quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Soldado da memória


Quase uma metonímia. A série Songbook, criada por Almir Chediak no final dos anos 80, passou a denominar um tipo de produto cultural que até então era uma raridade no País. Corriqueiro no exterior, o esforço editorial de reunir partituras de um determinado compositor popular - transcrevendo a letra e a melodia e cifrando a harmonia exatamente do modo como foram criadas - só vingou efetivamente no Brasil depois que o produtor carioca lançou os primeiros livros do gênero pela editora Lumiar, de sua propriedade. 
Assim foi que os ''songbooks da Lumiar'' - ou os ''songbooks do Chediak'' - viraram uma espécie de bombril didático-musical entre nossos instrumentistas. Outros editores também lançaram os seus, mas ninguém conseguiu fugir da sombra da produção meticulosa e perfeccionista de Chediak, que acabou consagrando seus livros (e posteriormente os CDs vinculados a eles) tanto por conta do método adotado, que preservava todos os detalhes criativos dos compositores, quanto pelos nomes que conseguiu editar. 
Primeiro foi Caetano Veloso, que teve a obra mapeada e transcrita em dois volumes lançados em 1988. Na época, qualquer pessoa que já tocava violão ou apenas se iniciava no instrumento, ficava babando ao descobrir um acorde novo ou uma passagem harmônica mais elaborada que se escondiam nas ''entrelinhas'' de uma composição do músico baiano. Quase como um anti-feiticeiro da linguagem musical, Chediak revelou esses truques e os colocou à disposição de estudantes, professores e músicos diletantes que até então eram um tanto órfãos de publicações do gênero. 
''Nos Estados Unidos e na Inglaterra, por exemplo, um songbook de Cole Porter ou George Gershwin contém partituras que perpetuam nota por nota, palavra por palavra, o que cada um deles criou. Aqui, a prática corrente é a de não se respeitar a música popular do mesmo modo que se respeita a erudita'', afirmava o jornalista João Máximo na introdução de um dos volumes dedicados a Caetano. ''Chediak e sua editora ousam acreditar que a boa música popular do Brasil merece o mesmo destino de toda obra-prima: perpetuar-se''. 
Nesse sentido, Chediak tornou-se um raro guardião de parte da memória musical brasileira. Imagem que se somou a de autor de obras referenciais no ensino de música, especialmente Dicionário de acordes cifrados, que iniciou o processo de padronização das cifras no Brasil; e os dois volumes de Harmonia e improvisação, primeiro livro editado no País sobre técnica de improvisação e harmonia funcional (com aplicação em mais de 140 músicas populares). Mas se esses livros são obrigatórios em qualquer boa biblioteca de teoria musical, Chediak se consagrou mesmo com os seus Songbooks
''A idéia nasceu exatamente na casa de Caetano Veloso. Eu estava dando aula de violão a seu filho Moreno, quando comecei a pensar no quanto seria importante para professores, músicos, arranjadores e estudantes se tivéssemos as obras de nossos compositores catalogadas em um álbum do modo como foram criadas por eles, o que raramente acontece nas edições musicais, principalmente no que se refere às harmonias, fundamentais na medida em que grande parte de nossos compositores é de excelentes harmonizadores, músicos que sabem exatamente os acordes com que melhor vestem suas melodias'', ele explicava. 
Depois de Caetano, foram mais de vinte outros livros editados (a maioria com CDs correspondentes), contemplando nomes como Chico Buarque, Edu Lobo, Braguinha, Noel Rosa, Carlos Lyra, Dorival Caymmi, João Donato (foto acima), Djavan, Francis Hime, Rita Lee, Gilberto Gil, entre outros medalhões. O último trabalho foi o livro (e uma caixa com três CDs) de canções de João Bosco, presença constante em quase todos os discos produzidos por Chediak. 
''Eu participei em todos (os CDs da série Songbook), em alguns até com mais de uma música. É um trabalho importantíssimo. Os discos funcionavam como uma usina de experimentação, com muitas releituras feitas com total liberdade. E os livros eram feitos com muito cuidado, das cifras às entrevistas e biografias de cada artista'', João declarou ao saber da morte terrível de Chediak. ''Estou chocado, não sabemos o que houve, só que essa pessoa cheia de vida não está mais aqui''. O produtor musical foi assassinado brutalmente em maio de 2003, com quatro tiros no rosto, em Petrópolis. 
Nascido no Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1950, Chediak começou seus estudos com uma das grandes lendas da música popular brasileira, o mestre Herondino Silva, o mitológico Dino Sete Cordas. Aos 17 anos, já dava aulas e aprimorava seus conhecimentos com o professor Ian Guest. Entre os alunos que passaram pelas aulas de Almir estavam nomes famosos, como Gal Costa, Moraes Moreira, Carlos Lyra, Tim Maia, Ed Motta e Cazuza, que se revezaram pelo seu Centro Musical instalado em Copacabana. 
Com sua morte, a MPB perdeu o autor de um trabalho que Tom Jobim definia como ''coisa patriótica''. Mais: perdeu um soldado insubstituível na guerrilha cultural travada entre a nossa música e a vertigem cretina das grandes gravadoras.

Nenhum comentário: