Um debate recente entre compositores, pesquisadores e críticos da área musical dá conta da permanência ou não do modelo de canção popular no Brasil. Ninguém menos que Chico Buarque, por exemplo, já se posicionou sobre o assunto manifestando sua desconfiança: no século XXI, parece-lhe algo extemporâneo aquele tipo de cancioneiro estruturado ao longo do século passado e consagrado por sua geração. Qualquer enunciado sobre o tema pode parecer apressado já que esse debate percorre uma série de matizes ainda não decantadas pelo devido distanciamento histórico. Matizes de natureza estética, ideológica e até racial, como nos lembra o jornalista Pedro Alexandre Sanches em artigo recente na revista Cult.
Prefiro acreditar que tal modelo não se esgotou dada a profusão de novos (e bons) compositores que levam adiante o legado de Chico, Noel, Cartola, Gonzagão e outros mestres da composição popular. Parece-me mais produtivo entender como os mecanismos de divulgação e circulação musical se estilhaçaram em inúmeras possibilidades tecnológicas, tornando o consumo algo completamente novo e difícil de ser mapeado. No entanto, é importante atentar para um novo uso da canção popular nas grandes cidades brasileiras – e também nas pequenas - que alimenta a impressão de que todo o lirismo de um compositor como Chico ou a fina ironia de um autor como Noel ou as imagens poéticas de Gonzagão são realmente algo do passado. Trata-se dos paredões de som, aqueles famigerados equipamentos sonoros com capacidade de inundar vários quarteirões com um volume insuportavelmente alto e embotar o próprio ato de escutar música.
Não nos interessa entrar no mérito da qualidade da música em questão. Importa, antes, atentar para o modo como esse novo tipo de fruição da “canção” faz emergir uma geração de ouvintes estúpidos, autoritários e arrogantes, incapazes de criar laços solidários através da música, inaptos à vida em comunidade e indiferentes às trocas de experiências pautadas pela arte. Se os diferentes e criativos usos da canção popular no Brasil fizeram a riqueza de nossa música, é desalentador perceber como legiões de adolescentes e jovens (e também de adultos) encerram as possibilidades libertárias, líricas e transcendentes da música no ato – recalcado, poderia propor a psicanálise - de impor a toda uma comunidade a violência e o transtorno de toneladas de decibéis. Quase sempre, aliás, embalados pelo odiável forró eletrônico, carro-chefe do repertório dos paredões (ou vocês já viram algum paredão tocando Jobim, Elomar ou Jacob do Bandolim?).
Um projeto de lei sobre o tema, de autoria do vereador Guilherme Sampaio (PT), está tramitando na Câmara Municipal e pode trazer uma importante contribuição sobre a regulamentação dos paredões de som em Fortaleza. O PL 0198/2009 já recebeu parecer favorável na comissão de Legislação e aguarda parecer de mérito na Comissão de Meio Ambiente. Em seguida, o documento segue para aprovação em plenário. Não se trata de um esforço legislativo de estabelecer ou dirigir o tipo de consumo musical em Fortaleza. Longe disso. Trata-se apenas de definir o posicionamento jurídico da Cidade em relação aos paredões, equipamentos que, ressalte-se, estão na linha de produção de um forte mercado de acessórios já “respaldado” por alguns vereadores – que prometem dificultar a tramitação da matéria.
Do ponto de vista jurídico, o PL de Guilherme Sampaio é amparado no artigo 225 da Constituição Federal, que incumbe ao poder público o controle da “comercialização de produtos que comportem risco para a qualidade de vida e o meio ambiente”. Segundo a proposta, fica condicionada à emissão de licença pela Semam a montagem de equipamentos de som automotivos cuja soma do diâmetro dos cones dos altofalantes seja superior a oitenta centímetros. O PL também prevê que a montagem desses equipamentos só poderá ser feita em caso de atividade laboral, que deverá ser devidamente comprovada.
Em resumo: uma idéia simples e que poderá ser muito eficaz no ordenamento do cotidiano de Fortaleza. Mais do que proteger o meio ambiente, a proposta de Guilherme pode ser útil, indiretamente, na defesa do nosso patrimônio musical. Não de um gênero específico de canção, mas da música como expressão vital e saudável da cultura brasileira. O que está em jogo é a nossa própria relação com a música. Assim, é importante não deixar nos escapar o fato de que a discussão sobre os rumos da música no Brasil também passa pela discussão – aparentemente prosaica é bem verdade, mas afinal estamos no Brasil - sobre a legalidade da prática, abusiva e violenta, dos paredões. Afinal, como pensar a música popular se o próprio ato de escutar música virou uma barbárie? Como descobrir o novo local da canção em nossa cultura se a fruição musical em uma cidade como a nossa - e também em tantas praias do litoral cearense - está ameaçada por esse estupro sonoro? Que fisionomia musical é possível divisarmos para a nossa cultura a partir desse horror instrumental que são os paredões?
Num ótimo ensaio chamado Algumas questões de música e política no Brasil, Zé Miguel Wisnik propõe que "o ruído da repetição musical (...) é silenciador do ruído enquanto dissonância, e tende a cavar um vazio de sentido onde o ouvido não mais escuta, apenas adere ao aliciamento automático de um 'gosto'". Pois bem, os paredões levaram esse vazio de sentido ao paroxismo, com a diferença de que não estão mais cavando tal buraco apenas para seus proprietários, mas para seu entorno, obrigado, desde o advento dessas máquinas insuportáveis, a compartilhar do não-propósito de tal exercício.
Com a retomada de seus trabalhos no segundo semestre, a Câmara de Fortaleza pode optar pela preservação da paz, pela preservação da produção de sentidos e, em particular, pela preservação da própria canção. Ou poderá optar pelo caos, ratificando essa barbárie e fazendo de Fortaleza uma Cidade onde, em breve, todos estaremos surdos.
3 comentários:
Mestre Felipe
Que bom seria ver um projeto de lei deste tipo ser aprovado.
Não há qualidade artística que consiga se manter com um volume de som estúpido como o produzido pelos paredões. Acho que até mesmo o próprio Jobim repensaria sua produção caso a ouvisse num destes "trios elétricos" toscos quaisquer em Fortaleza.
Aliás, "paredão" me remete a algo de difícil escalada ou, em última instância, à arbitrariedade de um fuzilamento, mesmo que sonoro.
Me perdoem os democratas mas sou muito radical nesse ponto. Na minha opinião se deveria ir direto ao ponto: a lei do silêncio proíbe som acima de 80 dB (se não me engano!)em ambientes de entretenimento. Então porque se permite que os "paredões" desfilem sem nenhuma manifestação do poder coercitivo municipal? Que é uma manifestação boçal, grosseira, mal-educada e que ninguém gosta (a não ser eles próprios) todos nós sabemos.
O grande problema de nossa cidade é que não temos uma exacerbação cultural. Nossa cidade flui muito pouco e timidamente a cultura, seja a da música, ou das artes... Acho que por isso gosto tanto do Carnaval do Recife e do Pernambuco como um todo. Lá esses trogloditas já foram expulsos do paraíso há tempos. Como também os forrozeiros eletrônicos. Em Caruaru se proibiu a divulgação de forró eletrônico, somente o tradicional pé-de-serra. Mas Fortaleza chega lá um dia!!
Concordo com você Felipe. Esses paredões representam o que há de pior. São o cúmulo da falta de civilidade. Apoio total e irrestristo ao excelente projeto do vereador Guilherme Sampaio.
Postar um comentário