Quase todo brasileiro - das mais diversas regiões do País - tem um samba para chamar de seu. Nem tanto uma música em especial, mas parte de um repertório ou de um determinado gênero de samba que consome e crê legítimo, puro, definitivo. Se essa onipresença revela a força seminal com que o ritmo se espalhou pelo Brasil, dialogando e assumindo traços que refletem as diferentes soluções culturais de cada Estado; também irriga um debate que, no mais das vezes, leva à segregação, à desinformação e ao bairrismo. Assim é que, para determinados ouvintes, samba é sinônimo de partido-alto ou de samba de enredo. Confunde-se também com o "pagode", termo que recebeu diversos e "equivocados" usos ao longo dos anos. Para outros, no entanto, samba "bom" é aquele que reflete uma sofisticação e um elitismo quase bossanovistas. Alguns ainda elegerão como autêntico o samba de certas manifestações caricaturais ou folclóricas espalhadas por ruas e terreiros do País.
Recentemente, um sambista carioca me falou que, a depender do local em que se apresentasse no Rio de Janeiro, tinha de escolher com muito apuro seu repertório sob pena de ser hostilizado pela platéia. Num samba da Zona Sul, por exemplo, valia o repertório de Chico, Gil, Gonzaguinha, Vinícius e outros "medalhões" da MPB. Composições de partideiros e versadores da Zona Norte ou mesmo de grandes intérpretes como João Nogueira e Roberto Ribeiro tinham de ser manejadas com muita discrição. "Ih, já vai tocar pagode!", poderia acusar um xiita mais apressado. Já do outro lado do Túnel Rebouças, a pressão era inversa e a apresentação de um samba do Chico, do Gil, do Gonzaguinha, etc, poderia, de maneria fulminante, ser tachado de "elitista" e "arrogante".
Esse apartheid musical não é exclusivo do Rio de Janeiro e também não é novo. Basta lembrar das casas das tias baianas que, no início do século, reuniam, na sala de estar, a aristocracia e a burguesia carioca; e, no quintal, os malandros e trabalhadores da então Capital Federal. Todos embalados por gêneros como o lundu, o maxixe e o recém-nascido samba, que assumiam sentidos diferentes em cada cômodo da casa. De lá pra cá, essa separação manteve-se a mesma, ganhando apenas outros matizes: como o caso clássico da bossa nova, que, no fim dos anos 50, se apropriando de procedimentos harmônicos do jazz e suavizando o batuque dos morros e subúrbios cariocas, instaurou o samba da Zona Sul. Ou ainda do pagode, que de reunião festiva de músicos virou gênero musical, conquistou importantes faixas de mercado nos anos 80 e reanimou o samba na Zona Norte.
Mesmo entre os grandes gênios do samba, não foram todos que receberam o salvo-conduto de se mover entre os dois lados da trincheira. Noel Rosa e Ismael Silva talvez tenham sido os primeiros. Zé Ketti, Nelson Cavaquinho e Paulinho da Viola vieram em seguida. Cartola foi o maior deles. Até hoje, o mestre mangueirense é um dos raros que têm cadeira cativa em qualquer samba do País, seja um samba "Zona Norte" ou um samba "Zona Sul". Os motivos para essa imunidade diplomática são vários. A começar da riqueza poética e harmônica de suas composições, que chegaram a impressionar "eruditos" como Villa-Lobos e Carlos Drummond de Andrade, para quem Cartola era "poeta maior"; e ganharam ampla repercussão popular.
Em 1940, o maestro Leopold Stokowski, então uma celebridade internacional, veio ao Brasil comandando uma missão folclorista que percorria a América Latina registrando ritmos e melodias típicas da Região. No Rio de Janeiro, teve como cicerone Villa-Lobos, que convocou, entre outros, Pixinguinha, Donga, Jararaca e Ratinho para a célebre gravação no navio Uruguai patrocinada pela Columbia. Cartola foi um dos convidados mais festejados, tanto pelo maestro quanto pelo povo da Mangueira, que cantou em uníssono suas músicas quando da visita de membros da comissão ao Morro. "Villa-Lobos era uma espécie de meu padrinho. Me convidava para tudo que é programa. Dizia sempre: 'esse pretinho vai longe'", afirmava o sambista.
Quando gravou seu primeiro disco, em 1974, Cartola conseguiu unir no coro dos elogios à obra comentaristas de posturas absolutamente divergentes em relação ao destino e aos sentidos da música brasileira. O conservador Tinhorão, por exemplo, em sua crítica no Jornal do Brasil, recomendou ao público "comprar com urgência o elepê de Cartola" e "atentar bem para certas passagens de sambas de Cartola e comparar sua hermonia com o que os compositores da geração bossa-nova afirmavam ter sido a maior contribuição do movimento à música popular brasileira". Já o bossanovista Nelson Motta, em texto para O Globo, registrou o LP como "primeiro disco individual, antológico, pesado 'de obra', desse extraordinário compositor popular. Elepê assutadoramente simples, direto e inundado de poesia em seus sentidos mais fortes e vitais".
Também a figura carismática de Cartola, já apontado como mito pela imprensa desde os anos 30, contribui para aparar arestas dos dois lados do Rebouças. No efêmero Zicartola, ele conseguiu aglutinar em antológicas rodas musicais toda a fauna artística e intelectual que se pulverizava em infinitas correntes políticas e estéticas: entre eles, os bossanovistas, os CPCistas e os cultores do samba tradicional. Malandros e "rapazes de bem". Vale dizer também que, em sua posteridade, Cartola foi gravado por um leque de intérpretes dos mais variados setores da música brasileiro, sempre saudado como gênio por cada um deles e aplacando as diferenças menores entre intérpretes da "Zona Norte" ou da "Zona Sul". O samba é ao mesmo tempo vários e um só.
Tentar legitimar apenas um ou outro gênero é tarefa conjuntural para os tolos ou desinformados. Os grandes mestres, como Cartola, pairam gloriosos sobre todos eles, ensinando gerações e gerações de sambistas a perceber no traço democrático do samba uma de suas grandes riquezas.
Texto publicado originalmente na edição de 11 de outubro do jornal O POVO (Fortaleza-CE)
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