Roberto Schwarz recolocou em perspectiva o livro Verdade Tropical (1997), de Caetano Veloso, em um dos ensaios que compõem o volume Martinha versus Lucrécia, recentemente lançado pela Companhia das Letras. No texto chamado "‘Verdade tropical’: um percurso de nosso tempo", escrito em 2011, o crítico literário analisa o livro, evidenciando suas contradições e chamando atenção para o que considera um certo entusiasmo de Caetano em relação não só ao golpe militar de 64, mas também à presença da direita no poder e à consolidação da hegemonia do capitalismo em âmbito mundial. O baiano, claro, não gostou nada da revisão de sua obra e deu uma entrevista ao Globo respondendo a Schwarz, que por sua vez, manifestou sua tréplica em nova entrevista à Folha de São Paulo. Abaixo, um trecho dessa última entrevista do crítico ao jornal paulista.
Folha – Como leu a entrevista de Caetano?
Roberto Schwarz – Ele mudou de assunto. Em vez de comentar o meu artigo, que é o que estava em pauta, Caetano falou da Coreia do Norte, da União Soviética, de Cuba, da USP, da esquerda obtusa, de Mangabeira Unger etc. Parece piada. Ao contrário do que a entrevista faz supor, não escrevi para pegar em Caetano o rótulo de direitista, e muito menos de esquerdista, mas de herói representativo e problemático. Procurei acompanhar de perto a sua prosa, concatenar e compactar as suas posições, de modo a tornar visíveis as questões de fundo que estão lá e não são óbvias. Tomei o cuidado de sempre apresentar as próprias formulações de Caetano, para que o leitor possa refletir a respeito e tirar conclusões com independência. É o que [Bertolt] Brecht chamava de apresentar os materiais.
Como crítico literário, sou sensível à força estética do livro, naturalmente para analisá-la. No caso, fazem parte inseparável dela as atitudes mais controvertidas do autor, tais como a autoindulgência desmedida, o confusionismo calculado e os momentos de complacência com a ditadura (os militares tomaram o poder “executando um gesto exigido pela necessidade de perpetuar essas desigualdades que têm se mostrado o único modo de a economia brasileira funcionar”, “Verdade Tropical”, pág. 15), o que não exclui a simpatia pela guerrilha. É ler para crer. À maneira dos romances narrados em espírito de provocação -por exemplo, as “Memórias Póstumas de Brás Cubas”- “Verdade Tropical” deve muito de seu interesse literário a certa desfaçatez camaleônica em que Caetano, o seu narrador, é mestre. Penso não forçar a mão dizendo que a representatividade histórica do livro passa por aí. E o seu caráter problemático também, já que o quase romance não deixa de ser um depoimento.
Folha - O sr. vê fundamento na cobrança de Caetano de que a esquerda comente temas como a Coreia do Norte?
Schwarz - É claro que a reflexão informada e crítica sobre as experiências do “socialismo real” é indispensável à esquerda, e aliás ela existe. [Theodor] Adorno, que Caetano absurdamente menciona como inimigo da liberdade, é uma grande figura dessa reflexão no campo estético. Dito isso, penso que, no caso, o interesse pela Coreia do Norte é sobretudo cortina de fumaça para não falar de meu livro.
Folha - Por que o ensaio vem à tona 15 anos depois do livro de Caetano?
Schwarz - Logo que o livro saiu, vi que era notável à sua maneira e merecia discussão. Como não tenho pressa, levei 15 anos para sentar e escrever. Ainda assim, espero não ter perdido o bonde.
Folha - Em que medida o texto aprofunda os argumentos sobre a Tropicália expostos em seu ensaio “Cultura e Política: 1964-1969″?
Schwarz - “Cultura e Política” foi escrito em 1969, na hora pior da ditadura e logo após a eclosão da Tropicália. “Verdade Tropical”, de Caetano, que reapresenta aqueles tempos, foi publicado 30 anos depois, em pleno triunfo neoliberal. Já “Um Percurso de Nosso Tempo”, redigido em 2011, tem a ver com a crise atual do capitalismo. São três momentos distintos. A Tropicália do fim dos anos 60 debochava -valentemente- do Brasil pós-golpe, quando a ditadura buscava conjugar a modernização capitalista ao universo retrógrado de “tradição, família e propriedade”. A fórmula artística dos tropicalistas, muito bem achada, que juntava formas supermodernas e internacionais a matérias ligadas ao atraso do país patriarcal, era uma paródia desse impasse. Ela alegorizava a incapacidade do Brasil de se modernizar de maneira socialmente coerente. Era uma visão crítica, bastante desesperada, de muito interesse artístico, à qual se misturava certa euforia com a nova indústria cultural, que estava nascendo. Ao retomar o assunto em 1997, nos anos FHC, Caetano atenuou o anterior aspecto negativo ou crítico e deu mais realce ao encanto dos absurdos sociais brasileiros, tão “nossos”. Um tropicalismo quase ufanista e algo edificante. No ensaio procurei acompanhar e discutir estes deslocamentos.
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http://revistacidadesol.blogspot.com.br/2012/04/da-critica-da-mercadoria-mercadoria-da.html
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