segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Aparecida: força rara do samba


Quando Clementina de Jesus apareceu no cenário da música brasileira, em meados dos anos 60, ampliou o nosso horizonte vocal, trazendo timbres, ressonâncias e referências africanas que o mercado fonográfico ainda não havia incorporado ou assimilado. Não havia, até então, nada que pudesse ser comparado ao canto roufenho e encantado da Rainha Quelé. A partir de Clementina, o Brasil pisou por inteiro e sem pudores no chão multi-enraizado dos terreiros de candomblé e umbanda e se reconheceu em seu espelho mais profundo. Durante as décadas seguintes, foi possível rastrear as luzes e os perfumes da rainha negra do canto brasileiro em artistas dos mais diferentes matizes: em Clara Nunes e nos Tincoãs nos anos 70; nos cantos afro dos blocos de Salvador como Olodum, Ara Ketu e Ilê Ayê nos anos 80 e 90; na modernidade de Fabiana Cozza e Luiza Dionísio nos anos 2000.
No meio desse percurso, no entanto, há uma figura de que pouco se fala mas que, de todos os epígonos de Clementina, foi a que mergulhou mais fundo no leito africano de nossa música. Trata-se de Maria Aparecida Martins (1939-1985), ou apenas Aparecida, cantora e compositora mineira que, logo criança, radicou-se no Rio de Janeiro. Trabalhando como passadeira em casas do bairro de Vila Isabel, Aparecida começou a compor na década de 50, atividade que lhe levou a trabalhar em rádios e, mais tarde, lhe abriu as portas no cinema. No início da década de 1960, participou do filme "Benito Sereno e o Navio Negreiro". Em 1965, depois de uma temporada na França, voltou ao Brasil e venceu o "Concurso de Música de Carnaval do IV Centenário da Cidade do Rio de Janeiro". Também venceu o  "III Festival de Música de Favela", com o samba "Zumbi, Zumbi", representando a favela da Cafúa, de Coelho Neto. Em 1968, compôs "A sonata das matas" para a Escola de Samba Caprichosos de Pilares, entrando para a galeria de honra da história do carnaval carioca - depois de Dona Ivone Lara, foi a segunda mulher a compor um samba-enredo vencedor dentro de uma escola de samba.

Em 1974, Aparecida participou do LP "Roda de samba", lançado pela gravadora CID, que reunia Darci da Mangueira, Sidney da Conceição, Sabrina e Chico Bondade, entre outros. No disco, gravou pela primeira vez uma composição de sua autoria, "Boa-noite". Bem sucedido, o LP ganhou um volume 2, em que Aparecida novamente constou entre os cantores convidados. Dessa vez, gravou "Proteção" (David Lima e Pinga) e "Rosas para Iansã", de autoria de Josefina de Lima. No disco também participaram Nelson Cavaquinho, Sabrina, Roque do Plá, Rubens da Mangueira e Dida.
O prestígio com a série "Roda de Samba" permitiu que ela chegasse ao primeiro disco solo. Em 1975, também pela Cid, gravou Aparecida (foto ao lado), LP em que interpretou várias músicas suas, como "Talundê" (c/ Jair Paulo), "Tereza Aragão", "Meu São Benedito", "Inferno verde", "Nanã Boroquê", "Segredos do mar", as duas últimas em parceria com Jair Paulo, e ainda uma adaptação do folclore "A Maria começa a beber".
No ano seguinte, veio o segundo disco: Foram 17 anos (foto principal). Com arranjos de Durval Ferreira e arranjos de José Menezes (que também assinaram o primeiro LP), o disco mais uma vez trouxe Aparecida interpretando várias composições de sua autoria, entre elas "17 anos", "Grongoiô, propoiô" (c/ João R. Xavier e Mariozinho de Acari) e "Diongo, mundiongo". Na cozinha dos dois discos, um time de primeira, formado, entre outros, por Sivuca, grupo Nosso Samba e As Gatas. Em 1978, Aparecida transferiu-se para a RCA, onde gravou mais três discos: Cantigas de fé (1978), 13 de maio (1979) e Os deuses afro (1980).
A geração do CD só teve a oportunidade de conhecer a música de Aparecida através da coletânea Aparecida, Samba, Afro, Axé, lançada pela Cid em 1996. Para saber de seus discos, hoje, infelizmente, somente através de blogs e sites especializados. Uma pena. Escutar seus LPs é se reencontrar com uma latitude preciosa da música brasileira - que começa com Clementina, mas que, em Aparecida, ganha uma força rara, preparando terreno para divas negras como Cozza e Dionísio.

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