/ Todas as palavras que fazes retornar/ Em gotas nos meus olhos/ Que deixo recair no mar". 
Há ainda a participação da Velha Guarda do Império Serrano e outra dezena de sambas inspirados, tudo transbordando para além da música, para além do canto, para além do som. Um disco que transpira beleza, uma secular beleza brasileira que fez a glória da nossa música, mas que anda um tanto apartada do grande público.
Vida longa, portanto, ao canto de Luiza Dionizio, a maior cantora de quem o Brasil ainda não ouviu falar. Ainda.

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