segunda-feira, 28 de julho de 2014

Matthew Halsall: o jazz em forma de oração


Matthew Halsall é uma estrela em ascensão no jazz britânico. Trumpetista, arranjador, compositor, também dirige seu próprio selo de música contemporânea. Seu disco On the go (2011) ganhou inúmeros prêmios e lhe tornou conhecido na cena mundial do jazz. When the world was one, seu disco mais recente, acaba de sair do forno numa parceria com Gondwana Orchestra. Pianos que recendem a McCoy Tyner (e que carregam a estrutura modal nas costas), texturas musicais que dialogam com sonoridades do Oriente e uma imanente espiritualidade que percorre todo o disco não são à toa. Matthew é fascinado pela obra de John Coltrane, sobretudo em sua fase mais meditativa. Mas, ao contrário das construções quase inalcançáveis do gênio norte-americano, seu som em forma de oração é direto e simples. Esse, por ora, já se coloca como um dos grandes discos de jazz do ano.


Steve Morse, 60 anos

Uma pausa para o rock com o guitarrista Steve Morse (Dixie Dregs, Deep Purple, Kansas, Flying Colors, etc), aniversariante do dia.

Uma praça a menos em Fortaleza



Mais uma praça na mira da gestão Roberto Claudio. E novamente - pra variar - sem debate com a população e com o atropelo do devido rito legal na Câmara dos Vereadores.

Aquela agradável pracinha na Aganambi, nas proximidades da AMC, onde funciona o bar Pé de Serra, dará lugar a uma das pistas do projeto de alargamento da avenida. A informação consta na planta da obra (foto acima), a que alguns moradores do entorno tiveram acesso. Uma grande pena, uma grande tristeza. Em vez de fortalecer os espaços de convivência da Cidade - e aquele é um pequeno e simpático oásis de sombra e brisa em meio ao caos do trânsito no Joaquim Távora, além de ser um local de concorridos encontros musicais e boêmios - a Prefeitura Municipal de Fortaleza investe mais uma vez na estupidez do asfalto e na lógica da cidade feita para carros, não para pessoas.

Lembro de uma entrevista em que o arquiteto dinamarquês Jan Gehl, consultor de projeto urbanístico para as cidades de Londres e Sydney, apontava onde é que os planejadores erraram nas tramas urbanas da contemporaneidade: “os planejadores olhavam de cima os modelos em escala das cidades. O que faltou foi uma visão do ambiente na altura dos olhos”.

No caso de Fortaleza, falta não só essa visão na "altura dos olhos" (o que fica bem mais difícil com o tipo de prefeito que temos, truculento, arrogante, submisso ao interesses do grande capital). Falta a base de uma visão técnica propriamente dita (aqui tudo é feito às pressas, de forma enviesada), mas, sobretudo, uma relação mais honesta e amorosa com a Cidade.

Enfim, mais uma praça que se vai; mais um revés para Fortaleza.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Onde houver ouro, que eu viva o lixo



Desculpem o mau humor nessa hora - talvez seja pela iminência da partida do mestre Ariano Suassuna (que, ao contrário do O Globo, torço para que não aconteça tão cedo). Mas vendo esse vídeo da Snarky Puppy, uma formação instrumental de Nova York, fico aqui a pensar como o mundo segue querendo saber das coisas boas da nossa música (xote, baião, samba, maracatu, etc); mas nós insistimos em querer saber apenas das nossas próprias versões em negativo (forró de plástico, pagode romântico, funk ostentação, sertanejo univesitário, etc).
O mundo segue vendo ouro na gente e a gente montando uma enorme cadeia de produção de lixo. O mundo querendo saber mais do Brasil grandioso e intenso de Ariano Suassuna, de Darci Ribeiro, de Cartola, de Villa-Lobos, de Tom Jobim, de Mano Brown; e a gente insistindo no Brasil pequeno, no Brasil cretino de Regina Casé, de Luciano Huck, de Michel Teló, de Wesley Safadão.
Ao longo de décadas, o lixo parece ter sido tanto que nossas veias armoriais entupiram,  nosso aparelho tropicalista engasgou, quebrou. Não digere mais nada. Não processa mais som algum. A cólica é a sina de nossa antropofagia tardia. Nossa música "oficial" - aquela das rádios e da televisão - tornou-se a pior expressão do que poderíamos ser. Enquanto Leminski anunciava que "isso de querer ser / exatamente aquilo / que a gente é / ainda vai / nos levar além", o brasileiro insiste em querer ser um pastiche, um reflexo apagado e tosco de si mesmo. Insistimos em ser aquém. A sermos um celeiro musical do mundo, preferimos nos tornar um aterro sanitário continental.

terça-feira, 22 de julho de 2014

Os espinhos de Gaza (Poemetes Araújos - XXVII)




Em Gaza, as crianças,
mudas, telepáticas,
estão gritando de dor.
As meninas, cegas,
estão suplicando
aos nosso olhos:
o horror.

Os palestinos sentem
o vômito,
a delinquência,
a cirrose,
sentem o peso
da mesma mão
invisível
que outrora ergueu
rosas radioativas
sobre outros povos.

Essa mão
estúpida
agora
ajuda a despejar
espinhos de liberdade,
milhares, milhões de
espinhos de uma
tirânica liberdade,
sobre inocentes,
esperando decerto
o momento inexato para
se servir de novas
antirrosas atômicas.

Em Gaza, desde a época
da Rosa de Hiroshima,
todo um povo está tendo
sua rota alterada.
Rumo ao extermínio.
Em lenta agonia,
numa suíte anti-musical
regida pela mentira.

Enfim, pensem.
E esqueçam essa poesia.
Não é possível a poesia.
Não é possível Vinícius.
Ninguém dormirá hoje.

Não é possível dormir em Gaza.
Nem fora dela.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Sertãomar na Terra do Sol: os 50 anos de um clássico de Glauber Rocha



Por Ricardo Guilherme

Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha (1939-1981) faz 50 anos. O filme, lançado em 1964, conta a história de um casal sertanejo (Manuel e Rosa) que, tentando se insurgir contra a opressão do sistema latifundiário do Nordeste, tem diante de si as opções de integrar-se a uma irmandade de penitentes ou a um grupo de cangaceiros. Na demonstração deste impasse tão arquetipicamente nordestino, o cineasta elabora, pelo menos, três seqüências de cenas representativas dos domínios do sagrado e do profano.
Na primeira, o Beato Sebastião indica aos seus seguidores o chamado monte santo, na Bahia, como o caminho da salvação. Assegura que do outro lado dessa elevação, há um lugar, mais precisamente uma ilha, onde ‘‘quem é pobre fica rico com o poder de Deus’’.
Na antevisão desse espaço idealizado, no qual inexiste o conflito, subjaz uma referência à idéia desenvolvida em 1516 por Thomas Morus (1480-1535) no livro em que o romancista inglês relata a vida dos habitantes de uma ilha denominada Utopia, onde um governo idealmente organizado propicia condições de vida excepcionais a um povo também equilibrado e feliz.
O Beato, em suas profecias inspiradas nas prédicas de Antônio Conselheiro (1831-1897) associa o fim do regime de exploração do trabalho em que vive o povo sertanejo à possibilidade de um projeto compensador no qual a justiça divina o livrará de todo o Mal. Esta projeção pressupõe, no plano do imaginário, uma ilha de relações harmoniosas, ilha cujo protótipo encontra correlações com o símbolo de um centro espiritual recorrente em inúmeras cosmogonias religiosas.
Ilhas paradisíacas, nas mais diversas culturas arcaicas, seja no Oriente ou no Ocidente, cristalizam a tradição da existência de um local sagrado apto a curar as doenças do corpo e do espírito de quem nele penetra. A ilha simboliza o Nirvana, ‘‘ o outro mundo e o além misterioso’’ descritos no Dicionário dos Símbolos, por Jean Chevalier e Alain Greerbrant. Ilhas figuram no ideário mítico como representantes da perfeição cósmica, santuários nos quais os eleitos dos deuses se exilam do mundo profano, a salvo das tentações dos desejos materiais inconscientes. A transcendência antevista pelo Beato de Deus e o Diabo na Terra do Sol, aponta, portanto, essa ilha que apenas os bons de alma e os convertidos pela Fé poderão, no futuro, conhecer.
Como se nos ensinasse que essa espera induz os camponeses não à inquietação pragmática mas a uma alienação que emperra o curso das revoluções radicais, Glauber Rocha faz com que seus protagonistas, Manuel e Rosa, sejam desgarrados do grupo de penitentes do Beato Sebastião e procurem outra alternativa.
Em plano geral, aparece, então, o casal, andando sertão adentro, sem rumo. Na imensidão do plano aberto, os dois, uma espécie de Adão e Eva da cosmogonia nordestina, apressam os passos, aflitos, como se fossem perseguidos na solidão do semi-descampado filmado em branco e preto. A câmera, de longe, os acompanha, testemunhando a caminhada em panorâmica horizontal, traçando um olhar contínuo e reto que recorta a paisagem e flagra as figuras humanas dentro dela, diminutas e errantes.
As personagens fogem do assédio e das promessas messiânicas do Beato Sebastião. Rebelam-se contra a fé nas profecias. Estão órfãos da Bandeira do Divino e esta orfandade os transforma em mal-aventurados que desbravam, em fuga tortuosa, um labirinto de atalhos entrecortados por mandacarus, xiquexiques e bromélias.
Sem a redenção proposta pelo missionário leigo que adia para depois do fim do mundo e para o pós-morte a recompensa pelas agruras da terra do sol, os deserdados glauberianos prosseguem, atônicos e autômatos, no limbo da desolação ensolarada e correm em busca não mais de um milagre mas de uma reversão talvez possível, ainda que à margem do Credo e da ordem político-social. Percorrem os confins do desconhecido e se embrenham, desnorteados, egressos dos assombros apocalípticos.
É assim que Manuel e Rosa se lançam sem defesa ao perigo do destino até que se deparam com Corisco, o detentor do espólio heróico de Lampião, o redentor dos despojos do cangaço. Corisco, o Diabo Louro sobrevivente do massacre de Angicos (Sergipe,1938), se apresenta aos protagonistas como a reencarnacão de Virgulino Ferreira e um aliado de São Jorge, reafirmando em sua fala a mística de um herói invencível, ou seja, a invencibilidade de um santo guerreiro, representante do povo, ao qual é conferida uma dimensão trans-histórica.
Se eu morrer, nasce outro, diz Corisco, confirmando a utopia que se configura agora não no rosário mas no rifle e no punhal. Seu corpo, borrifado pelo leite da Virgem Maria, batizado com o sangue de Cristo e fechado pelos poderes sobrenaturais do Padre Cícero, transcende a mortalidade e, imaterial, se eterniza no mito.
Outra seqüência do filme, também significativa para a recriação dos arquétipos nordestinos, é aquela em que Glauber Rocha faz o cantador na trilha sonora afirmar que ‘‘ assim mal dividido, esse mundo anda errado’’ pois ‘‘ a terra é do homem, não é de Deus nem do diabo’’.
Em cena, Rosa e Manuel atravessam a caatinga, deixando para trás o corpo de Corisco, assassinado pelo jagunço Antônio das Mortes. A câmera os segue, à distância, como se também corresse, solidária com os fugitivos. Ecoam no ar os tiros que se entrecruzam enquanto os protagonistas, atordoados pelos estampidos, mais e mais se apressam, correndo pelas trilhas de pedras imensas e planas. De repente, num corte quase imperceptível, a locação se transfere do sertão para uma paisagem marítima e, então, o espectador vê o casal entrar em quadro, dando continuidade à fuga, agora entre dunas e falésias. Rosa tropeça na areia frouxa e cai. Manuel a ultrapassa e a câmera a desenquadra, seguindo apenas o percurso de Manuel que se arvora, vencendo os relevos que se interpõem.
Depois, o enquadramento da câmera ,em panorâmica mais veloz do que os passos de Manuel, ultrapassa o personagem até eliminá-lo de quadro, fazendo com que se veja apenas o litoral, o mar revolto. Aí, a linha do horizonte aparece ao longe, dividindo ao meio a tela. Do lado superior, o céu. No inferior, a praia deserta. A câmera, numa tomada aérea de movimento panorâmico contínuo e invariavelmente em plano geral absoluto, antecipa ao espectador o ponto de chegada da longa e retilínea correria de Manuel, que é, enfim, a praia,o mar.
Assim, Glauber compõe a dimensão simbólica de uma geografia em que o sertão se integra ao mar, de forma inteiriça, ininterrupta, e concretiza, por essa transgressão topográfica feita pela articulação de imagens de locações litorâneas e sertanejas, a utopia de Antônio Conselheiro, incorporada à música que acompanha a seqüência até este ponto. Diz a letra que o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão e, a partir daí, cria-se um espaço ficcional, o sertãomar, que viabiliza o impossível, a Pasárgada. É o momento em que a trilha sonora se transfigura num cântico religioso, dotando a imagem de uma sacralidade sobre a qual vozes em coro se erguem, como se oriundas de uma catedral.
O sertãomar, então, se revela, não a Deus ou ao Diabo, mas ao Homem, a esse Homem sacro e profano representado por Manuel, (referência a Emanuel, um dos nomes bíblicos do Messias) que, ao longo da história, havia sido rebatizado por Corisco como Satanás. Os denominações encarnam a tese e a antítese da dicotomia do personagem entre as opções da religiosidade e do cangaço. Afinal, para Glauber, beatos e cangaceiros são o alfa e o ômega da gesta nordestina. Manuel vivencia esta polaridade e se apossa do sertãomar para conscientizar-se de que assim como a terra é do homem e não de Deus ou do Diabo, também o Homem pertence somente e tão-somente a si mesmo.

Ricardo Guilherme é ator, dramaturgo e escritor

 

Quino, o aniversariante do dia



Joaquín Salvador Lavado Tejón, o Quino, mestre argentino do humor e dos quadrinhos, completa hoje 77 anos. Ao lado de Borges e Sábato, é o autor argentino mais traduzido pelo mundo, graças, sobretudo, ao sucesso de sua personagem Mafalda. Abaixo, um documentário sobre a arte de Quino, o Millôr Fernandes platense.

                   

quarta-feira, 16 de julho de 2014

A beleza segundo Sorrentino

Toni Servillo em cena do filme de Sorrentino: a beleza como
justificativa do próprio tempo

A alegria não é, afinal, ou talvez não necessariamente, a prova dos nove - para usar os versos de Oswald de Andrade. Mas a beleza, sim. A alegria, sobretudo aquela sublimação de humores superficial e mediada pelo consumo e pela ostentação, é uma perda de tempo, uma máscara, um refúgio. A alegria artificial é sempre uma desculpa vulgar e, por contraditório que pareça, insuportavelmente triste. Já a beleza, não. A beleza, por mais impreciso e intrigante que seja seu conceito, se coloca como justificativa do próprio tempo, como a assertiva maior da própria experiência humana. E é ela que pode nos conduzir à felicidade. É isso que parece nos propor o diretor e roteirista Paolo Sorrentino no seu tocante A Grande Beleza, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro deste ano e um dos concorrentes em Cannes.

Tendo como cenário uma Roma de visual arrebatador e ostensivo (e aí, de imediato, ligamos o filme à obra-prima felliniana de A Doce Vida), A Grande Beleza nos traz o jornalista Jep Gambardella circulando pelo grand monde burguês da Cidade Eterna buscando respostas para suas inquietações profissionais e pessoais. Jornalista bem sucedido, escritor que ficou famoso pelo único livro que escreveu e um sedutor incansável, ele tem como amigos e interlocutores figuras caricatas e decadentes que se encontram em festas igualmente caricatas (a referência a Fellini se dá em diversas camadas da narrativa) que costuram a rotina vazia de uma aristocracia intelectual cínica e esnobe. 

Sobra alegria em meio a tanta beleza; e, ainda assim, os personagens de Sorrentino são seres humanos infelizes e solitários, no limite do tédio, no limite de suas frustrações. Essa ficha cai para Gambardella junto com a percepção de seu próprio envelhecimento. É quando ele inicia seu ciclo de auto-questionamento, contemplando em seus pares a inutilidade e a superficialidade de seus estilos de vida e tentando (re)descobrir a potência da beleza no ato de criação artística e nas tramas de relações humanas.

Ao longo do filme, ele procura resgatar uma intensidade perdida. Procura retomar uma vivacidade que, entretanto, ele não sabe ao certo se lhe fugiu junto com a juventude; se teria lhe escapado por conta de sua falta de convicção política, da sua vida amorosa desregrada, do seu alheamento em relação à espiritualidade ou de sua reconhecida alienação diante da miséria e da pobreza. Entretanto, nenhuma dessas "narrativas" - a política, a religião, a economia, a juventude, etc - lhe ampara. É quando emerge da narrativa seu questionamento fundamental: a experiência humana talvez seja condicionada por uma radicalidade que prefere se ater aos meios e nos faz esquecer dos fins.

O filme de Sorrentino, assim como Flaubert nas palavras do crítico Émile Faguet, trafega num romantismo que desenha a realidade como algo raso demais e, ao mesmo tempo, num realismo que considera o romantismo vazio. Seu protagonista misantropo é um artista que acha os burgueses grotescos e também um burguês que acha os artistas pretensiosos demais. Sobra, ao final, apenas a constatação do ridículo dos artifícios humanos, do barulho, da "fofoca", da fogueira de vaidades, do frisson hedonista - expedientes atrás dos quais parece se esconder a real beleza e a real intensidade da vida. É quando, talvez, ele encontra algumas respostas sobre sua própria trajetória.

A bela trilha instrumental que encerra o filme é um dos mais belos momentos do longa. Mas poderia tranquilamente ser trocada pela música "Vida", de Chico Buarque, de versos que parecem ter sido escritos sob encomenda de Sorrentino: "Vida, minha vida / Olha o que é que eu fiz / Deixei a fatia / Mais doce da vida / Na mesa dos homens / De vida vazia / Mas, vida, ali / Quem sabe, eu fui feliz".


terça-feira, 15 de julho de 2014

A direita envergonhada (por enquanto...)


A verdadeira agenda da direita demo-tucano-aecista para o Brasil não tem grandes novidades. Na verdade, é tão óbvia que soa meio clichê: desemprego, arrocho salarial, privatizações, sucateamento do estado, escalada dos juros, alienação da indústria nacional, aumento das tarifas públicas, cortes no orçamento das políticas sociais, etc, etc, etc.

"Essas propostas estão sendo aplicadas na Grécia, na Espanha e na Itália, e não têm nada de original. Elas obedecem aos interesses e ao comando das grandes corporações transnacionais e da acumulação financeira", diz Silvio Caccia Bava, do Le Monde Diplomatique Brasil. "A novidade não está no andar de cima, com seu consumo de elite. A novidade está no ingresso de dezenas de milhões de brasileiros no mundo do consumo, alimentando um mercado de produtos de massa, circuitos curtos de produção e consumo, gerando emprego e bem-estar. Tudo isso implicou a redução do ganho dos rentistas".

Por ora, Aécio e seus formuladores seguem constrangidos em defender publicamente esses objetivos. Falta-lhes coragem e honestidade intelectual - a mesma honestidade intelectual que falta a alguns "petistas" na hora de escamotear o fato de que o novo programa de governo de Dilma não contempla aspectos fundamentais para uma agenda progressista como a democratização dos meios de comunicação. Enquanto isso, Aécio e sua curriola se servem de uma assombrosa cortina de fumaça midiática para confundir a opinião pública em torno de seus reais interesses para o País.

Parafraseando os versos de Chico, essa terra ainda pode tornar-se um imenso Portugal, uma imensa Grécia, uma imensa Espanha...

P.S. - a íntegra do texto do Silvio Caccia Bava pode ser acessada aqui.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

R.I.P. Charlie Haden (1937-2014)

A Kizomba de Pedrina



Uma guerreira negra vive em Fortaleza há vinte anos. Entre a lida como professora universitária e a paixão pelo samba, Pedrina de Deus reafirma a luta e a alegria do movimento negro

Segundo o candomblé, o ser humano é regido por três orixás - que são os deuses africanos que correspondem a forças da natureza. Há o orixá de defesa; o da personalidade, ou orixá de cabeça; e o orixá de proteção, que vai abrindo “os caminhos”. “São essas três forças que guiam a pessoa em sua caminhada, porque para o candomblé a vida é uma caminhada”, explica a professora e consultora de marketing Pedrina de Deus.

Guiada por Ogum (seu orixá de frente), Exu (cabeça) e Iansã (defesa), essa paraense de 64 anos (20 dos quais vividos em Fortaleza) fez de sua caminhada uma trajetória de retidão e de luta. “Essa é uma combinação conflituosa de orixás, mas não no sentido bélico. É uma tríade que trabalha com muito senso de justiça. São orixás muito fortes. Às vezes eles me engessam, porque me obrigam a não admitir algo que não seja no sentido da retidão”.

Em 1967, quando a revista Realidade trouxe, sob a inscrição “Mulher brasileira” uma loura de olhos verdes numa de suas capas, Pedrina provocou seus colegas de escola em Belém. “A revista teve dois temas censurados: fotos sobre o corpo da mulher e uma reportagem com a mãe de santo Olga de Alaketu. A única negra que haveria na edição foi censurada pelo governo - eu tinha 17 anos e fiquei decidida a botar o tema (da condição da mulher negra) na rua!”, lembra.

Começava assim uma militância que hoje conta quase 50 anos dedicados não só ao movimento negro, mas principalmente ao movimento de mulheres negras, no qual Pedrina se tornou referência nacional. Uma luta de combate ao racismo que, no lugar da ladainha dos clichês e da vitimização inócua, mistura altivamente festa e resistência; alegria e enfrentamento.

“Pedrina, negra, cabeça raspada já na década de 70!, brincos exagerados, olhar firme, meio doce, meio belicoso”, descreve o sociólogo e historiador carioca Amauri Mendes Pereira, que prepara um livro sobre a professora. “É uma personagem emblemática na trajetória do movimento negro”, afirma.

Nos anos 70, Pedrina participou (e mais tarde dirigiu) o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), no Rio de Janeiro, o que lhe permitiu se aproximar do samba e de outras expressões culturais afro-brasileiras - e lhe ajudou a formular sua síntese de negritude festiva. “Era a época da ditadura, a forma que a gente tinha de discutir a questão racial do ponto de vista político era camuflado no cultural. E o cultural, para o negro, era o samba... Era como a gente conseguia se encontrar”, lembra a fundadora, nos anos 80, do bloco Baoobab, em Vila Isabel. Nessa época, Pedrina participava ativamente da escola de samba do bairro - inclusive colaborando no desfile de 1988, quando a Vila levou o título com o enredo “Kizomba, a festa da raça”.

Abolição no Ceará
Em sua kizomba pessoal, nessa caminhada que mistura festa e resistência, Pedrina segue denunciando mas também cantando a condição dos negros no Ceará e no Brasil. Sobre os 130 anos da abolição da escravatura no Estado, diz que foi apenas uma questão de conveniência econômica e que os negros cearenses precisam fazer um resgate mais amplo de sua história. “A lei que aboliu a escravidão foi quase monossilábica: ‘estão libertos os escravos’. E pronto”, defende. “É preciso um movimento negro forte pra fazer o resgate cultural dessa história e dessa memória”.

Sobre as cotas raciais, ela afirma que são instrumentos importantes mas que deverão se esvaziar naturalmente. “A tendência da cota é ela se acabar. Não precisa ninguém acabar. Basta ter justiça social que ela acaba. A cota só existe como um motor. Na hora em que começo a ter acesso à educação, ela se acaba”, diz.

Em Fortaleza, onde se reencontrou com o samba nos antigos pagodes da Dona Mocinha, na Praia de Iracema, Pedrina ajudou a criar o Encontro de Compositores de Samba (Eccos), um clube de músicos que se reúne mensalmente em sua casa. “O samba cearense me cativou com sua molecagem poética. O povo não elitizado de Fortaleza é uma maravilha cultural e humana”, declara em trecho do próximo livro de Amauri Mendes. “Sou apaixonada pelo Rio, namoro Brasília; amo Belém. Mas Fortaleza fortalece o que sou e me deixa viver suburbanamente como gosto de viver”.

Mais sobre Pedrina
  • Pedrina é um dos verbetes do livro Mulheres Negras do Brasil, de Schuma Schumaher e Erico Vital Brazil, editado em 2006 pelo Senac e pela Rede de Desenvolvimento Humano (Redeh).
  • Formada em Comunicação Social pela UNB, tornou-se publicitária no Rio de Janeiro, onde viveu entre 1975 e 1993. Veio para Fortaleza auxiliar um amigo que trabalhava com consultoria de marketing e acabou fixando residência.
  • Apesar de ser uma entusiasta do candomblé, Pedrina diz que sua religião são “todas as religiões”. “Porque se todos os caminhos levam a Deus, eu tenho todas as religiões. Mas faço um adendo: todas as religiões que praticam o que pregam”
  • "Kizomba" é uma palavra do dialeto quimbundo, de Angola, que significa ao mesmo tempo confraternização e resistência. É festa e é luta - por liberdade e por justiça.

* Texto publicado originalmente no caderno DOM, do jornal O POVO (Fortaleza-CE)

A imagem (poemetes araújos - XXVI)


(Para Iana Soares)

Falta à imagem,
não a tela ou o
espelho.
Ela que é seu próprio
reflexo.
Tampouco falta-lhe
pensar-se
como luz, escrita.
Seu conceito e suas tramas
querem mais
é desarrumar o coro dos signos
e transbordar
em outras grafias,
outras
imagens.

Falta-lhe,
o registro inefável
do desejo de
registrar-se.
A imagem nunca
estará pronta:
é ponto de partida e chegada.
A imagem nunca perdoa
o desejo.