segunda-feira, 21 de setembro de 2009

O som, o sentido e o free jazz

Já é um tanto repisada a discussão segundo a qual letra de música seria ou não poesia. Em seu ótimo Banalogias (já pontuado por aqui)Francisco Bosco escreve uma análise muito produtiva sobre o tema, segundo a qual tratam-se de duas coisas diferentes - a letra afirmando-se pela dupla articulação entre verbo e música; enquanto o poema guarda a especificidade de sua natureza verbal. Não há, no entanto, ordem hierárquica a separar essas duas expressões do ponto de vista da qualidade de suas realizações estéticas. "O poema está só, a letra está acompanhada", resume o ensaísta. Pois bem, superada essa discussão-clichê, uma outra se revela com maior interesse: e a música? Como elemento que, nesse sentido, estabelece a diferença entre letra musical e poema, ela assumiria, de maneira inconciliável, uma oposição à poesia?
É clássica, por exemplo, a rejeição de João Cabral de Mello Neto à música. O poeta que lidava com as palavras com a mesma crueza e precisão de um médico no trato com o corpo humano simplesmente não gostava de música. Consta que o Hino Nacional e o Hino de Pernambuco são as duas únicas composições que conseguia reconhecer. "Quando quero entender alguma coisa, leio", dizia o poeta, que garantia não ter nenhum ouvido musical. Parte dessa resistência de Cabral à música se explica, segundo o próprio, pelo trauma da imposição da música religiosa em sua infância. Outra parte dessa rejeição, no entanto, se explica pela desconfiança que o poeta nutria pela subjetividade, pela "emoção fácil". E que emoção poderia ser mais fácil que a música, aquela expressão que simplesmente prescindia das palavras para se manifestar? Nada mais difícil para alguém que tinha de ler para entender.
Quando Ornette Coleman (foto acima) - a partir de antecipações feitas por gente como Mingus, Miles Davis e Coltrane - lançou as bases do free jazz e propôs que "tocar jazz significa tocar música, e não apenas o que ela representa", tentou separar em definitivo, no âmbito musical, significante e significado. A idéia era que, à medida que tocasse, o músico se tornasse o próprio compositor, liberado das amarras da tonalidade, das células rítmicas, da melodia e dos arranjos. Não havia sentidos possíveis senão aqueles intrínsecos à composição/execução musical. A música assumia a radicalidade de seus signos. Parecia não ser mais possível operar, no campo musical, aquela "motivação dos signos" a que se referia Mallarmé e que consistia na tarefa primordial dos poetas, qual seja, consertar a relação arbitrária entre os sons das palavras (no caso, das notas musicais) e seus significados.
Música e poesia assumem, nessa radicalidade de João Cabral e do free jazz, por exemplo, uma oposição que só poderia ser abolida no campo da música popular, quando essa motivação de signos era retomada a partir das melodias ou das letras. Essa compreensão, no entanto, vem permeada de tal exagero que é como limitasse a fruição, mesmo da peça mais exuberante de Wayne Shorter, John Cage, Stockhausen e outros, à identificação aleatória de proezas técnicas ou de texturas orquestrais. Mesmo aí há a relação sentimental que o ouvinte estabelece com a música. Mesmo aí há as construções de imagens afetivas ou conceituais que, se não vêm embaladas pela palavra, se não podem ser "ditas", fazem os signos musicais se motivarem, se "consertarem". 

Abaixo, o Sr. Free Jazz, Ornette Coleman, em ação.


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