Os movimentos de revisão da tradição escreveram a história da música brasileira. Hoje, com a revolução dos acervos de MP3, a tradição reinventa a modernidade. (Texto publicado na edição número 1 da revista O POVO Cenário)
Em se tratando de música brasileira, nada é tão moderno quanto o passado. No campo da canção popular, essa aparente contradição é ainda mais hegemônica. Noves fora alguns esforços vanguardistas na seara da chamada “música erudita”, a história de nossa música é contada por movimentos cíclicos de revisão da tradição que se dão à luz das noções de modernidade correntes na economia simbólica de determinada época. Desde o fim do século XIX, nossa música foi pensada (por teóricos e artistas) como uma longa suíte de temas que deságuam sempre no mesmo coda: o tempo presente emitindo notas de um mundo pretérito (re)idealizado.
Nas primeiras décadas do século XX, entre as urgências reivindicadas pela arte moderna, estava a necessidade de modernização, pelas vias de um nacionalismo atrevido, de uma cultura brasileira considerada “primitiva”. Desse prato, como se sabe, serviram-se Tarsila do Amaral, Oswald e Mário de Andrade. E também Heitor Villa-Lobos e Radamés Gnattali. No caso do samba, seu “primitivismo” foi usado com bandeira de nossa nacionalidade e, sob a batuta populista de Getúlio, ganhou o estatuto de música nacional. Sobre o tema, vale conferir o belo ensaio Modernidades Primitivas – tango, samba e nação, da argentina Florencia Garramuño.
A partir daí, “modernismos” e “primitivismos” voltariam a se entrelaçar e a se reinventar em outros ciclos de nossa música. Na bossa nova, como se sabe, houve o desejo de alinhar nosso cânone a novidades harmônicas e rítmicas que chegavam do exterior. Aquele novo samba já não era mais batido na palma da mão nem costurado pelas baixarias seresteiras dos mestres do violão de 7 cordas. João Gilberto estilizou nosso batuque nas cordas de seu violão e os músicos deixaram os regionais, refugiando-se nos trios daquele meio jazz tupiniquim – ou nas salas e varandas dos convescotes nos apartamentos de Ipanema.
A tropicália recolocou narcisos na frente do espelho e espelhos na frente de recalques. O rock nacional dos anos 80 achou (quase) tudo muito feio e, ainda de ressaca pela repressão militar, renegou taxativamente o diálogo com a geração anterior e a tradição não-roqueira; embora um Cazuza mais maduro transasse Nelson Cavaquinho sem grandes grilos. Um conflito de gerações estava posto. Eis que, em meados dos anos 90, surge Chico Science e novamente “primitivismos” e “modernidades” voltam a se comunicar. E a se justificar mutuamente. Não tardou para grupos de maracatu se espalharem pelo País, DJs internacionais incorporarem batuques afro-brasileiros em seus sets e o público jovem se reaproximar de suas músicas locais (as guitarradas paraenses, os bois e o tambor de crioula do Maranhão, o samba carioca, etc). A cultura musical brasileira foi reanimada num intenso processo de reencontro.
Chico "modernizou o passado" e fez sua "evolução musical", como anunciava em “Samba Makossa”. Desde então, a música brasileira caminha pra trás – no melhor sentido da expressão. Com as possibilidades tecnológicas da revolução dos acervos de MP3, essa sanha de modernizar nossa tradição se inverteu. Hoje, reinventamos a modernidade através da tradição e de nossos “primitivismos”. É o ponto onde estamos. Olhando pra trás, nunca fomos tão modernos.
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