quinta-feira, 28 de março de 2013

Jazz cinco estrelas


Mais do que por sua virtuose, Miles Davis consagrou-se no mundo do jazz por sua atinada capacidade de estimular e agenciar talentos. Em mais de 50 anos de carreira, ele foi um exímio “olheiro” musical, que soube escolher seus pares e pupilos para, a partir deles, reinventar algumas vezes a música ao longo do século XX.

Sua trajetória pode ser contada em capítulos que dão conta dos chamados “grandes quintetos” que teve a seu lado. O primeiro deles, nos anos 50, com quem gravou obras-primas como Kind of Blue (1959) – muito provavelmente o melhor disco de jazz de todos os tempos. O segundo, nos anos 60, com quem Miles viajou o mundo e alcançou um sucesso comercial até então inédito para os padrões do jazz. E, por fim, o terceiro, a chamada “lost band”, já na virada dos anos 60 para os 70, com a qual Miles levou o jazz ao desbunde e à lisergia do fusion.

Em todos eles, Davis aparece liderando um elenco de estrelas da música que, consolidadas as carreiras individuais e as mitologias subsequentes, é difícil de imaginar que um dia tocaram todas juntas. John Coltrane, Red Garland, Paul Chambers, and Philly Joe Jones, no primeiro quinteto (que, em seguida, teria Cannonball Adderley, Bill Evans e Jimmy Cobb na formação em sexteto); Wayne Shorter, Ron Carter, Tony Williams e Herbie Hancock, no segundo; e Shorter, Chick Corea, Dave Holland e Jack DeJohnette, no terceiro.

Além do time estelar, outro fato é comum a quase todas essas formações: a vida efêmera. Embora tenham escrito páginas eternas da música instrumental, raramente os “ensambles” de Miles duravam mais de um ano. Em geral, bem menos que isso. Exceção feita apenas ao segundo quinteto, cujos quatro anos de existência soaram quase como uma eternidade na carreira do trompetista.

É sobre a turnê europeia de 1967 desse segundo “grande quinteto” que se debruça o primeiro volume de Bootleg Series, lançado em 2011 no exterior e que agora ganha edição nacional. A caixa, charmosa e com um belo material iconográfico, reúne três CDs e um DVD que registram apresentações do grupo em teatros e festivais na Bélgica, Dinamarca, França, Suécia e Alemanha.

Versões
À época, o jazz começava a experimentar certa decadência comercial nos Estados Unidos e o mercado europeu de shows e gravações tornou-se o salva-vidas de muitos músicos. Miles, que não era besta nem nada, ao mesmo tempo em que era sensível aos talentos que lhe brotavam ao redor, comercialmente também tinha um radar afiado – daí seus giros cada vez mais rotineiros pelo Velho Continente e seu diálogo com outras vertentes musicais, como o funk e o rock.

As gravações de Bootleg Series são todas inéditas e foram obtidas a partir de registros de TVs e de rádios europeias. O repertório é formado por alguns poucos “standards”, mas sobretudo por composições que foram (ou seriam) apresentadas nos discos de estúdio do quinteto – álbuns como E.S.P. (1965), Sorcerer (1967) e Nefertiti (1968) -, uma das fases mais brilhantes da discografia de Miles.

A maior parte das músicas se repete ao longo dos shows, a exemplo de “Agitation”, que abre quatro das cinco apresentações da caixa. Cada execução, entretanto, conduzida pela criatividade dos solistas, é carregada de sentidos e destinos particulares.

“Eu nunca me preocupei muito sobre por que ou quando Miles começava a fazer algo em particular; mas penso que ele tinha um acurado senso do que funcionaria na frente de determinada audiência”, afirma Herbie Hancock, no encarte.

A frase seria em parte desmentida pelo próprio Miles, em declaração também reproduzida no encarte: “Eu nunca penso sobre a audiência. Eu só penso sobre a banda. E se a banda está bem, eu sei que a audiência está satisfeita”.

Seja como for, o fato é que Miles, no centro do encontro, proporcionou um dos grandes momentos da história do jazz. Coisa de um genial “treinador” que, no mais das vezes, nem precisou entrar em campo para fazer seu time jogar um partidaço.

* Matéria publicada no caderno Vida & Arte (jornal O POVO), edição de 28.03.2013

quinta-feira, 14 de março de 2013

Um ateu observa a escolha do novo papa



Acompanhei o noticiário sobre a escolha do novo papa motivado por um interesse que é muito mais “cultural” do que religioso. Ateu não-praticante (porque não concordo com certo proselitismo ateísta/agnóstico corrente em nossos dias), não consigo deixar de me sensibilizar e de me emocionar com a percepção da centralidade da fé na experiência humana de tantas pessoas. Tem sido assim desde que descobri que as mitologias religiosas não repercutiam em mim como narrativas de transcendência ou de “salvação”, mas “apenas” como manifestações da cultura – posição pessoal e intransferível que, no entanto, não me impediu de me encantar com tantos rituais religiosos que acompanhei como repórter e editor.
A renúncia de Bento XVI reafirmou a força e a influência da religião no chão dos nossos dias. E me fez lembrar de um texto do teólogo Bernard Lauret, publicado recente pela revista Cult, em que ele restitui a Ratzinger um protagonismo admirável no âmbito do debate cultural. Resgatando discursos e debates em que Bento XVI tomou parte, mostra como ele foi um sacerdote que, no âmbito da crítica cultural, soube “sublinhar a complementaridade entre razão e fé”. “Ele não condena os ganhos do Iluminismo no que concerne à liberdade de consciência, à ‘coexistência de diferentes culturas religiosas’ e à separação entre estado laico e religião. Em revanche, recusa que somente os critérios da razão iluminista sejam capazes de julgar a legitimidade das tradições religiosas”, diz Lauret.
De fato, se não é suficiente analisar as manifestações da cultura apenas com os critérios religiosos, porque aí o olhar corre o risco de ficar embotado pelo fanatismo e outras “doenças” da religião; seria de se estranhar que um homem tocado pela experiência religiosa conseguisse discernir o mundo apenas pelo viés da razão. Para Ratzinger, não existe fé pura, independentemente de uma cultura. Mas o contrário, para ele, também é verdadeiro. “A missão cristã não tem por objetivo transplantar o cristianismo ocidental (fé e cultura mescladas) em outras culturas cuja dimensão religiosa seria ignorada. Essa abordagem das culturas por suas relações mútuas necessárias e o respeito das diversas tradições religiosas relativiza, de um só golpe, o cristianismo sob sua forma ocidental, e eleva ao mesmo tempo a figura de Cristo, Lógos semeado por toda parte”, defende Lauret.
Não me preocupa, portanto, se o novo papa vai ser mais ou menos conservador, mais ou menos radical ; mas se saberá conduzir sua instituição por um caminho em que a palavra de ordem não seja o “choque” de culturas e religiões. Nem o choque de direitos. Mas a tolerância e o diálogo.
Ele pode até defender que Deus não seja tirado definitivamente da vida pública. Mas terá de conviver com (e amar) “vidas” e “espaços” públicos em que o seu deus não arbitrará.

* Texto publicado no caderno especial Francisco, um novo começo publicado no jornal O POVO (14.03.2013)