segunda-feira, 9 de março de 2009

Sevcenko, Morrissey, a rainha e a Ilustrada

Numa época em que o rock ainda transpirava alguma inteligência, apontava para uma transcedência ilusória e acenava, vá lá, com alguma "atitude" para seus ouvintes, gente da pesada escrevia sobre bandas da pesada. Pensei nisso depois de ler um texto do professor Nicolau Sevcenko sobre o então recém-lançado The Queen is Dead, dos Smiths, publicado na Ilustrada, da Folha de São Paulo em junho de 1986. A resenha consta de uma coletânea estimulante (voltarei a ela em outros posts) sobre os 50 anos do suplemento cultural organizada pelo jornalista Marcos Augusto Gonçalves no ano passado. Cheguei tarde à tal coletânea - e por isso ainda nã0 venci suas quase 400 páginas -, mas essa foi uma das questões que me saltaram à vista ao ler fragmentos do trabalho organizado por Gonçalves e colocar em perspectiva o meio século de atuação daquele que é - para o bem e para o mal - um dos mais importantes segundos cadernos do País. 
Sevcenko, hoje um dos mais renomados intelectuais e acadêmicos do País, era dublê de crítico cultural nos anos 80 na Folha, período em que escreveu sobre um conjunto amplo de temas - da história da arte ao rock. Na crítica ao disco dos Silvas britânicos, ele levanta a lebre, resumindo o disco a "um solene epitáfio posto no mito da cultura juvenil, gravado pela voz mais autêntica e sublime que ela produziu". Tudo bem que a voz de Morrissey só é unanimidade mesmo entre os fãs da banda, mas Sevcenko avança em sua crítica colocando uma questão que, essa sim, se fosse uma unanimidade, poderia livrar o rock de uma auto-indulgência que, hoje, o torna mansinho, mansinho. E, por consequência, enfadonho. Diz ele: "Nada mais vergonhoso do que se esconder atrás das ilusões, ser arrogante em nome delas".
O trecho seguinte do texto é sublime. Uma aula de como fazer crítica cultural à qual devia comparecer a média de analfabetos e desinformados que hoje gerencia o jornalismo em certos jornais de Fortaleza. "O 'a rainha está morta, moçada' soa na linguagem do radicalismo juvenil algo assim como o 'Deus está morto' de Nietzsche soou no mundo da filosofia. Não, não é apenas o equivalente pós-76 de 'o sonho acabou' do Lennon pós-68. É muito, muitíssimo mais. Lennon se referia especificamente à contracultura dos anos 1960 e por isso usou a metáfora-chave do sonho (a imaginação, o desejo). Morrisey usa um símbolo universal do poder: a monarquia. Trono, coroa, manto, cetro, castelo, reino, súditos. O que pretendem os visionários senão o poder, e para que querem o poder senão para tentar reduzir o mundo concreto ao conto de fadas da felicidade perfeita?"
E continua o professor: "Morrissey sabe disso porque é dessa matéria que ele é feito. Filho de uma família arruinada, cresceu na arruinada Manchester sob os cuidados de sua mãe, que, como era bibliotecária, substituiu os carinhos e as guloseimas por livros e condenou o filho tímido à companhia dessa gente inconformada e cheia de imagens estranhas que são os poetas. Seus amigos íntimos foram desde cedo Keats, Yeats, Thomas Hardy e, sobretudo, Oscar Wilde. Aos quais, com o tempo, ele foi acrescentando James Dean, Elvis Presley, Marc Bolan, The New York Dolls...". 
Para Sevcenko, Morreissey era o herdeiro de cruzado da melhor linhagem romântica ("foi o romantismo quem criou o mito do radicalismo juvenil redentor) com a casta mais cristalina da cultura pop ("que criou o mito da transgressão purificada"). "Mas Morrissey num gesto inesperado, recusou o espólio que lhe cabia por direito natural, repudiou o idealismo democrático dos puros e foi morar com o cinismo num subúrbio obscuro da sua odiada Manchester".
Cinismo demais talvez tenha sido o veneno derradeiro do rock. E paradoxalmente, hoje, quando o rock está careta, careta, pode ser sua aguardada redenção. Mas quem se prontificaria a ser imolado no altar do cinismo? 

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