Paul Chambers, o Mr. P.C. da música de Coltrane.
domingo, 25 de novembro de 2012
Alta Ajuda
Entrevista publicada com o ensaísta Francisco Bosco (jornal O POVO, caderno Vida & Arte, edição de 10 de novembro de 2012
O critério é ético. No sentido colocado por Espinosa, da ética como um modo de vida destinado a “encontrar os afetos da alegria e evitar os da tristeza”. Foi, portanto, mirando a alegria que Francisco Bosco escolheu os textos que compõem seu novo livro, Alta Ajuda, coletânea de ensaios publicada pela editora Foz. “Uma das tarefas de hoje é discernir entre certa euforia compulsória (do tipo animadores de auditório) e a verdadeira alegria, em presença da qual é a totalidade da vida que se afirma”, ele explica em entrevista ao O POVO. Munido desse compromisso, ele selecionou 35 textos – entre os mais de 200 ensaios publicados ao longo dos últimos seis anos em jornais e revistas de todo o país – nos quais percorre problemas e situações comuns do cotidiano com a sensibilidade analítica, a engenhosidade estilística e o repertório teórico que marcaram seus livros anteriores, como o ótimo Banalogias (2009). Doutor em teoria da literatura, o flamenguista Bosco encontrou em Barthes, objeto de sua tese na UFRJ, a principal referência para olhar o cotidiano entrelaçando grandes e pequenos temas: do esvaziamento das relações amorosas ao (des)prazer de viajar, da paixão pelo futebol às indiscrições do facebook. “Minha proposta é a de abordar com espírito filosófico os problemas da existência cotidiana, comuns a qualquer pessoa. A essa proposta, José Miguel Wisnik chamou, certa vez, de alta ajuda”, ele explica na apresentação do volume. “Conforme atesta o título do livro, assinei embaixo”.
O POVO - Qual a diferença entre o Francisco Bosco autor dos textos publicados em jornais e revistas e o autor que reescreveu “impiedosamente” – como você explica na apresentação - esses textos para o livro? Francisco Bosco - A felicidade da forma é perfeita; a da ideia, imperfeita. Quando se conquista a forma, ela é irretocável (um soneto de Shakespeare, um concerto de Mozart). Mas as ideias são sempre retocáveis, elas se aproximam infinitamente (da realidade? Da verdade?). Portanto a diferença entre as ideias que publico originalmente no jornal e o modo como elas aparecem no livro é que nesse último elas estão mais aprimoradas.
O POVO - Na apresentação do livro, você explica que há um critério ético para a seleção dos textos - no sentido dado por Espinoza, que entende a ética como um modo de vida destinado a “encontrar os afetos da alegria e evitar os da tristeza”. A alegria é uma força revolucionária para nossos dias? Francisco - Penso que existe sim um potencial revolucionário na alegria. O poder opera por meio do medo. O medo é uma forma de tristeza, como diz Espinoza, e a tristeza deixa os sujeitos sob controle. Mas uma das tarefas de hoje é discernir entre certa euforia compulsória (do tipo animadores de auditório) e a verdadeira alegria, em presença da qual é a totalidade da vida que se afirma.
O POVO - No ensaio “O Rei contra a realidade” (sobre as manias e a religiosidade de Roberto Carlos) você escreve que o idealismo religioso, seguido radicalmente, conduz a um recalque dos aspectos incômodos, porém constitutivos, da realidade. No Brasil, é evidente um acirramento de radicalismos de diversas ordens nesse campo. Qual a repercussão desse processo em nosso pensamento crítico? Francisco - Um dos modos de responder a essa pergunta é considerar que o fundamentalismo religioso é uma reação à angústia da liberdade, como diria Sartre. A época moderna é aquela do desmoronamento de todas as certezas. Ora, não é todo mundo que suporta um mundo aberto, pois é mais cômodo para o sujeito acreditar em princípios imutáveis e segui-los à risca. É uma forma perigosa de infantilidade e covardia, como se sabe. Penso que se deve lutar contra isso com todas as forças.
O POVO - Em sua origem, a imprensa libertou a educação do monopólio da Igreja, separando a figura do “homem de letras” da figura dos sacerdotes e fazendo o conhecimento circular para fora das bibliotecas dos mosteiros. Desde então, os meios de comunicação ajudaram a redefinir e a remanejar o papel do intelectual na sociedade. Quem precisa mais de quem em nossos dias: o jornalismo, dos intelectuais? Ou esses daquele? Francisco - Idealmente falando, imprensa e intelectuais cumprem a mesma função, fundamental para a democracia: fomentar o dissenso, propor novas ideias, impedir os excessos dos poderes constituídos. Na prática, a relação entre ambos é mais complicada. Um dos problemas é que o jornalismo passou a operar demais dentro de uma lógica da informação (superficial e de entretenimento), enquanto os intelectuais vivem sob a lógica do pensamento, que é densa, lenta, angustiosa. Eu, que me vejo constantemente entre essas lógicas, sei bem o quanto elas se estranham.
O POVO - Harold Bloom defende que “a verdadeira utilidade de Shakespeare ou Cervantes é aumentar nosso próprio eu crescente. O diálogo da mente consigo não é basicamente uma realidade social. Tudo o que podem nos trazer é o uso correto de nossa solidão, cuja forma final é nosso confronto com a mortalidade”. Você nada contra essa corrente e parece propor não a solidão, mas os encontros, a “afetividade da alegria”. Estou correto? Francisco - Eu concordo que a utilidade do cânone é “aumentar nosso eu crescente” (embora a frase seja um pouco redundante). Mas penso que isso tem consequências para a “realidade social”. Prefiro viver numa sociedade cheia de sujeitos pensantes, do que numa repleta de cabeças opacas. Isso tem consequências para a vida social. E talvez pudesse ter um impacto forte sobre o que considero a maior tragédia do Brasil, que é não se pensar coletivamente, como uma verdadeira sociedade, cujo bom funcionamento depende do respeito mútuo, do engajamento de todos.
O POVO - Teu trabalho como escritor é inegavelmente marcado por tua formação universitária e, no entanto, teus ensaios conseguem quebrar um tipo de postura insular que é recorrentemente denunciada entre os intelectuais da academia. Qual é o teu olhar para essa relação entre o ambiente universitário e o mundo fora da universidade? Francisco - Penso que é muito importante que a Universidade cumpra um papel, digamos, impopular: que nela se realizem pesquisas árduas, linguagens difíceis, pensamentos ambiciosos. E também é importante que haja ensaístas como eu, que proponham uma disseminação de ideias em maior escala quantitativa. A Universidade hospeda o risco da esterilidade e de uma hipertrofia teórica afastada da realidade. Mas escritores como eu convivem com o risco de limitar a intensidade de suas ideias por conta da proposta de um diálogo mais amplo. Hoje, especialmente, é preciso tomar cuidado com certa ideia de democratização: as experiências da arte e do pensamento podem deixar de ser elas mesmas quando submetidas a esse processo. E aí de nada vale democratizar algo que não vale nada.
O POVO - Por fim, como alguém tão “lúcido” pode ser flamenguista? (A pergunta foi feita em tom de brincadeira, mas o próprio Bosco insistiu para que fosse publicada) Francisco - Todo sujeito é feito de identificações, algumas “primitivas”, como dizia Freud, e outras formadas ao longo da vida (amigos, ideias etc.). Essas identificações estão sujeitas a mudanças: mudamos de ideias, de amores, de amigos. Só não mudamos de time. A identificação com um time é primitiva e costuma ser mediada pelo pai. Isso explica que a escolha de um time nada tem a ver com lucidez ou racionalidade. Como de resto todas as identificações primitivas e boa parte das que ocorrem na vida adulta. O problema, no caso, não é a falta de lucidez, mas a impossibilidade de romper a identificação. Nada é mais estranho e interdito para nós do que romper a identificação com um time: nem mudar de partido político, nem de religião, nem mesmo de sexo.
SERVIÇO Alta Ajuda O quê: novo livro de Francisco Bosco Editora: Foz (160 páginas) Quanto: R$ 34,90
Trecho
“Roberto Carlos , então, descobre-se impedido por essa força estranha no seu psiquismo de falar e cantar certas palavras. (...) Na canção “É preciso saber viver”, o verso ‘se o bem e o mal existem’ chegou a ser substituído por ‘se o bem e o bem existem’. Não se trata de uma mera troca de palavras: é toda a dimensão negativa da experiência humana que é recalcada. O estreitamento da realidade tem como consequência necessária o estreitamento da arte. O que havia em Roberto , e que o fez merecer o título de Rei da juventude, e depois simplesmente Rei, na medida em que suas canções traduziram a experiência humana madura nos anos 70, o que havia, e se perdeu, era a aceitação da realidade. Não se pode ser artista recusando-se a olhar para ela”.
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