quinta-feira, 14 de março de 2013

Um ateu observa a escolha do novo papa



Acompanhei o noticiário sobre a escolha do novo papa motivado por um interesse que é muito mais “cultural” do que religioso. Ateu não-praticante (porque não concordo com certo proselitismo ateísta/agnóstico corrente em nossos dias), não consigo deixar de me sensibilizar e de me emocionar com a percepção da centralidade da fé na experiência humana de tantas pessoas. Tem sido assim desde que descobri que as mitologias religiosas não repercutiam em mim como narrativas de transcendência ou de “salvação”, mas “apenas” como manifestações da cultura – posição pessoal e intransferível que, no entanto, não me impediu de me encantar com tantos rituais religiosos que acompanhei como repórter e editor.
A renúncia de Bento XVI reafirmou a força e a influência da religião no chão dos nossos dias. E me fez lembrar de um texto do teólogo Bernard Lauret, publicado recente pela revista Cult, em que ele restitui a Ratzinger um protagonismo admirável no âmbito do debate cultural. Resgatando discursos e debates em que Bento XVI tomou parte, mostra como ele foi um sacerdote que, no âmbito da crítica cultural, soube “sublinhar a complementaridade entre razão e fé”. “Ele não condena os ganhos do Iluminismo no que concerne à liberdade de consciência, à ‘coexistência de diferentes culturas religiosas’ e à separação entre estado laico e religião. Em revanche, recusa que somente os critérios da razão iluminista sejam capazes de julgar a legitimidade das tradições religiosas”, diz Lauret.
De fato, se não é suficiente analisar as manifestações da cultura apenas com os critérios religiosos, porque aí o olhar corre o risco de ficar embotado pelo fanatismo e outras “doenças” da religião; seria de se estranhar que um homem tocado pela experiência religiosa conseguisse discernir o mundo apenas pelo viés da razão. Para Ratzinger, não existe fé pura, independentemente de uma cultura. Mas o contrário, para ele, também é verdadeiro. “A missão cristã não tem por objetivo transplantar o cristianismo ocidental (fé e cultura mescladas) em outras culturas cuja dimensão religiosa seria ignorada. Essa abordagem das culturas por suas relações mútuas necessárias e o respeito das diversas tradições religiosas relativiza, de um só golpe, o cristianismo sob sua forma ocidental, e eleva ao mesmo tempo a figura de Cristo, Lógos semeado por toda parte”, defende Lauret.
Não me preocupa, portanto, se o novo papa vai ser mais ou menos conservador, mais ou menos radical ; mas se saberá conduzir sua instituição por um caminho em que a palavra de ordem não seja o “choque” de culturas e religiões. Nem o choque de direitos. Mas a tolerância e o diálogo.
Ele pode até defender que Deus não seja tirado definitivamente da vida pública. Mas terá de conviver com (e amar) “vidas” e “espaços” públicos em que o seu deus não arbitrará.

* Texto publicado no caderno especial Francisco, um novo começo publicado no jornal O POVO (14.03.2013)

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