segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Nelson: Freire


Abaixo, um texto que escrevi em 2004 para o jornal O POVO e que falava sobre o filme, então recém-lançado, de João Moreira Salles sobre Nelson Freire. Nos últimos dias, tenho escutado repetidas vezes - e com o espírito cada vez mais assombrado - o CD em que ele executa, com dramaticidade e vigor inigualáveis, os 12 "études" de Chopin (op. 10), a "Barcarolle" e a "sonata no. 2 para piano". Daí que resolvi visitar meus discos do Nelson, bem como o documentário.  
 
Menino prodígio egresso do interior de Minas, Nelson Freire deu seu primeiro recital aos quatro anos. Aos oito, embasbacou todo o Rio de Janeiro ao solar um concerto de Mozart. Aluno de Nise Obino, Lúcia Branco e Bruno Seidlhofer, teve uma das carreiras mais vitoriosas da música erudita brasileira - com medalhas em pelo menos três continentes - e chegou ao posto de um dos mais importantes concertistas mundiais. 
Exaltar, portanto, sua arte somente a partir de seu virtuosismo (como foi o caso de filmes que abordaram outros pianistas famosos) é por demais tentador. No contexto do documentário de João Moreira Salles, porém, essa esquematização chega a parecer um tanto óbvia e beira a desimportância. Em 
Nelson Freire, o filme, o assombro dos dedos sobre o piano é apenas uma das pinceladas que o diretor usa para reconstituir em aquarela o perfil do pianista. 
O documentário tem pouco mais de uma hora e meia de duração, ao longo da qual esse decantado virtuosismo se mistura a uma série de outras perspectivas sugeridas pela figura de Nelson: sua serenidade e sua imaginação poderosa diante de uma peça erudita, o frisson que suas apresentações despertam mundo afora, seu rigor técnico e sua disciplina quase sufocantes, ou ainda seu fascínio pelos mestres Guiomar Novaes e Artur Rubinstein. 
No roteiro sinuoso do documentário, a vertigem do piano dilui-se, fundamentalmente, num sentimento de abandono e de entrega que pontua cada nota das interpretações de Nelson. É esse viés que forma o matiz mais forte do quadro pintado por Salles. Criança doente, criada no isolamento dos estudos e das partituras, longe dos primos e das brincadeiras de rua, Freire teve a música como sua principal interlocutora. E foi a partir desse diálogo solitário que conseguiu orientar e dar sentido a todo seu universo de desejos e emoções. 
Sua ética, por exemplo, não pertence ao terreno movediço da pabulagem e da fama. Para Nelson, poucas coisas são mais embaraçosas do que a badalação dos fãs nos camarins ou o burburinho da imprensa. A música é sua razão última e sem ela nada se justifica, nada se movimenta. Nem memória nem afetos. Nem mesmo o mundo verbal parece guardar algum sentido em sua vida. Na verdade, as palavras lhe são quase um não-dizer, dão-se sempre numa expressão tímida, contida. 
O verbo de Nelson é outro. Sua sintaxe se dá entre claves, compassos e colcheias. Nessa gramática, ele tenta traduzir a seu modo toda a história da humanidade em busca do sublime. No filme de Salles, esse esforço de vida inteira se dá entre o prolixo Rachmanioff e o caudaloso Villa-Lobos, entre o Chopin fundamental e o Schumann da 
Fantasia em dó maior. Entre catedrais, enfim, da cultura humana que acabaram por justificar sua própria existência. E que estão permanentemente a legitimar a nossa.



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