Nas manhãs de domingo, pode-se saber do Centro pelo aboio alucinado dos camelôs e suas infinitas confecções: fitas e cores de um cruel imaginário. Ou pelos passos maltrapilhos e noiados de seus moradores de rua. Ou ainda pelo silêncio e pela solidão de suas esquinas, exceção que comprova a regra da agitação e da vitalidade do bairro durante a semana.
Mas também se pode saber do Centro pelos sorrisos. Pela conversa espirituosa e pelas piadas boêmias. Pela cerveja gelada e pelos tijolinhos de queijo coalho derretendo na boca. Pela boa música e pela dança dos coroas. Pode-se saber desse um berço da cidade através de encontros e abraços. A delicadeza está nos olhos de quem vê.
Esse último Centro – entre tantos outros possíveis no umbigo mais carismático (e problemático) de Fortaleza – se espreguiça aos domingos na Travessa Crato. Estabelecimento 44, para ser mais preciso. Mas nem carece de tanto detalhe. Ao entrar na General Bizerril, vindo da inércia da Castro e Silva, em poucos passos já é possível saber do Raimundo do Queijo. O “Seu” Raimundo do Queijo, endereço de boemia vespertina que desde 1978 descortina gentilmente uma outra Cidade no Centro.
Faça chuva ou sol. Tudo sob o comando de Raimundo Oliveira Araújo, comerciante, 77 anos, natural de Chaval, que fincou bandeira por aqui em meados dos anos 70. No início, eram apenas os queijos, pimentas, doces e quitutes do sertão. Em seguida, veio a clientela fidelizada - “tudo gente de família, um pessoal tranquilo” -, que fez vingar o comércio e pediu o acompanhamento da cerveja. Há 12 anos, veio a música. Nada de paredões, forró-lixo e suas típicas grosserias sexistas. A música, ali, se escuta com o coração e com os encantos da memória, não com os rins.
Valdecir, cego que comanda um trio pé de serra muito popular no local, se reveza com regionais de choro e samba e grupos que tocam o repertório da jovem guarda. Consta que, certa feita, gritaram à chegada do sanfoneiro: “Todo cego é corno!” Ao que o próprio, gênio da raça, respondeu: “E todo corno é cego!” E fez-se a risadaria geral no ambiente.
Falcão anda por lá, o que assanha os mais espirituosos a se atreverem em “duelos” de piada. Do alto de seus 105 anos, Valdemar Caracas, que fundou o Ferroviário Atlético Clube e, pelo andar da carruagem coral, é capaz de fechá-lo, tem cadeira cativa. A prefeita já dividiu o balcão com seus eleitores e o ex-governador Lúcio Alcântara também dá o ar da graça de quando em quando. Outras “celebridades” da casa circulam entre as mesas, pedindo colaboração pra “interar” o cachê dos músicos ou sendo ironicamente ovacionadas ao microfone.
Há alvinegros e tricolores, que, não raro, dividem mesas e, por ali, são apenas torcedores pacatos que contam vantagem para o rival. Há gente de esquerda e gente “reaça”, que tira folga da política (ou nem tanto) para apenas exercer a doce boemia. Há idosos e crianças. Há os que chegam da boemia do dia anterior e há os que chegam para começar o dia.
Há outros dias em que a casa (e a travessa) também funciona(m). Mas no Raimundo do Queijo, há, sobretudo, o domingo, essa promessa de Cidade em nosso coração.
Texto publicado na edição do jornal O POVO do dia 13 de abril, caderno A cidade das delicadezas, que homenageou a cidade de Fortaleza pelo seu aniversário de 286 anos. Foto de Ethi Arcanjo.