quinta-feira, 17 de julho de 2014

Sertãomar na Terra do Sol: os 50 anos de um clássico de Glauber Rocha



Por Ricardo Guilherme

Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha (1939-1981) faz 50 anos. O filme, lançado em 1964, conta a história de um casal sertanejo (Manuel e Rosa) que, tentando se insurgir contra a opressão do sistema latifundiário do Nordeste, tem diante de si as opções de integrar-se a uma irmandade de penitentes ou a um grupo de cangaceiros. Na demonstração deste impasse tão arquetipicamente nordestino, o cineasta elabora, pelo menos, três seqüências de cenas representativas dos domínios do sagrado e do profano.
Na primeira, o Beato Sebastião indica aos seus seguidores o chamado monte santo, na Bahia, como o caminho da salvação. Assegura que do outro lado dessa elevação, há um lugar, mais precisamente uma ilha, onde ‘‘quem é pobre fica rico com o poder de Deus’’.
Na antevisão desse espaço idealizado, no qual inexiste o conflito, subjaz uma referência à idéia desenvolvida em 1516 por Thomas Morus (1480-1535) no livro em que o romancista inglês relata a vida dos habitantes de uma ilha denominada Utopia, onde um governo idealmente organizado propicia condições de vida excepcionais a um povo também equilibrado e feliz.
O Beato, em suas profecias inspiradas nas prédicas de Antônio Conselheiro (1831-1897) associa o fim do regime de exploração do trabalho em que vive o povo sertanejo à possibilidade de um projeto compensador no qual a justiça divina o livrará de todo o Mal. Esta projeção pressupõe, no plano do imaginário, uma ilha de relações harmoniosas, ilha cujo protótipo encontra correlações com o símbolo de um centro espiritual recorrente em inúmeras cosmogonias religiosas.
Ilhas paradisíacas, nas mais diversas culturas arcaicas, seja no Oriente ou no Ocidente, cristalizam a tradição da existência de um local sagrado apto a curar as doenças do corpo e do espírito de quem nele penetra. A ilha simboliza o Nirvana, ‘‘ o outro mundo e o além misterioso’’ descritos no Dicionário dos Símbolos, por Jean Chevalier e Alain Greerbrant. Ilhas figuram no ideário mítico como representantes da perfeição cósmica, santuários nos quais os eleitos dos deuses se exilam do mundo profano, a salvo das tentações dos desejos materiais inconscientes. A transcendência antevista pelo Beato de Deus e o Diabo na Terra do Sol, aponta, portanto, essa ilha que apenas os bons de alma e os convertidos pela Fé poderão, no futuro, conhecer.
Como se nos ensinasse que essa espera induz os camponeses não à inquietação pragmática mas a uma alienação que emperra o curso das revoluções radicais, Glauber Rocha faz com que seus protagonistas, Manuel e Rosa, sejam desgarrados do grupo de penitentes do Beato Sebastião e procurem outra alternativa.
Em plano geral, aparece, então, o casal, andando sertão adentro, sem rumo. Na imensidão do plano aberto, os dois, uma espécie de Adão e Eva da cosmogonia nordestina, apressam os passos, aflitos, como se fossem perseguidos na solidão do semi-descampado filmado em branco e preto. A câmera, de longe, os acompanha, testemunhando a caminhada em panorâmica horizontal, traçando um olhar contínuo e reto que recorta a paisagem e flagra as figuras humanas dentro dela, diminutas e errantes.
As personagens fogem do assédio e das promessas messiânicas do Beato Sebastião. Rebelam-se contra a fé nas profecias. Estão órfãos da Bandeira do Divino e esta orfandade os transforma em mal-aventurados que desbravam, em fuga tortuosa, um labirinto de atalhos entrecortados por mandacarus, xiquexiques e bromélias.
Sem a redenção proposta pelo missionário leigo que adia para depois do fim do mundo e para o pós-morte a recompensa pelas agruras da terra do sol, os deserdados glauberianos prosseguem, atônicos e autômatos, no limbo da desolação ensolarada e correm em busca não mais de um milagre mas de uma reversão talvez possível, ainda que à margem do Credo e da ordem político-social. Percorrem os confins do desconhecido e se embrenham, desnorteados, egressos dos assombros apocalípticos.
É assim que Manuel e Rosa se lançam sem defesa ao perigo do destino até que se deparam com Corisco, o detentor do espólio heróico de Lampião, o redentor dos despojos do cangaço. Corisco, o Diabo Louro sobrevivente do massacre de Angicos (Sergipe,1938), se apresenta aos protagonistas como a reencarnacão de Virgulino Ferreira e um aliado de São Jorge, reafirmando em sua fala a mística de um herói invencível, ou seja, a invencibilidade de um santo guerreiro, representante do povo, ao qual é conferida uma dimensão trans-histórica.
Se eu morrer, nasce outro, diz Corisco, confirmando a utopia que se configura agora não no rosário mas no rifle e no punhal. Seu corpo, borrifado pelo leite da Virgem Maria, batizado com o sangue de Cristo e fechado pelos poderes sobrenaturais do Padre Cícero, transcende a mortalidade e, imaterial, se eterniza no mito.
Outra seqüência do filme, também significativa para a recriação dos arquétipos nordestinos, é aquela em que Glauber Rocha faz o cantador na trilha sonora afirmar que ‘‘ assim mal dividido, esse mundo anda errado’’ pois ‘‘ a terra é do homem, não é de Deus nem do diabo’’.
Em cena, Rosa e Manuel atravessam a caatinga, deixando para trás o corpo de Corisco, assassinado pelo jagunço Antônio das Mortes. A câmera os segue, à distância, como se também corresse, solidária com os fugitivos. Ecoam no ar os tiros que se entrecruzam enquanto os protagonistas, atordoados pelos estampidos, mais e mais se apressam, correndo pelas trilhas de pedras imensas e planas. De repente, num corte quase imperceptível, a locação se transfere do sertão para uma paisagem marítima e, então, o espectador vê o casal entrar em quadro, dando continuidade à fuga, agora entre dunas e falésias. Rosa tropeça na areia frouxa e cai. Manuel a ultrapassa e a câmera a desenquadra, seguindo apenas o percurso de Manuel que se arvora, vencendo os relevos que se interpõem.
Depois, o enquadramento da câmera ,em panorâmica mais veloz do que os passos de Manuel, ultrapassa o personagem até eliminá-lo de quadro, fazendo com que se veja apenas o litoral, o mar revolto. Aí, a linha do horizonte aparece ao longe, dividindo ao meio a tela. Do lado superior, o céu. No inferior, a praia deserta. A câmera, numa tomada aérea de movimento panorâmico contínuo e invariavelmente em plano geral absoluto, antecipa ao espectador o ponto de chegada da longa e retilínea correria de Manuel, que é, enfim, a praia,o mar.
Assim, Glauber compõe a dimensão simbólica de uma geografia em que o sertão se integra ao mar, de forma inteiriça, ininterrupta, e concretiza, por essa transgressão topográfica feita pela articulação de imagens de locações litorâneas e sertanejas, a utopia de Antônio Conselheiro, incorporada à música que acompanha a seqüência até este ponto. Diz a letra que o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão e, a partir daí, cria-se um espaço ficcional, o sertãomar, que viabiliza o impossível, a Pasárgada. É o momento em que a trilha sonora se transfigura num cântico religioso, dotando a imagem de uma sacralidade sobre a qual vozes em coro se erguem, como se oriundas de uma catedral.
O sertãomar, então, se revela, não a Deus ou ao Diabo, mas ao Homem, a esse Homem sacro e profano representado por Manuel, (referência a Emanuel, um dos nomes bíblicos do Messias) que, ao longo da história, havia sido rebatizado por Corisco como Satanás. Os denominações encarnam a tese e a antítese da dicotomia do personagem entre as opções da religiosidade e do cangaço. Afinal, para Glauber, beatos e cangaceiros são o alfa e o ômega da gesta nordestina. Manuel vivencia esta polaridade e se apossa do sertãomar para conscientizar-se de que assim como a terra é do homem e não de Deus ou do Diabo, também o Homem pertence somente e tão-somente a si mesmo.

Ricardo Guilherme é ator, dramaturgo e escritor

 

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