sexta-feira, 28 de outubro de 2011
Os meios, o fim e o Enem
Estudei no Colégio Christus. Do tempo que passei naquela instituição "cristã", carrego comigo um patrimônio inestimável que são as amizades cultivadas e que perduram até hoje. Mas jamais colocaria um filho meu para estudar lá, pois discordo da proposta pedagógica desumanizada e alienante, e também do falso moralismo com que a instituição constrói sua relação com os alunos. A ferro e fogo, seus meios todos conduzem para um mesmo fim: uma boa cota de aprovação no vestibular (na minha época) e no Enem (agora) - como se as demandas mais profundas de formação do ser humano se resolvessem num gabarito de prova. Não me parece, portanto, uma instituição de ensino mais ou menos ética que outras tantas que existem na Cidade e que se engalfinham nessa sanha hipócrita em torno dos exames do ensino médio. Claro, não se pode julgar antecipadamente. Esperemos que a apuração da Polícia Federal seja concluída - embora existam fortes indícios que houve vazamento criminoso da prova. Mas me incomoda muito essa tentativa de blindar antecipadamente a escola, sem chamá-la à responsabilidade.
domingo, 16 de outubro de 2011
O mandíbula e o maestro
Uma raridadezinha que registra o encontro de Count Basie com o gênio visceral Lockjaw Davis.
O gosto e a barbárie
Na arte, gosto não só se discute, como deve ser discutido. O cerne da questão do consumo não está na perspectiva supostamente ingênua e inofensiva - quase aleatória - das afinidades pessoais. O ato de se escutar esse e não aquele gênero musical, por exemplo, reflete fundamentalmente uma opção política e estética que aponta para um projeto (ou projetos) de civilização. Penso isso à luz das declarações de Jacques Rancière (foto acima) à revista Cult, em que o pensador francês analisa como a estética e a política são maneiras de organizar o sensível: "de dar a entender, de dar a ver, de construir a visibilidade e a inteligibilidade dos acontecimentos". "Temos de pensar na estética em sentido largo, como modos de percepção e sensibilidade, a maneira pela qual os indivíduos e grupos constroem o mundo", ele defende.
Afinal, que mundo poderá ser construído a partir da visão sexista e rasteiras das letras do forró eletrônico? Que civilização poderemos divisar através dos xingamentos e trocadilhos de mau gosto presentes na chamada swingueira? Que delicadeza, que sentidos de solidariedade esperar de um proprietário de um famigerado paredão de som e seus convivas? Que intensidade esperar de alguém refém de melodias pobres e redundantes, de ritmos recorrentes e repetitivos? Que originalidade imaginar em alguém que só convive entre pastiches?
Em geral, a crítica cultural apresenta certo fastio para tratar desse assunto. E, não raro, setores da academia tentam relativizar essas questões estabelecendo pontos de fuga para esse elemento central que é nossa inexorável barbárie cotidiana - que cada vez menos pessoas estão sabendo reinventar em atitudes e sensibilidades positivas.
quinta-feira, 13 de outubro de 2011
O palhaço dos reis
Nos Estados Unidos, o formato “stand up” fez a glória de nomes como George Carlin - que ridicularizava a boçalidade religiosa de seus compatriotas - e Lenny Bruce - um pioneiro que, diz-se, morreu de “overdose de polícia”, tantas e tão recorrentes eram suas prisões ao deixar o palco. Geralmente motivadas pela paranoia moralista da época. Os dois foram reis entre os palhaços, pela coragem e pela inteligência.
Rafael Bastos, que bebeu nessa fonte e foi um dos que transformaram o gênero em moda por aqui, sempre pareceu tentar seguir a trilha desses ídolos. Mas, por viver em outro país, com uma história já de si politicamente incorreta, lastreada por um atávico espírito colonialista e escravocrata, confundiu coragem com agressão gratuita, espírito crítico com graça compulsória. E humor, nos lembra Chico Anysio em entrevista à Carta Capital, “deve visar a crítica, não a graça. Ele vai ser engraçado onde puder”.
No caso de Bastos, suas performances nunca lograram uma coisa nem outra: nem a crítica nem o humor. Ainda assim, suas diatribes – que incluíam a defesa do estupro de mulheres feias – eram saudadas por seus pares (inclusive os de bancada do CQC).
Mal sabia ele que os ultrajes e a suposta contestação ao patrulhamento do politicamente correto eram apenas a embriaguez e a prepotência de um jovem diante de uma falsa concepção de liberdade. Aquela que “só existe no abuso da liberdade sem freios, sem regras, sem respeito pela liberdade do outro”, no dizer do sociólogo José de Souza Martins.
Questionamentos como a representação do Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo ao Ministério Público não lhe renderam maiores problemas. Mas eis que “Rafinha”, de forma desastrada e grosseira, ousou mexer com os “coronéis”, com os dos donos do dinheiro. Acabou demitido e teve contratos cancelados. Descobriu que, para usar a expressão de Millor Fernandes, em vez de rei dos palhaços (como o foram Bruce e Calin) era apenas um palhaço dos reis.
Artigo publicado no Jornal O POVO, edição de 13 de outubro de 2011.
sexta-feira, 7 de outubro de 2011
Bernardo Carvalho
"Ninguém é preso em flagrante, porque todo mundo se entrega antes, mostra antes.
Não faz mais sentido falar em vigilância (nem combatê-la, nem denunciá-la, o que não significa que ela não seja mais eficaz que nunca) numa sociedade tautológica, de autoexposição voluntária. A transgressão foi anulada pela banalização do consentimento coletivo. É como se toda a sociedade de repente fizesse a passagem de que fala Freud, da atividade do voyeurismo para a passividade do exibicionismo.
Afinal, todos têm seus minutos de celebridade, como previu Andy Warhol, e todos têm seus minutos de puta, com a desvantagem de, em geral, não receber nada por isso. E o mais perverso desse mecanismo é que a promessa de celebridade massificada resulta sempre em mais anonimato, na indiferenciação das diferenças e das individualidades. A rede vende a ilusão de que a exceção é a regra e assim anula a exceção".
Bernardo Carvalho, em artigo para a revista Zum, lançada pelo Instituto Moreira Sales.
quinta-feira, 6 de outubro de 2011
Poemetes araújos XVII
Mataram o professor,
governa a dor.
Mas parece
não temos que:
tempo para
seu drama.
E matarão outros:professores, engenheiros, médicos e
garis, taxistas, motoristas e
homens de bem.
Desvastarão famílias
à luz das melhores fotografias
e álbuns de lembranças:
terceira margem
da vida.
Mataremos, nós,
uns aos outros.
O sangue será
servido em falsas
tigelas de prata
aos comensais do rei,
genros e amigos
e acólitos da farsa.
A impunidade dos salões
e colunas sociais é a mãe
de todas as impunidades
e todas as putas.
Triste Ceará esse
que troca de tiranos
ao subir e descer das marés.
E constroi aquarios
para celebrar seu
atraso, sua
indigência.
Querem sufocar o grito
da família, filhas e futuro.
Mas há cordas que não cessam de vibrar;
nelas residirá alguma melodia
e resistência.
Sei porque quero que
elas existam.
Ai de ti Benfica,
essa ilha urbana
de esperança
cercada de indiferença
por todos os lados.
Que não seja em vão.
Que não sejamos vãos.
quarta-feira, 5 de outubro de 2011
E ainda tem uns moleques teimosos por aí... (Estamos velhos mas ainda não morremos)
Peço licença aos amigos do blog Receita de Samba e reproduzo aqui neste Talabarte o texto de Thomás Lopes Ferreira sobre o novíssimo movimento - com ramificações consistentes em todo o País - de resgate dos tradicionais compositores dos subúrbios cariocas e do formato acústico das rodas de samba, cheias de canto, alegria e poesia. Sem correria e com um profundo respeito à cadência do ritmo e dos versos. Ao fim do post, um vídeo com a linda homenagem a Chico Santana na Portelinha comandada por artistas como Tuco (um líder em ascenção) e a moçada do Terreiro Grande. De arrepiar!
Por Thomás Lopes Ferreira
Quando o vapor berrou no vale do Paraíba, logo após sinhá Izabel assinar a carta de alforria, descendentes de bantos, benguelas e monjolos juntaram seus trapos em busca de oportunidade na cidade portuária e logo se arregimentaram no nascente subúrbio carioca. O século XIX finalizava e morros como Serrinha, Congonhas e Tamarineira, assim como o bairro próximo de Oswaldo Cruz, já marcavam o ritmo de uma localidade chamada Madureira.
Lá, nas casas das famosas tias: rangos e rezas, jongos, lundus e cachaças davam vida aos corpos manchados de sol, suor e trabalho. Carregar e descarregar mercadorias do porto compunha a labuta diária de um povo, agora “liberto” para trabalhar ainda mais. Sob os olhares atentos das pequenas gigantes tias, o batuque ia se transformando, assimilando a modernidade iniciada pela escola primeira do Estácio de Sá. Eulalias, Marias e Alfredos foram aos poucos se juntando, onde antes somente existiam tambores, para se arriscarem em instrumentos eruditos, nos quais a turma da Santíssima Trindade já ousava dar notas músicas.
Foi no bairro de Oswaldo Cruz, na ainda bucólica Estrada do Portela, que um certo Paulo Benjamin de Oliveira foi morar e gravou seu nome para sempre na história do samba. Conhecido nas redondezas como professor, Paulo organizava encontros, reuniões e pagodes, onde versava seus primeiros partidos, que anos mais tarde Chico Santana, Manacéa, Alvaiade e Natalino iriam dar continuidade. Esse compositor popular que tantas músicas compôs fundou, ao lado dos companheiros Antônio Caetano e Antônio Rufino, a escola da águia altaneira sob a sombra de uma jaqueira. Com um estilo próprio Paulo passou a ser o Paulo da Portela e conduziu Oswaldo Cruz rumo à imortalidade.
O samba de lá não tinha palco, não tinha “artistas”, não tinha vaidade, era uma festa. Quem não sabia tocar, não tinha problema, se envolvia do mesmo jeito. Acompanhava na palma da mão, na lata, no prato e na faca, no reco-reco, no gogó, no que tivesse, mas tudo com o maior respeito e organização. O pagode era e é assim, uma festa, que ao mesmo tempo em que divertia a todos, unia num mesmo canto as dores do dia a dia tão difícil. Esses bambas se desafiam em versos e o coro era composto, por ninguém menos, do que todos que estavam presentes.
Décadas mais tarde, Candeia com o sonho da multidão voltar a tomar as rédeas da escola, inovando na linguagem, recorre às mesmas armas, que antes municiaram Paulo e seus companheiros, mas os tempos tinham mudado... Nas escolas a figura do sambista, compositor e partideiro estava desaparecendo e a indústria fonográfica começava a mostrar suas caras e personagens. Surgia a figura do carnavalesco e o terreiro além de ir aos poucos mudando de cor, muda também de nome e passa a ser chamado de quadra.
Tentando influenciar os rumos da escola, não apenas com palavras, mas com apoio popular, Candeia organiza verdadeiras marchas, em dia de ensaio, rumo ao terreiro, descendo os morros do bairro e pegando o trem, junto a uma multidão que cantava seus versos e de muitos outros grandes partideiros. Não mudou os rumos, mas deixou um legado de continuidade, não da mesma forma, não sem inovar, mas com o mesmo propósito que o professor tanto versou:
“Ouro desça do seu trono. Venha ver o abandono de milhões de almas aflitas, como gritam. Sua majestade, a prata, mãe ingrata, indiferente e fria, sorri da nossa agonia”. Era a mensagem da música popular, que com diversão e lamento, no coro, na palma da mão, no improviso e com respeito, cantava o cotidiano de uma gente sofrida. “O meu nome já caiu no esquecimento, o meu nome não interessa a mais ninguém” denunciava Paulo, anos antes, já preocupado com os rumos das escolas, após uma confusão que acaba tirando-o do desfile, quando as escolas ainda se apresentavam na saudosa Praça Onze.
Tem gente, que pensa que o samba desse jeito acabou, e que agora o palco dominou, onde um só vocalista canta e grupos pequenos comandam a vez, onde as grandes rodas nas ruas dos subúrbios não existem mais, onde gostos e cheiros das gordas feijoadas não se misturam mais ao suor do dançar e ao sorriso do cantar junto. Confesso que às vezes me desanimo e penso assim também. Mas uns poucos anos atrás, meninos e meninas, na maior parte moleques, no que há de melhor nessa palavra, inspirados em histórias e jeitos de cantar da teimosa velha guarda azul e branco, começaram a organizar encontros em várias cidades do país batuqueiro.
Tocando sem amplificadores, quando muito um violão tenor ou de sete é amplificado, com três, quatros e até mesmo cinco cavacos, pandeiros em partido ou na marcação cadenciada, surdos de virada, reco-recos, tamborins, ganzás, repiques de mão, repiques de anel e apitos dando forma à cozinha e...... o mais bonito e contagiante: tudo no gogó, no coro e no verso improvisado.
Novamente, no mesmo jeito que o professor ensinou, mas também com inovação, rompem o abismo que separa os músicos do seu público, aproximando-os com olhares, histórias e cantos, fazendo todo o sentido para o autêntico pagode se apresentar. São partideiros e versadores, manos da Terra da Garoa, da Cidade Maravilhosa, da Beira do Guaíba e das Gerais que, para além de tudo, tem o amor ao samba, à sua história infinita, à sua inovação, aos seus versos e memórias, é o samba sem vaidade, sem palco, sem dono e com respeito aos antigos e aos novos, se (re) fazendo novamente para se tornar pleno. Assim se fazem imortais, mais uma vez.
Se fazem sorriso, outra vez, se fazem modos de cantar, de tocar e de agradecer aos Candeias, Manacéas e Chicos, Alcides, Natais, Caetanos e Alvarengas, Paulos e Rufinos pela imensa alegria de ter a oportunidade de continuar. Simplesmente, fazem samba, se fazem popular. Serão lembrados, assim como lembramos outros bambas, serão louvados assim como louvamos outros mestres, por cantar a vida, por mostrar o sofrimento, por não nos deixar esquecer que a beleza existe, que a esperança é eterna, que a chama não se apagou e nem se apagará. Enquanto nos fizermos seres humanos, teremos essa possibilidade.
Assinar:
Postagens (Atom)