segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A arte do improviso


O jeito esquisito ao piano é resultado, em parte, das dificuldades vividas ainda nos primeiros estudos: a pequena estatura e as mãos pequenas faziam com que Keith, então com pouco mais de três anos, tivesse de se levantar do banco para alcançar as notas mais agudas e as mais graves do teclado. Mas foi a paixão intensa pela música e, em particular, pela arte do improviso que levou esse gênio não apenas a tocar de modo muito particular - em geral, se contorcendo à frente das teclas e solfejando as notas com grunhidos que costumam afastar os ouvintes desavisados - mas a se transformar num dos maiores nomes da música da segunda metade do século XX.
Art of Improvisation, um documentário fascinante de Mike Dibb produzido em 2005 e que apenas este ano foi lançado no Brasil pela Euro Arts, percorre a trajetória de Keith Jarrett investigando as idiossincrasias e a trajetória desse artista que é uma das grandes estrelas do jazz e da música erudita. Compositor e instrumentista virtuoso, o norte-americano personifica ao mesmo tempo o rigor da disciplina acadêmica e um desejo permanente de exploração musical guiado pela liberdade da estrutura jazzística. Em suas mãos, as composições eruditas ganham novos contornos e uma vitalidade rara através do repertório virtuoso da técnica de Jarrett. E o improviso ganha status de composição pronta, que, porém, nunca chegará a ganhar a eternidade das partituras pela natureza efêmera de seu processo de "escrita". 
"Nunca houve um tempo em que a improvisação tenha ganho o respeito devido. Pela virtude de seu espírito holístico, ela necessita de tudo para se concretizar. Ela demanda tempo real, nenhuma edição é possível. Isso leva seu sistema nervoso a estar alerta para todas as possibilidades de um jeito que não pode ser descrito por nenhum outro tipo de música", ele explica no filme. 

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Os justos


"Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sur jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
O que acaricia um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão salvando o mundo."

Jorge Luis Borges, Os justos

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Schoenberg monino

Haroldo Costa escreveu que a invenção musical mais importante do século XX, ao lado do jazz, são as escolas de samba. É fato. Apenas acrescentaria nesse balaio de contribuições paradigmáticas do século passado a música dodecafônica, que estilhaçou a estrutura tonal, aquele "código de entrelaçamento sonoro que vigorava há séculos, quase como um sinônimo da própria música ocidental", nas palavras de Júlio Medaglia. 
Passada essa primeira década do século XXI, é possível dizer que, em proporções mais tímidas, mas não menos relevantes, o estilo das escolas de samba também passa por um estilhaçar de sua estrutura que está transformando e ampliando o gênero do samba de enredo. Esse processo é visível no novo entrelaçamento de seus compassos, na nova (e a cada ano mais criativa) relação entre as vozes e timbres percussivos que constituem seu tecido sonoro. 
Nisso reside, ressalte-se, um paradoxo, já que a estrutura de composição está cada vez mais engessada e previsível, baseada nos famigerados refrões (sempre dois) e estrofes (sempre duas). Mas escutando o disco de sambas de enredo do grupo especial do carnaval de 2010, por exemplo, é possível perceber como as baterias nunca soaram tão audaciosas, nunca transbordaram tanto para além dos limites binários do samba. Diálogos de surdos, chamadas ralentadas de repiniques, desenhos de tamborins que soam como arpejos virtuosos, colorações extraordinárias de chocalhos: os recursos utilizados pelos mestres de bateria em suas bossas e na própria construção do ritmo são hoje de tal complexidade e engenhosidade que fazem do samba de enredo a expressão rítmica mais inteligente do País. 
Há letras interessantes (como os sambas da Beija Flor, Vila Isabel e Imperatriz), que de forma competente embalam o exuberante cortejo de painéis que é o desfile da Sapucaí, uma ópera tupiniquim de gramática própria e também cada vez mais engenhosa. Há também textos pífios -  a maioria, infelizmente. Mas a orquestração das baterias se sobressai a tais redundâncias e platitudes - embora o tão prometido disco gravado ao vivo tenha recebido acabamento de disco de estúdio, com uma edição criminosa de algumas faixas. 
O melhor das baterias segue nos ensaios de quadra, nas verdadeiras gravações ao vivo e, claro, no desfile de fevereiro. Vida longa a nossos Schoenbergs mominos! 

A luta passageira dos apáticos

"Uma das figuras mais originais e características da nossa era é a do revolucionário profissional, como foi definida pelos bolchevistas no começo do século. O militante inteiramente consagrado à atividade política, materialmente sustentado por uma organização partidária, a que em princípio deve dar adesão completa, obediência sem reservas, todo o seu pensamento e a sua ação, não devendo, como um clérigo, ter outro compromisso. A esses homens, formados segundo a mentalidade exclusivista das seitas, o nosso tempo deve algumas das realizações mais espantosas, tanto as redentoras quanto as atrozes. 
Mas é também interessante o tipo oposto, do homem sem qualquer compromisso com a revolução, que frequentemente é até contra ela, e no entanto nalgum período ou apenas nalgum instante da vida fez alguma coisa por ela: uma palavra, um ato, um artigo, uma contribuição, uma assinatura, o auxílio a um perseguido. Se fosse possível computar esses fatos ocasionais, essas atividades temporárias, talvez resultasse um total imenso de forças. Por isso, é atraente investigar os atos discordantes dos conformistas, os atos radicais dos conservadores, os períodos de lucidez revoltosa dos desinteressados, as lutas passageiras dos apáticos". 

Antonio Candido, em "Radicais de Ocasião" (ensaio incluído no volume Teresina Etc, da editora Ouro sobre Azul)

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Encaixotando Jorge


Agora é que o superavit lá de casa vai pro saco: Salve Jorge!, caixa com os 13 primeiros discos de Benjor (todos lançados pela Philips entre 1963 e 1976) chega às gôndolas em dezembro. Durante muito tempo, títulos como Solta o pavão (1975), Forca bruta (1970) e Negro é lindo (1971) estiveram fora de catálogo e ajudaram a criar a mística em torno do Zé Pretinho - que soava tão mais genial quanto mais obscuras eram suas gravações. Pois bem, esses discos estão chegando novamente ao mercado no formato de CD, junto com clássicos absolutos como Tábua de Esmeraldas (o melhor de todos eles), África Brasil e Gil Jorge; e revelam a melhor fase da discografia de Jorge Ben. Destaque também para o disco com gravações raras e inéditas disponibilizado pela Universal na caixa.

Os discos encaixotados são os seguintes:
Samba Esquema Novo (1963)
Sacudin Ben Samba (1964)
Ben É Samba Bom (1964)
Big Ben (1965)
Jorge Ben (1969)
Força Bruta (1970)
Negro É Lindo (1971)
Ben (1972)
10 Anos Depois(1973)
A Tábua de Esmeraldas (1974)
Gil Jorge - Ogum Xangô (1975)
Solta o Pavão (1975)
África Brasil (1976)

Abaixo, Benjor canta "Domingas" ao lado dos Originais do Samba, em 1970.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Ataulfo Alves, 100 anos

Além de intérprete bem-sucedido da própria obra, caso raro entre os sambistas, Ataulfo Alves compunha num andamento singular, diferente, numa cadência mais "ralentada" sem, no entanto, encostar no samba-canção, como lembra Tárik de Souza. Esse passo mais vagaroso, mais elegante, permitiu que  sua obra se tornasse itinerário para músicos de outros gêneros, que descobriram em seus sambas uma paisagem pós-gafieira, de tons jazzísticos (sem, no entanto, encostar na bossa-nova), permanentemente aberta a novas abordagens. 
Itamar Assumpção, por exemplo, dedicou um de seus melhores discos a releituras moderníssimas da obra de Ataulfo. Agora, é o produtor Thiago Marques Luiz quem revira o baú de Ataulfo para celebrar seu centenário. Depois de seis meses de trabalho, ele reuniu um elenco brilhante de intérpretes para percorrer parte da obra deste compositor mineiro em dois CDs lançados simultaneamente: o primeiro reunindo artistas consagrados em diversas épocas e estilos; o segundo, apresentando a força e o vigor de novos nomes que se lançam na cena do samba e alhures. 
Nos discos, coube tudo em termos de gêneros. Da valsa ("Meus tempos de infância", com Ná Ozzetti) ao funk ("Na cadência do samba", com Elza Soares). Do bolero ("Errei sim", com Fafá Belém) à balada lírica ("Infidelidade", com o canto emocionante de Alaíde Costa e o piano exuberante de André Mehmari). Da gafieira ("Mulata Assanhada", com Elba Ramalho) ao reggae ("Desaforo eu não carrego", com o impagável Língua de Trapo). Tudo, porém, elegante e suingado, soando vigorosamente como samba. Ou melhor, como um samba de Ataulfo Alves. 
Abaixo, Ataulfo em um raro registro de 1967. 

domingo, 22 de novembro de 2009

Um novo ciclo

Há exatos dez anos, no fim da temporada de 1999, o então presidente do Ceará Sporting Club, Átila Bezerra, participava de uma mesa redonda dominical numa emissora local de TV e avaliava as perspectivas do clube para o ano seguinte. O Ceará acabara de ser tetracampeão estadual; batera na trave na disputa por uma vaga na primeira divisão do Campeonato Brasileiro – perdendo a vaga para o Goiás –; via seus rivais locais afundados em graves crises financeiras; e estava na iminência de fechar uma parceria com o banco Icatu Hartford, que prometia reinventar o modelo de gestão esportiva no futebol cearense a partir da profissionalização dos quadros da administração alvinegra. Para 2000, anunciou o mandatário, o (segundo) pentacampeonato estadual estava garantido e a sonhada vaga na elite do futebol brasileiro era apenas uma questão de tempo em função dos novos ares em Porangabuçu.

Mesmo o mais desconfiado dos alvinegros não poderia imaginar quão infelizes seriam aquelas declarações. A partir de 2000, a era de aquarius para o Ceará virou uma quadra de tristeza e frustrações. O calendário alvinegro passou a ser pautado pelas disputas fratricidas entre seus dirigentes, pela demagogia e pela incompetência administrativa de seus gestores, pela obtusidade e pelo cinismo de setores da imprensa comprometidos com interesses inconfessáveis dentro do clube e, por tabela, pela impaciência da torcida. Com isso, os anos 00 foram uma das piores décadas da história alvinegra: a fogueira de vaidades em que ardia o ego dos tragicômicos “cardeais alvinegros” inviabilizou a parceria com o banco e legou uma herança maldita que durante anos assombrou as contas de Porangabuçu, o clube viu seu principal rival renascer das cinzas, conquistou apenas dois campeonatos cearenses (embora o campeonato de 2004 não tenha sido decidido dentro de campo por conta de uma constrangedora armação da FCF) e balançou por diversas vezes na corda da bamba que dava para o abismo da terceirona.

Ontem, o Ceará chegou por seus méritos (sem precisar ser guinchado de divisões inferiores, ressalte-se) à elite do futebol brasileiro. Uma campanha que emocionou a maior (e mais fiel) torcida do Estado e arrancou elogios mesmo dos comentaristas mais sisudos. Dentro de campo, o time de PC Gusmão soube combinar o pragmatismo tático com a garra exigida pelas arquibancadas. Não houve futebol vistoso, mas houve futebol compromissado. Nenhum novo Zé Eduardo despontou, mas bons jogadores (Mota, Geraldo, Michel, Boiadeiro, Erivelton, Misael, Fábio Vidal e outros) vestiram com muita dignidade a camisa alvinegra e suaram lágrimas junto com a massa.

Fora de campo, a gestão de Evandro Leitão abraçou com seriedade e competência o desafio de comandar a maior paixão esportiva do Estado, implementando novas práticas gerenciais e reerguendo a auto-estima do torcedor alvinegro. Dez anos depois da famigerada barrigada do então presidente alvinegro, que deu início a um ciclo a ser esquecido pelos alvinegros, Evandro tem a oportunidade de novamente olhar para o futuro anunciando uma nova era para o Vozão. Um novo ciclo marcado não pela presunção vazia ou pela vaidade inútil; mas pela seriedade no trato com o patrimônio alvinegro. Um novo tempo marcado não apenas pelo desafio de montar times vencedores, mas pela missão de fazer do Ceará um grande clube.

É o que deseja o torcedor alvinegro, que hoje vai dormir bêbado de alegria, comemorando o tão sonhado acesso de nosso time querido. Mas que amanhã vai acordar com o desafio da primeira divisão pela frente.

Parabéns, Vozão! 

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

A pimenteira de Pedro Miranda


Pimenteira, segundo disco solo do carioca Pedro Miranda, está saindo do forno. Ao mesmo tempo em que chegava às lojas, o CD era citado em alguns jornalões não propriamente pelo belo trabalho que é, mas pela bênção de Caetano Veloso ao novo álbum desse enfant terrible da Lapa. Entre outras palavras, o baiano disse que há muito tempo não escutava um disco com tanto entusiasmo. 
"Eu sempre sou citado como elogiador fácil de moças jovens bonitas que cantam samba. Nunca as elogiei sem que achasse justo fazê-lo. Dizer aqui que o CD de um marmanjo, que nem tipo gatinho é, é algo muito mais importante do que o que essas ninfas têm, em conjunto, alcançado deve dar uma ideia do quanto considero ‘Pimenteira’ um evento especial em nossa música. E, de quebra, pode dar mais credibilidade aos elogios que faço às moças", diz Caetano, que classifica o CD como um trabalho de "força histórica intensa". 
Noves fora a afetação de Caetano, essa é de fato uma boa chave para se entender a força do disco. Sucessor de Coisa com Coisa (20o6), o ótimo trabalho de estréia de Pedro, Pimenteira reafirma uma estética que, em escalas e competências diferentes, tem embalado o trabalho dessa (já não tão) nova geração de sambistas que fizeram da Lapa o epicentro de um discurso musical que contagiou outras latitudes do País e transbordou para outros gêneros. Trata-se de um olhar apaixonado e curioso para a tradição, que dispensa o tom solene em relação ao passado e vê nos grandes sambistas, não os sacerdotes de uma liturgia inabalável e engessada, mas uma fonte atemporal da alegria que é cantar samba. 
Cantar e compor, aliás. Além das peças nada óbvias de Nelson Cavaquinho ("Velhice"), Roque Ferreira (autor da faixa título do CD), Wilson das Neves ("Imagem"), Nei Lopes ("Compadre Bento"), Paulo César Pinheiro ("Baticum") e Elton Medeiros ("Na cara do gol"), que o próprio Pedro pesquisou e reuniu para o disco, Pimenteira é temperado por composições de jovens autores como Edu Krieger ("Coluna Social"), Alfredo Del Penho ("Caso encerrado"), Rubinho Jacobina (autor da impagável "Meio-tom") e Moyseis Marques ("Cartas de metrô"), que respondem pelo extrato atualíssimo do disco. 
Some-se ao repertório primoroso (cuja escolha em si constitui um ato autoral) a produção primorosa de Luis Filipe de Lima e é possível entender o discurso proposto por Pedro: um disco que recorre a procedimentos tradicionais (aqui retrabalhados e reprocessados em novos timbres e arranjos) para olhar para o futuro, celebrando sem neuras a alegria do bom samba. Nada mais moderno, portanto. Tradição, presente e futuro. Tudo desaguando na voz afinadíssima e cheia de suingue de Pedrinho Miranda. Sem manias de passado nem frescuras de modernidade. Um disco de altíssimo astral e de inegável "força histórica".  

P.S. - Ano passado, Pedrinho esteve em Fortaleza cantando com o Policarpo e a Estrela de Madureira. Segue abaixo o link.

Soldado da memória


Quase uma metonímia. A série Songbook, criada por Almir Chediak no final dos anos 80, passou a denominar um tipo de produto cultural que até então era uma raridade no País. Corriqueiro no exterior, o esforço editorial de reunir partituras de um determinado compositor popular - transcrevendo a letra e a melodia e cifrando a harmonia exatamente do modo como foram criadas - só vingou efetivamente no Brasil depois que o produtor carioca lançou os primeiros livros do gênero pela editora Lumiar, de sua propriedade. 
Assim foi que os ''songbooks da Lumiar'' - ou os ''songbooks do Chediak'' - viraram uma espécie de bombril didático-musical entre nossos instrumentistas. Outros editores também lançaram os seus, mas ninguém conseguiu fugir da sombra da produção meticulosa e perfeccionista de Chediak, que acabou consagrando seus livros (e posteriormente os CDs vinculados a eles) tanto por conta do método adotado, que preservava todos os detalhes criativos dos compositores, quanto pelos nomes que conseguiu editar. 
Primeiro foi Caetano Veloso, que teve a obra mapeada e transcrita em dois volumes lançados em 1988. Na época, qualquer pessoa que já tocava violão ou apenas se iniciava no instrumento, ficava babando ao descobrir um acorde novo ou uma passagem harmônica mais elaborada que se escondiam nas ''entrelinhas'' de uma composição do músico baiano. Quase como um anti-feiticeiro da linguagem musical, Chediak revelou esses truques e os colocou à disposição de estudantes, professores e músicos diletantes que até então eram um tanto órfãos de publicações do gênero. 
''Nos Estados Unidos e na Inglaterra, por exemplo, um songbook de Cole Porter ou George Gershwin contém partituras que perpetuam nota por nota, palavra por palavra, o que cada um deles criou. Aqui, a prática corrente é a de não se respeitar a música popular do mesmo modo que se respeita a erudita'', afirmava o jornalista João Máximo na introdução de um dos volumes dedicados a Caetano. ''Chediak e sua editora ousam acreditar que a boa música popular do Brasil merece o mesmo destino de toda obra-prima: perpetuar-se''. 
Nesse sentido, Chediak tornou-se um raro guardião de parte da memória musical brasileira. Imagem que se somou a de autor de obras referenciais no ensino de música, especialmente Dicionário de acordes cifrados, que iniciou o processo de padronização das cifras no Brasil; e os dois volumes de Harmonia e improvisação, primeiro livro editado no País sobre técnica de improvisação e harmonia funcional (com aplicação em mais de 140 músicas populares). Mas se esses livros são obrigatórios em qualquer boa biblioteca de teoria musical, Chediak se consagrou mesmo com os seus Songbooks
''A idéia nasceu exatamente na casa de Caetano Veloso. Eu estava dando aula de violão a seu filho Moreno, quando comecei a pensar no quanto seria importante para professores, músicos, arranjadores e estudantes se tivéssemos as obras de nossos compositores catalogadas em um álbum do modo como foram criadas por eles, o que raramente acontece nas edições musicais, principalmente no que se refere às harmonias, fundamentais na medida em que grande parte de nossos compositores é de excelentes harmonizadores, músicos que sabem exatamente os acordes com que melhor vestem suas melodias'', ele explicava. 
Depois de Caetano, foram mais de vinte outros livros editados (a maioria com CDs correspondentes), contemplando nomes como Chico Buarque, Edu Lobo, Braguinha, Noel Rosa, Carlos Lyra, Dorival Caymmi, João Donato (foto acima), Djavan, Francis Hime, Rita Lee, Gilberto Gil, entre outros medalhões. O último trabalho foi o livro (e uma caixa com três CDs) de canções de João Bosco, presença constante em quase todos os discos produzidos por Chediak. 
''Eu participei em todos (os CDs da série Songbook), em alguns até com mais de uma música. É um trabalho importantíssimo. Os discos funcionavam como uma usina de experimentação, com muitas releituras feitas com total liberdade. E os livros eram feitos com muito cuidado, das cifras às entrevistas e biografias de cada artista'', João declarou ao saber da morte terrível de Chediak. ''Estou chocado, não sabemos o que houve, só que essa pessoa cheia de vida não está mais aqui''. O produtor musical foi assassinado brutalmente em maio de 2003, com quatro tiros no rosto, em Petrópolis. 
Nascido no Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1950, Chediak começou seus estudos com uma das grandes lendas da música popular brasileira, o mestre Herondino Silva, o mitológico Dino Sete Cordas. Aos 17 anos, já dava aulas e aprimorava seus conhecimentos com o professor Ian Guest. Entre os alunos que passaram pelas aulas de Almir estavam nomes famosos, como Gal Costa, Moraes Moreira, Carlos Lyra, Tim Maia, Ed Motta e Cazuza, que se revezaram pelo seu Centro Musical instalado em Copacabana. 
Com sua morte, a MPB perdeu o autor de um trabalho que Tom Jobim definia como ''coisa patriótica''. Mais: perdeu um soldado insubstituível na guerrilha cultural travada entre a nossa música e a vertigem cretina das grandes gravadoras.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

O dom e a dor


Minha Esquina (Paulo César Pinheiro)

Já peguei meu violão
Pra falar do nosso amor
Mas se Deus concede o dom
A mulher concede a dor

Assim voltei pra minha esquina
Mas sem querer voltar
Canto até seis da matina
Para não ter que chorar

Mas não tem nada não eu vou ficando com a rapaziada
Cantando um samba e outro no meu violão
Poeta que é poeta mora na jogada
Um amor que vai é mais uma canção

Mas quem tira ainda vai pôr
Pela lei da proporção
Quando Deus pede o penhor
A mulher pede o perdão

E assim deixei a minha esquina
Mas sem querer deixar
Mas rotina por rotina
Eu vou levando por levar

Mas o meu nome vai ficando pela madrugada
Que eu tenho um samba e outro pra cada emoção
Poeta que é poeta não perde a parada
O que vem é festa pro meu coração

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

O biombo da violência

Tarantino é um esteta da violência e, do ponto de vista estritamente narrativo, um cultor dos roteiros virtuosos. Tanto que seus personagens costumam se revelar apenas em pequenas frestas do argumento e dos diálogos (em geral, verborrágicos e, quase sempre, sem propósitos). Ficam na contraluz do fluxo do enredo e de suas reviravoltas. Cinismo e ironia, em seus filmes, são palavras-chave. E também superficialidade. Já que a trama é colocada em primeiro plano, há muito poucos matizes, o drama humano é sempre caricato e breve. Tarantino tem uma notável habilidade para contar histórias e usar a violência como elemento cênico que media a relação dos personagens. No entanto, à medida que se sucedem suas obras - como reafirma o seu recente Bastardos Inglórios -, percebe-se que a violência é um biombo sob o qual se esconde um diretor de pequena extensão simbólica e de pequeno alcance psicológico. Qual a brutalidade do "bastardo" Brad Pitt, que costuma marcar a testa de seus perseguidos no filme, a violência de Tarantino está na superfície. Ainda bem. Qualquer outra pretensão poderia lhe tornar um diretor pernóstico e obtuso. Por enquanto, ele ainda vale nossos níqueis. 

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Elifas Andreato

A primeira porta para a discografia brasileira que se abriu para mim foram algumas capas de LP, que contemplava maravilhado na discoteca de meu pai desde minha mais remota infância. Eram de tal modo expressivas que me pareciam mais humanas que as fotos reais. Não raro, ficava na dúvida se o rosto figurado naquele quadrado mágico que embalava os discos era desenho ou uma fotografia. Na semiótica de minha infância - pessoal e intransferível -, aquelas capas deviam conter uma música igualmente fascinante. Não entendia o que queriam dizer. Mas ficava horas contemplando aquele traço, aquelas luzes, aquelas cores. Não era possível alguém se entregar com tanto carinho à representação de outrem daquela forma, sem estar embalado pelo mesmo carinho com a música daquelas pessoas.
Anos depois vim saber quem era o autor daquelas capas que tanto me fascinavam: Elifas Andreato. Hoje, se me perguntam qual a capa de disco mais bonita da música popular brasileira, respondo de imediato: qualquer uma do Elifas Andreato. Duas, em especial, acho de uma delicadeza tocante, as capas dos siameses Memórias Cantando e Memórias Chorando (foto acima), de Paulinho da Viola. Mas como não se emocionar com a fachada de LPs antológicos de Elis, Clementina, Adoniran, Martinho da Vila? Ou com as capas e encartes da coleção História da Música Popular Brasileira? Ou mesmo com todas as outras capas que Elifas produziu para o próprio Paulinho?
Hoje, o homem apaixonado pela música brasileira é resultado do sentimento que ficou cravado naquela criança fascinada pelas capas de Elifas Andreato. Seus desenhos não pavimentaram apenas minha relação com a música, mas ajudaram a criar um brasileiro apaixonado por seu País. Ajudaram a criar um homem que nunca entendeu aquela obrigação cínica de sermos inteligentemente irônicos, autodepreciativos e carregados de soberba ao criticar o Brasil - usando uma expressão do jornalista Hélio Campos Mello no editorial da edição de outubro da revista Brasileiros
Esse sentimento, Elifas conta em entrevista à mesma Brasileiros, "faz mal à saúde" - o que em seu caso se traduziu em alcoolismo. Mas "faz bem para a alma", como atestam a beleza e a ternura de suas pinturas, permeadas por um "expressionismo caboclo" e pela tenacidade de seu amor ao País. "A tal da esperança é uma companheira fiel", ele brinca. 
Abaixo, um trecho do documentário Elifas Andreato, um artista brasileiro.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

O barquinho mudou a rota


Chega de saudade! O barquinho mudou sua rota. Manteve a bússola da bossa nova de Jobim, mas, em vez do macio azul do mar, fez de sua carta náutica uma aquarela étnica e percorreu o mares bravios e intensos de suas raízes negras. Do samba ao west-coast, do candomblé ao hard-bop: axé Coltrane, axé Gerry Mulligan! Wes Montogomery pede a bênção a Pixinguinha e Silas de Oliveira. Água no pote de Oxalá e música na alma do mudo inteiro! 
O registro é do encontro de dois titãs do instrumental brasileiro. Curioso imaginar Paulo Moura falar com reverência de Jobim não fosse ele próprio um semi-deus da música mundial. Assim como Armandinho e suas doces molecagens "jacobaianas". O neologismo se revela pelo avesso do avesso do avesso. Afrobossanova o nome do disco que saiu esses dias por aí. Samba e jazz para além do esquematismo voz e violão. O beco das garrafas virou Sapucaí, Olinda e Pelourinho. Ipanema é New Orleans. Rua e dança e suor e cores. 
Paulo Moura cita Stravinsky, Severino Araújo e Nelson Alves e gargalha em agudíssimos para emoldurar a paixão por Luiza. A emoção ressoa no delay da baianinha de Armando e nos faz ver o Rio de Janeiro do alto de seu vôo de improvisos. 
O disco é introvertido pra fora e extrovertido pra dentro. 
Tudo samba!