Clóviss Rossi, em sua coluna na Folha de S. Paulo do último domingo.
segunda-feira, 30 de março de 2009
Dueto do dia
"A superestrutura política virou um dueto monocórdico, com perdão da contradição em termos. É democratas x republicanos nos Estados Unidos, conservadores x trabalhistas no Reino Unido, social-democratas x democratas-cristãos na Alemanha, PT x PSDB no Brasil (...). Criou-se úm déficit democrático em que outras vozes não entram talvez porque digam verdades incômodas. Ou entram apenas para ter suas verdades apropriadas pela corrente principal, como já aconteceu com a mudança climática e repete-se com a crise (econômica)".
quinta-feira, 26 de março de 2009
Obama, levanta a poeira e dá a volta por cima
Essa eu vi num dos comentários do blog do Paulo Roberto Pires. Em seu discurso de posse, Barack Obama disse: "we must pick ourselves up, dust ourselves off, and begin again the work of remaking America". Em bom português: "Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima!". Podiam ter citado o Vanzolini, né não?
terça-feira, 24 de março de 2009
Precariedade do dia
"A verdade da imprensa é por definição uma verdade precária - sua força não virá jamais da veracidade total, de resto impossível, mas de sua transparência em lidar com as limitações que lhe são congênitas. Se a verdade é precária, a credibilidade da imprensa pode ser duradoura".
Eugênio Bucci, em Sobre ética e imprensa
Paulo Roberto Pires
Em geral, costumo reler meus textos com um constrangimento atávico. Poucos são os que escapam. Por esses dias, relendo umas coisas do Paulo Roberto Pires, esbarrei com uma resenha minha sobre o primeiro livro dele - e me lembrei como o livro é bom, como o cara escreve bem, como, naquela época, há dez anos, a literatura ainda me era uma promessa de felicidade, putz, lembrei de tanta coisa... E nem fiquei tão envergonhado com o texto assim. O nome da resenha, publicada pelo então repórter do Caderno 3, do Diário do Nordeste, era "A cristalização do amor".
“Faço todos os esforços possíveis para ser seco. Quero impor silêncio ao meu coração, que acredita ter muito a dizer. Sempre tremo quando penso não ter escrito nada mais do que um suspiro, quando acreditava ter registrado uma verdade”
Chama-se apenas M. Mas o que interessa, na verdade, não é seu nome, mas o que a ele aconteceu naquele dia quando, ao chegar em casa, descobriu que sua mulher não voltaria. Importa saber, por exemplo, como ele, que levava uma vida normal e financeiramente muito bem-sucedida, decidiu fazer uma espécie de faxina em suas relações: com a namorada, o melhor amigo, a chefe, o trabalho. Importa acompanhar como ele, personagem-narrador, diante do desaparecimento inexplicável da parceira, começou a desconstruir todos os clichês que tomaram conta de sua vida; como ele foi destruindo todos os laços afetivos numa cruzada desesperada em busca da consistência de seu desejo e de sua sensibilidade.Em linhas gerais, é isso que importa na leitura do romance Do Amor Ausente, do jornalista e professor carioca Paulo Roberto Pires. É isso, mas também não é só. Grata surpresa dentro da inquietante calmaria que se apossou da literatura brasileira, o livro é, nas palavras de Silviano Santiago, um romance já maduro e assustadoramente atual na maneira como dramatiza o estado do amor masculino em tempos feministas. M., o protagonista, funcionário de uma grande editora, se vê abandonado pela mulher e passa a povoar anárquica e autodestrutivamente a lacuna deixada por ela. Com essa postura, vai em busca do que chama de “cristalização do amor” abandonando-se a um hedonismo inconseqüente e a uma solidão convicta para rearrumar, de fora para dentro, sua afetividade. E nessa jornada, importa não apenas verificar como M. vai se transformando progressivamente num outro, sem nenhuma conexão com aquele de onde partira, mas observar como ele vai se calando, amargando uma viuvez sem cadáver, passando sem as facilidades da emoção para poder viver sob o que se chama de paixão. Importa também notar como vai dando a seus interlocutores, aos habitantes de sua vida, a satisfação a vazios óbvios mendigados com uma certa indigência: o prazer burocrático, a fraternidade sedimentada em lugares-comuns e em celebrações inócuas, etc. Diálogo indireto com a obra clássica de Stendhal, Do Amor (1822), no livro importa ver como Paulo Roberto Pires constrói um romance analítico e cerebral calcado na não-paixão, uma anti-apologia da paixão instintiva como força criadora.
“Um dia (M.) chegou a acreditar que poderia viver sob o que se chama, e como agora era fácil mencionar, paixão. Acreditou, piamente quase, que abriria suas comportas para que aí se instaurasse uma nova lei, princípios que regessem o seu mundo a partir de então”, escreve Paulo. No entanto, ao encontrar Martha, sua parceira desaparecida, desejá-la e conseguir tê-la, M. começou a desapaixonar-se radicalmente, a colecionar o que o autor define como “sobressaltos já anestesiados”. É desse ponto, então, que ele vai se tornando um outro M., liberto dos vazios processados pela inteligência insuportável com que se aproxima de seus pares. “A possibilidade do impossível de todo encontro amoroso... é o único princípio aceitável de uma ética. Pois foram estes possíveis que se esclerosaram ao longo dos anos e, diante de seus olhos, que, como se disse, cada vez mais secavam, não havia uma possibilidade”.
Misturando uma escrita segura e poética, Paulo nos convida a velar os descaminhos percorridos por M. em busca de uma idéia de paz, alcançada com o arrefecimento da chama que ardia em sua idéia de paixão. Importa-nos ver, então, como ali, onde a entropia do amor havia se exaurido, onde nada mais parecia dar significado a uma vida, renascerá uma nova configuração de paixão, nem mais nem menos ardente que a anterior, apenas diferente. Se o “amor real” encheu-se de aspas desde Stendhal, o caminho real que leva o macho à mulher-que-é-futuro não será retilíneo nem racional, como avisa Silviano. Essas irregularidades, então, compõem o relevo do livro de Paulo. Um relevo onde o que importa é a quebra de obviedades, a ruptura com uma inteligência emocional tacanha que confina a relação a dois na libido e na autogratificação permanente.
Onde buscar a possibilidade de cristalização do amor?, pergunta-se Silviano Santiago. A paixão é de fato uma força criadora, vital?, indaga Stendhal. É possível uma vida livre das facilidades da emoção?, pergunta-se Paulo Roberto Pires. É possível estar enlutado sem drama para virar uma outra pessoa?, questiona-se M. Em Do amor ausente, portanto, importam as perguntas que fazem do amor essa deliciosa arte de indagar e de se deixar ser indagado, mesmo sem respostas à disposição. Mas também importam muitas outras questões; ou talvez nenhuma dessas apresentadas nesta resenha, posto que o amor, qual a fruição de uma obra literária, só é compatível com a provisoriedade do vivido. E quem vive um texto como Do amor ausente sai dele com ótimas perguntas. Ponto para o livro!
Trecho
“Era difícil, no entanto, manter agora o mesmo entusiasmo com que entrava em Paula uma, duas, três, quatro vezes até numa das muitas noites em claro. Se, como se diz, o destino da paixão é arrefecer até virar outra coisa ou simplesmente ter fim, não lhes restavam muitas alternativas ou escolhas. E o esmorecimento se devia muito menos a ela, que continuava a se entregar apaixonadamente a M. e também a outros, como sempre.
Subitamente, Paula viu sua história nas mãos de um homem que, transformando e invocando uma autoridade nascida de seu abandono, exigia uma total exclusividade no sexo. Era M., o frágil autoritário que queria estabelecer condições de suposta igualdade para um jogo que nem sabia se ainda queria jogar. Era ele que exigia uma tardia fidelidade e, ainda, deslocadas provas de amor que podiam advir de qualquer lugar. Inadvertidamente, ela, a forte, a frágil, cedia aos padrões que lhes eram oferecidos como única alternativa de continuidade. Inadvertidamente, as provas foram se multiplicando, anacronicamente, como se ali, no lugar do impossível e, sobretudo, do improvável, começasse a nascer o amor. Como se ali, no equilíbrio instável dos arroubos melancólicos e apaixonados, estivesse um começo”.
Subitamente, Paula viu sua história nas mãos de um homem que, transformando e invocando uma autoridade nascida de seu abandono, exigia uma total exclusividade no sexo. Era M., o frágil autoritário que queria estabelecer condições de suposta igualdade para um jogo que nem sabia se ainda queria jogar. Era ele que exigia uma tardia fidelidade e, ainda, deslocadas provas de amor que podiam advir de qualquer lugar. Inadvertidamente, ela, a forte, a frágil, cedia aos padrões que lhes eram oferecidos como única alternativa de continuidade. Inadvertidamente, as provas foram se multiplicando, anacronicamente, como se ali, no lugar do impossível e, sobretudo, do improvável, começasse a nascer o amor. Como se ali, no equilíbrio instável dos arroubos melancólicos e apaixonados, estivesse um começo”.
Clarinetas e deslocamentos
Comecei a estudar clarineta nos últimos três meses e descobri uma verdadeira obsessão. Não sei exatamente porque fui escolher logo a clarineta. Queria estudar algum instrumento de solo e, desavisadamente, optei por um que tem uma das execuções mais complexas. A começar pela afinação, um insólito Si bemol, que faz com que você veja as partituras "normais" de Dó sempre através de um deslocamento, de um fuso, de um não-lugar musical - como preferem os pós-modernos. E é tão mais insólito - pelo menos para um neófito que nem eu - se a gente pensar que, na verdade, o som é o mesmo; apenas a grafia na partitura muda de um instrumento para o outro. Outra "delicadeza" da clarineta, outro deslocamento típico de sua estrutura, é sua chave de registro, que ao invés de oitavar suas notas - ou seja, ir, por exemplo, de um dó para o dó da escala mais aguda -, faz uma transição de décimas segundas. O que era um Dó na posição antiga vira um Sol da escala seguinte quando acionada a chave de registro. Uma transição de dar um nó no dedilhado de qualquer um. Isso, no entanto, permite que aquele instrumento relativamente pequeno, menos suntuoso que o saxofone, consiga alcançar uma extensão absurda, de umas quatro oitavas. E uma digitação ágil como nenhum outro instrumento de sopro. Que o digam os solos malucos do Benny Goodman, a categoria de um Severino Araújo ou um Abel Ferreira, e o virtuosismo de um Paulo Sérgio Santos ou de um Paulo Moura - para mim, um dos maiores músicos do mundo. Meu amigo Fábio Amaral tem, muito pacientemente, me ensinado os caminhos dessa verdadeira bruxaria chamada teoria musical. É algo fascinante, por ser ao mesmo tempo matemático, rigoroso; e fluido, etéreo, aberto ao temperamento e à assinatura pessoal de cada músico. Um relação entre o lógico e o dramático, onde podemos deslocar o pragmatismo geométrico da partitura apenas pela força das nossas paixões.
Esse vídeo abaixo é de uma campanha de uma empresa que fornece peças para clarinetas. Ignorando a parte publicitária, vale ouvir a execução demolidora de "Espinha de Bacalhau" por esse jovem clarinetista chamado Tiago Souza.
Esse vídeo abaixo é de uma campanha de uma empresa que fornece peças para clarinetas. Ignorando a parte publicitária, vale ouvir a execução demolidora de "Espinha de Bacalhau" por esse jovem clarinetista chamado Tiago Souza.
segunda-feira, 16 de março de 2009
Batucando com Moacyr: Luz
Moacyr Luz já havia gravado discos fundamentais para a história do samba. Mandingueiro (1998) e Na Galeria (2001), por exemplo, já são referências clássicas do gênero e são dois dos discos de que mais gosto. Mas sempre tive a impressão de que lhe faltava um registro que se pudesse considerar definitivo, aquele clássico instantâneo, aquele disco-celebração que estivesse à altura da importância de Moa para a música brasileira. Bem, não falta mais. Moacyr acaba de lançar o seu Batucando, CD que sai pela Biscoito Fino e onde ele reúne um time da pesada de convidados: Alcione, Beth Carvalho, Ivan Lins, Mart'nália, Martinho da Vila, Zeca Pagodinho, Luiz Melodia, Wilson das Neves e Tantinho da Mangueira. Isso sem falar numa constelação de igual talento entre os músicos de acompanhamento: Eduardo Neves, Mauro Diniz, Esguleba, Beto Cazes, Carlinhos e Paulão 7 Cordas, Cristóvão Bastos, entre outros.
Num disco-celebração como esse, o repertório seria todo formado por regravações, certo? Errado. Naquele que já pode ser considerado o melhor disco de sua carreira, Moacyr reuniu seu convidados para cantar sambas inéditos e, com isso, não caiu no pecado da mesmice que costuma contaminar o trabalho de certos artistas a partir de determinado momento da carreira. Batucada é um discão de lavar a alma, daqueles de ficar na "vitrola" o mês inteiro.
Abaixo, tem uma das faixas, "Delírio da baixa gastonomia".
quinta-feira, 12 de março de 2009
Poemetes araújos - II
quarta-feira, 11 de março de 2009
Trocadilho do dia
"Alô foliões de Botafogo! Vai sair o Bloco de Segunda! Só lembrando: gentileza gera gentileza. E GENTE LESA GERA GENTE LESA!!!".
Do puxador do Bloco de Segunda, um dos mais legais que frequentamos nesse carnaval no Rio. O bloco sai da frente da Cobal do Humaitá, arrasta uma platéia que me pareceu um pouco mais civilizada que a dos demais cordões e tem Gallotti no seu time de cavaquinistas e compositores.
Derivativo na planilha dos outros é refresco
Você sabe o que é derivativo de câmbio? Não?! Tudo bem. Até meados do ano passado, executivos graúdos de grandes empresas - e muita gente da imprensa - também não. E tanto não sabiam que levaram um tremendo tombo quando, em setembro, estourou a crise financeira mundial, fazendo o dólar disparar e levando junto a dívida contraída por empresas como Sadia, Votorantim, Aracruz e outros pesos-pesados. Os derivativos cambiais, até então usados como proteção dos exportadores contra as oscilações bruscas do dólar, virou febre entre os bancos brasileiros e passou a ser oferecido - como sói acontecer antes das crises - sem a devida regulamentação no mercado. A idéia era usar os derivativos como uma ferramenta para diminuir os juros pagos nos empréstimos bancários: com uma cotação baixa do dólar, os juros seriam inferiores aos de mercado; mas caso o dólar subisse, o débito subiria junto. O problema foi que os especialistas nunca imaginaram esse último cenário; até estourar a bolha imobiliária norte-americana e, com ela, a saúde financeira de muitas corporações.
Matéria publicada no Estado de S. Paulo do último fim de semana mostra como as empresas não tinham a dimensão do grau de exposição à dívida. Segundo levantamento reservado do Banco Central, as empresas brasileiras perderam a bagatela de US$ 30 bilhões na roleta dos derivativos. O estrago foi tamanho que muitas delas estão recorrendo à Justiça para não pagar o imenso papagaio contraído nos bancos. Os argumentos utilizados são os de que quem perdeu não sabia exatamente os riscos que corria, ou de que o funcionário que assinou os contratos não tinha poder para tal, ou ainda que é questionável a falta de limites para as perdas - já que, contratualmente, vejam só, há limites para os ganhos.
No noticiário econômico, nenhum veículo tratou essa tentativa de "auditoria" judicial da dívida das empresas como tentativa de "calote", como costuma fazer praticamente toda a imprensa sempre que a dívida pública brasileira é colocada em questão. Ano após ano, nosso endividamento público - que se acentuou no período FHC como forma de reduzir a intervenção do Estado na economia e fazer o País "conquistar a confiança dos mercados" - tem absorvido a maior parte dos recursos orçamentários da União e estrangulado estados e municípios. Em 2008, o pagamento de compromissos com a dívida chegou a 46,5% de todos os gastos federais. Até hoje, no entanto, a despeito dos esforços de movimentos como o da "Auditoria Cidadã da Dívida", nenhuma auditoria - que permitisse esclarecer qual a contrapartida e quais os principais beneficiários da nossa dívida pública - foi realizada. E o pior: sempre que se quer trazer esse debate à tona, a maior parte da imprensa trata a questão, decisiva para a soberania nacional, à luz do mito cínico e dissimulado do "calote".
Poemetes araújos - I
"There's probably no God..."
Ao acessar o site de uma ingreja evangélica, a jornalista inglesa Ariane Sherine se deparou com a informação segundo a qual quem não for cristão e não aceitar Jesus será condenado a passar a eternidade nas chamas do inferno. "Peraí. Então quer dizer que 68% da população mundial vai para o inferno? Eu não pude acreditar que esse tipo de ideia estava sendo difundida, em pleno século XXI, para assustar as pessaos", ela conta. Movida por essa inquietação, Ariane resolveu montar, com a ajuda de internautas de vários locais do mundo, uma megacampanha publicitária defendendo o ateísmo.
Entre os slogans que passaram a correr o mundo, estava um que dizia: "Deus provavelmente não existe. Pare de se preocupar e aproveite a vida". A mensagem foi colocada em 800 ônibus de Londres e logo o blog de Ariane (arianesherine.blogspot.com), que funcionava como epicentro da campanha, foi entupido de mensagens ameaçadoras e desaforadas. Em vez de recuar, Ariane seguiu com seu site, recebendo o apoio, entre outros, do cientista Richard Dawkins, ateu praticante que levantou cerca de R$ 500 mil para a campanha. O objetivo, segundo Sherine, é "alegrar as pessoas quando elas estiverem indo para o trabalho".
segunda-feira, 9 de março de 2009
O bloco pós-tropicalista de Sérgio Sampaio
Quando foi finalmente editado em CD, em 2001, o disco Eu quero é botar meu bloco na rua, lançado originalmente em 1973 marcando a estréia solo de Sérgio Sampaio - que já havia participado da genial presepada Sessão das Dez (1971), disco em parceria com Raul Seixas, Miriam Batucada e Edy Star -, causou um alvoroço entre novos e velhos admiradores do cantor e compositor capixaba. Mas também surpreendeu muita gente ao ser incluído no catálogo de uma coleção de samba soul da Universal. A música de Sérgio não era propriamente samba. Nem muito menos soul. Ou melhor, era isso também. Mas era muito mais. Difícil acomodar numa só etiqueta o turbilhão criativo pós-tropicalista de Sampaio, um dos personagens mais controversos da MPB - falecido em 1994, aos 47 anos, depois de mais de uma década de absoluto ostracismo decorrente do alcoolismo.
Enquanto produziu, Sérgio foi um de nossos mais irônicos e inspirados compositores. E, ironicamente, nunca conseguiu digerir o fato de Roberto Carlos nunca ter gravado uma música sua. Nesse disco de estréia, Sérgio se espalha pela valsa ("Leros e boleros"), pelo fox-trote ("Não tenha medo, não"), pelo tango ("Labirintos negros"), pelo rock ("Filme de terror") e pela marcha-rancho ("Eu quero é botar meu bloco na rua"). Esse último foi seu grande sucesso, com o qual Sérgio fez meio país desbundar em plena ditadura.
Sevcenko, Morrissey, a rainha e a Ilustrada
Numa época em que o rock ainda transpirava alguma inteligência, apontava para uma transcedência ilusória e acenava, vá lá, com alguma "atitude" para seus ouvintes, gente da pesada escrevia sobre bandas da pesada. Pensei nisso depois de ler um texto do professor Nicolau Sevcenko sobre o então recém-lançado The Queen is Dead, dos Smiths, publicado na Ilustrada, da Folha de São Paulo em junho de 1986. A resenha consta de uma coletânea estimulante (voltarei a ela em outros posts) sobre os 50 anos do suplemento cultural organizada pelo jornalista Marcos Augusto Gonçalves no ano passado. Cheguei tarde à tal coletânea - e por isso ainda nã0 venci suas quase 400 páginas -, mas essa foi uma das questões que me saltaram à vista ao ler fragmentos do trabalho organizado por Gonçalves e colocar em perspectiva o meio século de atuação daquele que é - para o bem e para o mal - um dos mais importantes segundos cadernos do País.
Sevcenko, hoje um dos mais renomados intelectuais e acadêmicos do País, era dublê de crítico cultural nos anos 80 na Folha, período em que escreveu sobre um conjunto amplo de temas - da história da arte ao rock. Na crítica ao disco dos Silvas britânicos, ele levanta a lebre, resumindo o disco a "um solene epitáfio posto no mito da cultura juvenil, gravado pela voz mais autêntica e sublime que ela produziu". Tudo bem que a voz de Morrissey só é unanimidade mesmo entre os fãs da banda, mas Sevcenko avança em sua crítica colocando uma questão que, essa sim, se fosse uma unanimidade, poderia livrar o rock de uma auto-indulgência que, hoje, o torna mansinho, mansinho. E, por consequência, enfadonho. Diz ele: "Nada mais vergonhoso do que se esconder atrás das ilusões, ser arrogante em nome delas".
O trecho seguinte do texto é sublime. Uma aula de como fazer crítica cultural à qual devia comparecer a média de analfabetos e desinformados que hoje gerencia o jornalismo em certos jornais de Fortaleza. "O 'a rainha está morta, moçada' soa na linguagem do radicalismo juvenil algo assim como o 'Deus está morto' de Nietzsche soou no mundo da filosofia. Não, não é apenas o equivalente pós-76 de 'o sonho acabou' do Lennon pós-68. É muito, muitíssimo mais. Lennon se referia especificamente à contracultura dos anos 1960 e por isso usou a metáfora-chave do sonho (a imaginação, o desejo). Morrisey usa um símbolo universal do poder: a monarquia. Trono, coroa, manto, cetro, castelo, reino, súditos. O que pretendem os visionários senão o poder, e para que querem o poder senão para tentar reduzir o mundo concreto ao conto de fadas da felicidade perfeita?"
E continua o professor: "Morrissey sabe disso porque é dessa matéria que ele é feito. Filho de uma família arruinada, cresceu na arruinada Manchester sob os cuidados de sua mãe, que, como era bibliotecária, substituiu os carinhos e as guloseimas por livros e condenou o filho tímido à companhia dessa gente inconformada e cheia de imagens estranhas que são os poetas. Seus amigos íntimos foram desde cedo Keats, Yeats, Thomas Hardy e, sobretudo, Oscar Wilde. Aos quais, com o tempo, ele foi acrescentando James Dean, Elvis Presley, Marc Bolan, The New York Dolls...".
Para Sevcenko, Morreissey era o herdeiro de cruzado da melhor linhagem romântica ("foi o romantismo quem criou o mito do radicalismo juvenil redentor) com a casta mais cristalina da cultura pop ("que criou o mito da transgressão purificada"). "Mas Morrissey num gesto inesperado, recusou o espólio que lhe cabia por direito natural, repudiou o idealismo democrático dos puros e foi morar com o cinismo num subúrbio obscuro da sua odiada Manchester".
Cinismo demais talvez tenha sido o veneno derradeiro do rock. E paradoxalmente, hoje, quando o rock está careta, careta, pode ser sua aguardada redenção. Mas quem se prontificaria a ser imolado no altar do cinismo?
Unidade do dia
"No nosso continente surgiu a música popular urbana, não aquela coisa dos campesinos, que passa de geração em geração. É outra coisa, uma música viva, misturada, que se deve aos negros. Pode ver que é algo que só existe em países com negros em sua formação, Estados Unidos, Caribe, Argentina, Brasil. Toda a música urbana tem como base o ritmo negro, é ele que dá unidade à música das américas".
Gilberto Mendes, compositor, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo do último dia 1 de março.
Gilberto Mendes, compositor, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo do último dia 1 de março.
sábado, 7 de março de 2009
Stand By Me - ou A Felicidade dá a volta ao mundo
Esse vídeo me foi enviado por um grande amigo, meu camarada de alegrias e desventuras alvinegras Lúcio Flávio. Simplesmente espetacular!
sexta-feira, 6 de março de 2009
Convite em três dimensões
O trio 3-d, criado por Antonio Adolfo, lançou seu primeiro disco em 1964, um bolachão chamado Tema 3-d. O disco, ainda hoje uma raridade, surgiu em meio à febre dos trios pela qual passava a bossa-nova. Na época, quem pilotava o contrabaixo era o argentino "Cacho", que daria lugar a Carlos Monjardim, no segundo disco do grupo, lançado um ano depois.
Esse segundo disco do 3-d, chamado Trio 3-d convida é, para mim, um dos grandes momentos da música brasileira. Seja pela qualidade do trio, evidenciada em todo o lado A do bolachão; seja pela categoria dos quatro solistas e do arranjador convidados para o lado B: Raul de Souza no trombone de pisto, Maciel no trombone de vara, o "rei do som" Paulo Moura no sax-alto, Meirelles, o "rei da frase", no sax-tenor e um enfant-terrible chamado Eumir Deodato nos arranjos.
O resultado é um disco estimulante da primeira à última faixa. A audição no CD, editado em 2001, sofre um pouco com o resultado inferior da masterização em relação ao LP, mas possibilita ao ouvinte o percurso completo do disco - do entrosamento do trio aos vôos de seus convidados. Sei que sou suspeito porque Paulo Moura é um de meus grandes heróis na música, mas não há como não registrar sua performance em "O passarinho", com direito a citação de "Take five". Com o perdão da comparação, Paulo Moura soa como Coltrane vestindo a camisa verde-amarela e marcando um golaço.
Na forma de conjunto, o 3-d ainda gravaria um disco em 1967, com uma insólita presença de Beth Carvalho, ainda tateando seu caminho na música brasileira. Mas o resultado não seria o mesmo de 3-d Convida. Ainda hoje, incomparável.
quinta-feira, 5 de março de 2009
O ministro, o trombone e o MST
Diante dos recentes incidentes em Pernambuco envolvendo fazendeiros e o MST, os setores conservadores da sociedade e da imprensa se articulam, mais uma vez, para arrastar a opinião pública para dentro de seu vórtice de intolerância, preconceito e desinformação no que diz respeito à questão agrária e aos movimentos sociais no Brasil. Gilmar Mendes começou a soprar o trombone e lá se foi a pauta nacional divisar tópicos como "ilícitos", "repasse ilegal de dinheiro público" e "revolução" no que é, a rigor, mais um entre os milhares de casos de conflito no campo registrados desde sempre no Brasil.
Poucos foram os que conseguiram encarar o fato dentro de seu justo contexto e sem o ranço ideológico que costuma emperrar o debate sobre a situação do campo no Brasil à esquerda e à direita das porteiras. Em louvável editorial, o jornal O POVO diz que "é cedo para se emitir juízo de valor sobre o incidente, tendo em vista o histórico de injustiças cometidas no campo. É preciso aguardar a conclusão do inquérito policial".
E arremata: "A Revolução de 30 modificou um pouco o predomínio absoluto dos oligarcas do café, do leite, no Sudeste do País, e dos 'coronéis' (latifundiários) nordestinos. Abriu oportunidade para a participação da burguesia nacional nas decisões políticas. Mas teve o mérito de despertar a consciência nacional para a questão agrária. Desde então, como bem disse o ministro Tarso Genro, vêm ocorrendo ações cíclicas, com avanços e retrocessos: Ligas Camponesas anos 50 e 60 e, mais recentemente, o MST. Cabe ao MST, no entanto, a responsabilidade de evitar provocações nas pressões pela reforma agrária".
Outro texto auspicioso foi do colunista Clóvis Rossi, na Folha do último domingo. Para o jornalista, pinçar o MST entre os que supostamente praticam ilicitudes e recebem dinheiro público soa a viés ideológico, incabível em funcionários do Poder Judiciário, numa referência a Gilmar Mendes. "Importantes líderes do PT enfrentam processo no próprio STF. O PT, como os demais partidos, recebe dinheiro público. O governador afastado da Paraíba, Cássio Cunha Lima (PSDB), perdeu o cargo por compra de votos. O PSDB recebe dinheiro público".
A pergunta de Rossi é se PT e PSDB devem responder pela ilegalidade de alguns de seus membros. Ele lembra que nem o caso de petistas nem o caso de tucanos percorreram todas as instâncias e, portanto, poder-se-ia cobrar dos analistas de plantão a sentença que condena o MST por ilegalidades. "O problema não é se o dinheiro chega ou não ao MST, mas se é ou não bem empregado". Esse, no entanto, jamais será o entendimento de quem não compreende que ocupar/invadir terras terras é a única maneira que um movimento social voltado para a reforma agrária tem para chamar atenção para sua agenda.
Se o País não encara de maneira honesta essa questão, que traz consigo inúmeras contradições, não resolverá jamais sua questão social. Pior: vai continuar confundindo assessoria técnica a assentamentos e programas educacionais internacionalmente reconhecidos com atos "ilícitos" como quer propor Gilmar Mendes, cujo ego já de muito não cabe mais em sua toga.
Poucos foram os que conseguiram encarar o fato dentro de seu justo contexto e sem o ranço ideológico que costuma emperrar o debate sobre a situação do campo no Brasil à esquerda e à direita das porteiras. Em louvável editorial, o jornal O POVO diz que "é cedo para se emitir juízo de valor sobre o incidente, tendo em vista o histórico de injustiças cometidas no campo. É preciso aguardar a conclusão do inquérito policial".
E arremata: "A Revolução de 30 modificou um pouco o predomínio absoluto dos oligarcas do café, do leite, no Sudeste do País, e dos 'coronéis' (latifundiários) nordestinos. Abriu oportunidade para a participação da burguesia nacional nas decisões políticas. Mas teve o mérito de despertar a consciência nacional para a questão agrária. Desde então, como bem disse o ministro Tarso Genro, vêm ocorrendo ações cíclicas, com avanços e retrocessos: Ligas Camponesas anos 50 e 60 e, mais recentemente, o MST. Cabe ao MST, no entanto, a responsabilidade de evitar provocações nas pressões pela reforma agrária".
Outro texto auspicioso foi do colunista Clóvis Rossi, na Folha do último domingo. Para o jornalista, pinçar o MST entre os que supostamente praticam ilicitudes e recebem dinheiro público soa a viés ideológico, incabível em funcionários do Poder Judiciário, numa referência a Gilmar Mendes. "Importantes líderes do PT enfrentam processo no próprio STF. O PT, como os demais partidos, recebe dinheiro público. O governador afastado da Paraíba, Cássio Cunha Lima (PSDB), perdeu o cargo por compra de votos. O PSDB recebe dinheiro público".
A pergunta de Rossi é se PT e PSDB devem responder pela ilegalidade de alguns de seus membros. Ele lembra que nem o caso de petistas nem o caso de tucanos percorreram todas as instâncias e, portanto, poder-se-ia cobrar dos analistas de plantão a sentença que condena o MST por ilegalidades. "O problema não é se o dinheiro chega ou não ao MST, mas se é ou não bem empregado". Esse, no entanto, jamais será o entendimento de quem não compreende que ocupar/invadir terras terras é a única maneira que um movimento social voltado para a reforma agrária tem para chamar atenção para sua agenda.
Se o País não encara de maneira honesta essa questão, que traz consigo inúmeras contradições, não resolverá jamais sua questão social. Pior: vai continuar confundindo assessoria técnica a assentamentos e programas educacionais internacionalmente reconhecidos com atos "ilícitos" como quer propor Gilmar Mendes, cujo ego já de muito não cabe mais em sua toga.
Sem Barrosinho
No fim dos anos 70, a black music mandava nos subúrbios e a dance music embalava as noites da burguesia. O samba, por sua vez, estava em baixa e o rock instrumental começava a virar uma longa, verborrágica e enfadonha sequência de improvisos. Aproximar todas essas informações e aparar as arestas aparentemente instransponíveis entre esses gêneros foi a missão impossível que a Banda Black Rio conseguiu realizar. Tanto que até hoje seus primeiros discos são obrigatórios em qualquer boa discoteca - seja ela de samba, de black music, de dance ou de rock. Parte do vigor da banda vinha de seu naipe de metais, onde pontificava o trumpete de Barrosinho, que faleceu hoje no Rio de Janeiro.
Segue, portanto, a pequena homenagem desde Talabarte.
Segue, portanto, a pequena homenagem desde Talabarte.
terça-feira, 3 de março de 2009
Descrédito do dia
Do jornalista francês Jean Daniel (foto ao lado), 88, fundador da revista Le Novel Observateur, em entrevista recente ao jornal El País: "Para os jornalistas, a internet traz o gosto pela velocidade. A possibilidade de qualquer pessoa responder a qualquer pessoa. Ou o fato de que todo mundo possa ser jornalista e, nesse caso, que os próprios jornalistas deixem de acreditar neles mesmos, porque são questionados a todo momento. Está se produzindo um descrédito na função de jornalista (...). Todo o itinerário de preparação (de formação do jornalista), que terminava num estatuto de prestígio e autoridade do jornalista, está sendo destruído pela aparição repentina de alguém que encontra uma foto e a coloca na internet. E essa foto pode destruir alguém. Há vantagens, não para o jornalista, mas há vantagens. É o senho da opinião pública, pois se abre uma possibilidade infinita de se expressar".
O importante é saber... dançar!
Como diria o Barão de Coubertain, tão importante quanto saber perder é saber... dançar!
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