terça-feira, 24 de março de 2009

Paulo Roberto Pires

Em geral, costumo reler meus textos com um constrangimento atávico. Poucos são os que escapam. Por esses dias, relendo umas coisas do Paulo Roberto Pires, esbarrei com uma resenha minha sobre o primeiro livro dele - e me lembrei como o livro é bom, como o cara escreve bem, como, naquela época, há dez anos, a literatura ainda me era uma promessa de felicidade, putz, lembrei de tanta coisa... E nem fiquei tão envergonhado com o texto assim. O nome da resenha, publicada pelo então repórter do Caderno 3, do Diário do Nordeste, era "A cristalização do amor".


“Faço todos os esforços possíveis para ser seco. Quero impor silêncio ao meu coração, que acredita ter muito a dizer. Sempre tremo quando penso não ter escrito nada mais do que um suspiro, quando acreditava ter registrado uma verdade”
Chama-se apenas M. Mas o que interessa, na verdade, não é seu nome, mas o que a ele aconteceu naquele dia quando, ao chegar em casa, descobriu que sua mulher não voltaria. Importa saber, por exemplo, como ele, que levava uma vida normal e financeiramente muito bem-sucedida, decidiu fazer uma espécie de faxina em suas relações: com a namorada, o melhor amigo, a chefe, o trabalho. Importa acompanhar como ele, personagem-narrador, diante do desaparecimento inexplicável da parceira, começou a desconstruir todos os clichês que tomaram conta de sua vida; como ele foi destruindo todos os laços afetivos numa cruzada desesperada em busca da consistência de seu desejo e de sua sensibilidade.
Em linhas gerais, é isso que importa na leitura do romance Do Amor Ausente, do jornalista e professor carioca Paulo Roberto Pires. É isso, mas também não é só. Grata surpresa dentro da inquietante calmaria que se apossou da literatura brasileira, o livro é, nas palavras de Silviano Santiago, um romance já maduro e assustadoramente atual na maneira como dramatiza o estado do amor masculino em tempos feministas. M., o protagonista, funcionário de uma grande editora, se vê abandonado pela mulher e passa a povoar anárquica e autodestrutivamente a lacuna deixada por ela. Com essa postura, vai em busca do que chama de “cristalização do amor” abandonando-se a um hedonismo inconseqüente e a uma solidão convicta para rearrumar, de fora para dentro, sua afetividade. E nessa jornada, importa não apenas verificar como M. vai se transformando progressivamente num outro, sem nenhuma conexão com aquele de onde partira, mas observar como ele vai se calando, amargando uma viuvez sem cadáver, passando sem as facilidades da emoção para poder viver sob o que se chama de paixão. Importa também notar como vai dando a seus interlocutores, aos habitantes de sua vida, a satisfação a vazios óbvios mendigados com uma certa indigência: o prazer burocrático, a fraternidade sedimentada em lugares-comuns e em celebrações inócuas, etc. Diálogo indireto com a obra clássica de Stendhal, Do Amor (1822), no livro importa ver como Paulo Roberto Pires constrói um romance analítico e cerebral calcado na não-paixão, uma anti-apologia da paixão instintiva como força criadora. 
“Um dia (M.) chegou a acreditar que poderia viver sob o que se chama, e como agora era fácil mencionar, paixão. Acreditou, piamente quase, que abriria suas comportas para que aí se instaurasse uma nova lei, princípios que regessem o seu mundo a partir de então”, escreve Paulo. No entanto, ao encontrar Martha, sua parceira desaparecida, desejá-la e conseguir tê-la, M. começou a desapaixonar-se radicalmente, a colecionar o que o autor define como “sobressaltos já anestesiados”. É desse ponto, então, que ele vai se tornando um outro M., liberto dos vazios processados pela inteligência insuportável com que se aproxima de seus pares. “A possibilidade do impossível de todo encontro amoroso... é o único princípio aceitável de uma ética. Pois foram estes possíveis que se esclerosaram ao longo dos anos e, diante de seus olhos, que, como se disse, cada vez mais secavam, não havia uma possibilidade”.
Misturando uma escrita segura e poética, Paulo nos convida a velar os descaminhos percorridos por M. em busca de uma idéia de paz, alcançada com o arrefecimento da chama que ardia em sua idéia de paixão. Importa-nos ver, então, como ali, onde a entropia do amor havia se exaurido, onde nada mais parecia dar significado a uma vida, renascerá uma nova configuração de paixão, nem mais nem menos ardente que a anterior, apenas diferente. Se o “amor real” encheu-se de aspas desde Stendhal, o caminho real que leva o macho à mulher-que-é-futuro não será retilíneo nem racional, como avisa Silviano. Essas irregularidades, então, compõem o relevo do livro de Paulo. Um relevo onde o que importa é a quebra de obviedades, a ruptura com uma inteligência emocional tacanha que confina a relação a dois na libido e na autogratificação permanente.
Onde buscar a possibilidade de cristalização do amor?, pergunta-se Silviano Santiago. A paixão é de fato uma força criadora, vital?, indaga Stendhal. É possível uma vida livre das facilidades da emoção?, pergunta-se Paulo Roberto Pires. É possível estar enlutado sem drama para virar uma outra pessoa?, questiona-se M. Em Do amor ausente, portanto, importam as perguntas que fazem do amor essa deliciosa arte de indagar e de se deixar ser indagado, mesmo sem respostas à disposição. Mas também importam muitas outras questões; ou talvez nenhuma dessas apresentadas nesta resenha, posto que o amor, qual a fruição de uma obra literária, só é compatível com a provisoriedade do vivido. E quem vive um texto como Do amor ausente sai dele com ótimas perguntas. Ponto para o livro!

Trecho

“Era difícil, no entanto, manter agora o mesmo entusiasmo com que entrava em Paula uma, duas, três, quatro vezes até numa das muitas noites em claro. Se, como se diz, o destino da paixão é arrefecer até virar outra coisa ou simplesmente ter fim, não lhes restavam muitas alternativas ou escolhas. E o esmorecimento se devia muito menos a ela, que continuava a se entregar apaixonadamente a M. e também a outros, como sempre.

Subitamente, Paula viu sua história nas mãos de um homem que, transformando e invocando uma autoridade nascida de seu abandono, exigia uma total exclusividade no sexo. Era M., o frágil autoritário que queria estabelecer condições de suposta igualdade para um jogo que nem sabia se ainda queria jogar. Era ele que exigia uma tardia fidelidade e, ainda, deslocadas provas de amor que podiam advir de qualquer lugar. Inadvertidamente, ela, a forte, a frágil, cedia aos padrões que lhes eram oferecidos como única alternativa de continuidade. Inadvertidamente, as provas foram se multiplicando, anacronicamente, como se ali, no lugar do impossível e, sobretudo, do improvável, começasse a nascer o amor. Como se ali, no equilíbrio instável dos arroubos melancólicos e apaixonados, estivesse um começo”.

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