segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Stefan Zweig e o banquete de brasilidade

O caderno Mais!, da Folha de S. Paulo, em sua edição do último domingo trouxe uma capa que acenava com uma discussão que me ganhou de imediato: o Brasil teria deixado de ser o eterno País do Futuro, na expressão cunhada por Stefan Zweig (foto acima), e - com a conquista da sede das Olimpíadas e da Copa do Mundo, além de perspectivas econômicas virtuosas e de uma posição consolidada no cenário dos Bric - atualizado essa sua secular potência? Há chegado nossa hora? À sedução do tema do debate se somou um time de colaboradores que permitia antever uma discussão das mais produtivas: José Murilo de Carvalho, Marcelo Coelho, Hermano Vianna, Ronaldo Vainfas, entre outros.
Atravessando o dossiê, uma frustração: o jornal não entregou o que vendeu na capa. Há, é fato, uma bela retrospectiva em torno do livro de Zweig (Brasil - um país do futuro, de 1941), que disseca a percepção do autor em relação à história e à paisagem (humana e natural) brasileira e que situa a produção da obra no contexto da Segunda Guerra Mundial, evidenciando os pudores e as motivações intelectuais (e de sobrevivência) que deram publicidade mas também carregaram o livro de imprecisões e platitudes sobre o País. 
"O povo brasileiro (segundo Zweig) seria dotado de um caráter congênito em que sobressairiam a tolerância, sobretudo a racial, o espírito de conciliação, a tendência à solução pacífica dos conflitos internos e externos", pontua Murilo de Carvalho. "A essas qualidades se acrescentava o dom de uma natureza rica e generosa. Com tais atributos, o Brasil estava, segundo ele, destinado a apresentar ao mundo, sobre os escombros da Europa, um novo modelo de civilização. O Brasil era o país do futuro". 
Em temas não muito variantes ao longo do caderno, esse foi o tom da apreciação da obra de Zeig feita pela Folha de S. Paulo. Valeu como dossiê específico sobre o autor, não sobre o Brasil de hoje. Poucos descortinaram idéias sobre a proposta vendida pela capa. O mesmo Murilo - que foi mais longe entre seus pares nesse desafio de entender o Brasil do presente - destacou o cuidado para se evitar um oba-oba com um momento histórico favorável para o País. "Não haverá milagres. Nem pessimismo nem euforia levam a lugar nenhum". 
Hermano Vianna termina sua colaboração resgatando a impressão de Zweig sobre os favelados cariocas dos anos 40, a quem o embevecido austríaco havia classificado de "uma enorme reserva para o futuro". "E não é que ele estava com a razão? Hoje essa gente deixou de ter vida 'pouco influenciada pelo progresso da técnica'e virou mercado de consumo apontado até na 'The Economist' como chave para a recuperação da economia mundial pós-crise. Uma gente dinâmica e barulhenta, acostumada tanto com o metralhar de AR-15 quanto com o subgrave do forró no som automotivo, vira garantia de futuro, muito além do fim da história e de qualquer choque de civilizações", afirma Hermano.
Essas são duas senhas - pouco exploradas pelo caderno - para que o Brasil possa efetivamente se afirmar com altivez no presente: o equilíbrio entre o ufanismo e o ceticismo (algo por demais óbvio para merecer qualquer desdobramento), e o reencontro da "pátria" com seu povo real. Lembro que Glauber Rocha costumava dizer que o povo era um mito besta, alimentado pelo romantismo e pela ingenuidade de sociólogos, artistas e escritores de diversos matizes. Vis à vis com seu povo, o Brasil de hoje não é nada do que sonhou nenhum campo da expressão artística ou da intelectualidade. Eis um choque que resulta em certa intolerância por parte da nossa inteligência mais conservadora e do nosso suposto bom gosto burguês. E também no profundo incômodo que um governo como o de Lula provoca na grande mídia e nos setores mais conservadores do País. Lula, afinal, pode deixar como a principal marca de sua gestão - repleta de problemas e omissões, registre-se - o reencontro de grandes parcelas do povo brasileiro com a mesa em que se serve esse banquete amorfo (e agridoce) chamado brasilidade. 
O Brasil sempre foi refém de um futuro que poderia ter sido e que não foi. E nunca vai ser. Nem quando publicações internacionais nos chamam - como fez recentemente a revista Wallpaper - de "novo establishment". Quanto mais gente estiver sentada à mesa desse banquete de brasilidade, negociando mutuamente a forma e a extensão do etos desta nação (para adaptar uma expressão da professora Maria Alice Rezende de Carvalho, que também participa do dossiê falando do etos de cidade), aí sim, estaremos mais perto do melhor futuro. Mais perto estaremos do melhor Brasil possível. 

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