‘‘A vida não tem paetês. A gente é que inventa um brilho para ela ficar melhor. Quando eu era menina, lá em Porto Alegre, minha família teve que escolher: ou a gente comia ou comprava um piano para mim. O brilho que eu inventei, então, sem piano, foi cantar e fazer de conta que era a maior cantora do Brasil’’, Elis Regina Carvalho da Costa (1945 - 1982)
Em ‘‘Transversal do Tempo’’, canção-título de um show de Elis Regina que virou disco em 1978, Aldir Blanc sugeria que ‘‘o amor é a ausência de engarrafamento’’. Elis devia ter lá suas razões para acreditar no verso do poeta - como aliás acreditava, dramatizava e quase somatizava tudo que cantava -, pois incorporou-o como ninguém. Afinal, mais do que toda a tradição de grandes cantoras que lhe antecedeu, foi ela a grande via expressa por onde passou, sem engarrafamentos, o melhor da música brasileira de uma determinada geração. Em seu caso específico, aquele corte temporal que começa com a bossa-nova, passa pelo tropicalismo e pelo azucrim da ditadura e desemboca no período de redemocratização, que arejou o cenário político e musical do país na virada dos anos 70 para os anos 80.
Em 1968, por exemplo, Elis, aos 23 anos, já havia visitado toda a MPB, de Pixinguinha aos exemplos da novíssima safra de autores da época, especialmente Edu Lobo e Milton Nascimento. Mais tarde, iniciando sua maturidade como intérprete, explorou estilos para além da trincheira bossanovista e continuou lançando compositores, como Aldir Blanc, João Bosco, Belchior, Ivan Lins, Renato Teixeira, etc. E assim seguiu até o final da vida. Sua morte, entre outras coisas, representou o final dramático de um tipo de postura artística em nossa música que se esfumaçou nos anos 80 e muito timidamente, mas muito timidamente mesmo, foi retomada nos anos 90 com a consagração de gente como Adriana Calcanhoto, Cássia Eller (saudades!) e Marisa Monte.
Elis, portanto, é a nossa intérprete mais importante. Talvez não seja a melhor; é bastante possível. Mesmo porque, em termos de técnica vocal, estamos diante de uma tradição que contempla nomes como Dalva de Oliveira, Elizeth Cardoso, Maria Bethânia, Angela Maria - fonte declarada de inspiração de Elis -, Aracy de Almeida e muitas outras. Mas essa discussão sobre quem foi melhor do que quem, que, aliás, tanto mexia com os brios de Elis, só tem pertinência, me parece, nos acirrados e verborrágicos simpósios de botequim. Fora deles, importa saber que, se Elis não teve a rigorosa coerência estilística da divina Elizeth, por exemplo, soltou a voz em nome de uma intransigente defesa do que considerava música brasileira - e que comportava tudo aquilo que ela considerava (e sabia que era) bom.
Ainda assim, é bom dizer que, mesmo comparada aos agudos desabusados de Dalva, ao vigor de Bethânia, à exuberância técnica de Elizeth, à malícia de Aracy, Elis entregou-se à música como ninguém entre nossas grandes cantoras o fez. Com toda sua vitalidade e garra, Elis não era só uma intérprete. Ela era ao mesmo tempo a senhora e a escrava de cada música que cantava. Era a personificação de cada melodia, de cada letra. Tragando cada verso, respirando cada nota, enchendo de lágrimas cada pausa e cada silêncio, ela, se não foi a melhor cantora, foi a intérprete das versões definitivas. Podem comparar com Gal Costa. Podem comparar até com Sarah Vaughan, que era bem chegada nas composições de Tom e Vinícius. Se Elis já cantou determinada música, é com ela que essa música vai soar de forma mais plena.
Um exemplo dessas versões definitivas é a sua antológica gravação de ‘‘Atrás da Porta’’, do disco ‘‘Elis’’ (1972). Separada de Ronaldo Bôscoli, Elis foi buscar em César Camargo Mariano um novo chão para sua música e também um novo amparo para seu coração. Em meio a esse torvelinho afetivo, conheceu e decidiu gravar a composição de Chico Buarque e Francis Hime, que a princípio tinha somente a primeira parte da letra. No dia da gravação, sem ninguém mais no estúdio, César sentou-se ao piano e, com as luzes baixas, começou a gravar a voz guia de Elis, que se derramou, chorou e soluçou as palavras de Chico e a melodia de Francis. Atônitos, César e Roberto Menescal, produtor do disco, correram para levar a fita para Chico, que ouviu, chorou e terminou a letra no ato.
‘‘Dei pra maldizer o nosso lar,/ pra sujar teu nome, te humilhar/ e me vingar a qualquer preço/ te adorando pelo avesso/ pra mostrar que ainda sou tua...’’, cantou Elis, imortalizando uma das letras mais bonitas de Chico. Como se percebe, portanto, algumas vezes Elis não só cantava a versão definitiva de uma música, mas também chegava a ser a responsável por sua criação definitiva. Milton Nascimento que o diga.
Texto publicado originalmente em janeiro de 2002, no jornal Diário do Nordeste. Um presente atrasado para meu pai, um dos grandes fãs de Elis.
terça-feira, 11 de agosto de 2009
A marca de Elis
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Um comentário:
Meu timing pra ler e escutar isso não poderia ter sido pior, mas eatamente por isso, digo o quão emocionante , de fato é. No melhor sentido de emocionar; mover...
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