“O Frank Sinatra vem ao Brasil, canta com seu copo de uísque na mão, todo mundo acha lindo. Agora, se o Waldick toma seu uisquinho, aí ele é um cachaceiro!...”. A frase de Waldick Soriano foi lembrada por Zeca Baleiro em sua coluna na revista Istoé. O texto me chamou atenção para uma distorção que pauta o debate sobre música popular no Brasil. Artistas como Waldick Soriano, eminentemente popular desde um tempo em que não havia pirotecnias de marketing para promover alguém à condição de ídolo, são apreciados hoje sob um jogo de luz cult que transforma em heróis cantores outrora classificados como brega. Esse mesmo mecanismo iridescente - que vem acompanhado de discos-tributo, DVD, biografia, etc - redimiu, no altar do mercado, gente como Odair José, Fernando Mendes, Reginaldo Rossi, entre outros.
A questão é que o debate sobre o que é "brega" e o que é "chique" - ou outros termos que evidenciem a mesma dicotomia - na música brasileira é absolutamente vazio e apenas legitima uma pulsão teórica que vai reafirmar o mercado como senhor de todos os caminhos e conceitos. Poucos cantaram como Sinatra, mas poucos também cantaram com o vozeirão de Waldick. Os dois foram "malandros" e sustentaram seus personagens até o fim da vida. O principal produto que vendiam, a canção, era bem resolvida tanto no trabalho de um quanto no de outro. E o mais importante: a rigor, as letras cantadas por Waldick e Sinatra estão, na média, absolutamente niveladas, falam da dor e da delícia de ser homem, com iguais pitadas de chauvinismo, arrogância e grosseria em ambos os casos.
O livro Eu não sou cachorro não, de Paulo César de Araújo - o mesmo autor da biografia-problema de Roberto Carlos - tentou redimir ídolos como Waldick e Paulo Sérgio dentro da história oficial da MPB. E trouxe uma série de "revelações" difíceis de engolir para quem se acostumou a entender a história da nossa música apenas do ponto de vista dos nossos medalhões. No entanto, não conseguiu ir além da dicotomia brega/chique que deixa a conversa meio embeiçada. A grife não importa. O poder de comunicação da música costuma vazar pelo ladrão dos rótulos.
Baleiro erra feio ao escrever que Waldick talvez seja o mais brasileiro dos artistas brasileiros. Justamente porque sua música não é a mais brasileira. A música brasileira será sempre muito mais rica e surpreendente do que a medida do sucesso de fulano ou do poder de comunicação de cicrano. Esteja ele tomando o uísque do Waldick ou de Vinícius de Moraes. No entanto, Zeca acerta na mosca quando afirma que o cantor de "Eu não sou cachorro não" é uma face do Brasil que o Brasil não quer ver, que não reconhece como legítima, que folcloriza para reduzi-la.
Em resumo, é a profunda confusão em torno do mito "povo" - desde os tempos do CPC, inclusive - que esculhamba qualquer tentativa séria de levar adiante a discussão sobre música no Brasil. Daí porque limitar o debate ao fla-flu do brega x chique não vai nos levar a canto nenhum.
Um brinde, Waldick!
2 comentários:
Algo sempre me incomodou muito nessa discussão sobre música boa e música ruim. Brega e chique. Certo ou errado. Bonito e feio. Para mim, música boa é a que (me) toca. Beijo grande.
Excelente post. Preciso, equilibrado, ancorado em ponderações coerentes, mas permita-me meter também a minha colher nesse angu de caroço.
Uma questão seminal e anterior ao debate brega x chique de que você fala é a dos lugares da produção cultural, classicamente definidos pelas Ciências Humanas como a elite e o povo. Assim, haveria na sociedade dois tipos de cultura a de elite e a popular. A diferença existente entre a cultura da elite e a cultura popular é real e é analisada por diversos autores. Todavia, aparentemente simples, essa classificação hoje mais complica do que ajuda no entendimento da cultura e de suas dinâmicas de produção e consumo.
O problema, como o vejo, não é admitir que a cultura da elite e a cultura popular são diferentes, o nó se dá quando a elite, para que sua cultura se sobressaia, deprecia a do povo. Na verdade, uma cultura não anula a outra, ambas podem coexistir, sem que a outra precise desaparecer. O que impede que isto aconteça está no plano ideológico. Pois, a ideologia dissimula a realidade e faz com que a cultura universal seja a da classe dominante. Neste sentido, com o intuito de escamotear o direito do povo de fazer e de ter cultura, a elite denominou a cultura do povo de cultura popular.
Muito embora pareçam ser uma coisa só, existe, como bem observou Marilena Chauí, um abismo separando cultura do povo de cultura popular. A grande diferença, segundo Chauí, é que quando se diz cultura popular, se quer dizer que tal cultura está no povo, mas não foi necessariamente produzida pelo povo; e, quando se diz cultura do povo, se quer dizer que é do povo e também foi produzida por ele.
A cultura do povo, também é confundida com a cultura de massa entretanto, possuem significados distintos. Assim, programas de TV como os do Silvio Santos e do Faustão, ou a música de Sandy & Junior e Vanessa Camargo, são cultura de massa que se torna popular, porque massificada entre o povo, mas não são cultura do povo, porque não têm sua produção vinculada às raízes das tradições populares.
A cultura do povo é, na verdade, tudo que o caracteriza e o une, diferenciando-o da elite, posto que gestada e dinamizada pelo próprio povo; sua tradição, suas danças, músicas e tudo o mais que o defina como tal. Todavia seria ingenuidade, imaginar que não haja, entre as várias instâncias da cultura, trocas e apropriações, que impossibilitam o princípio de uma cultura pura, seja da elite, seja do povo.
Desta forma, como vejo, ao cantar as venturas e desventuras do “amor à brasileira”, definido por Gilberto Freyre como o resultado do encontro entre machismo português com a sensualidade africana, Waldick Soriano fazia uma música com raiz na cultura do povo, mas que foi apropriada e banalizada pelo mercado fonográfico, tornando-se, em certa medida, cultura de massa. O que em nada diminui o seu mérito como cantor e compositor.
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