Entrevista com Michel Maffesoli publicada no jornal O POVO e assinada em parceria com o repórter Emerson Maranhão. Foto de Igor de Melo.
Não só a razão, mas também os afetos. Não apenas o indivíduo, mas a pluralidade da persona. Não só a política abstrata, mas a concretude da solidariedade. Em sua carreira como teórico da comunicação e da pós-modernidade, o francês Michel Maffesoli tem seguido a cartilha marxista de procurar “ouvir as plantas crescerem” para entender o que há de revolucionário no mundo. E tem decantado uma nova ordem mundial baseada não mais em conceitos tradicionais, mas em novos valores e protagonistas que se articulam pela internet, dissolvendo e reinventando as noções de estado, de educação, de gênero e de poder.
“O que temos é uma ordem verticalizada, que caracteriza a ordem moderna, os partidos políticos, a democracia. Creio que isso vai deixar lugar para uma nova ordem, uma nova forma de solidariedade e de generosidade, que parte de baixo pra cima, de uma forma indutiva. E não simplesmente de cima pra baixo”, afirma.
Fim da educaçãoProfessor emérito da Universidade de Sorbonne, Maffesoli esteve em Fortaleza no último dia 5 de setembro. Em entrevista exclusiva ao O POVO, ele discutiu essa nova ordem mundial e anunciou a falência de grandes narrativas como o marxismo, além de apontar para o que considera o fim da educação.
“Os astrofísicos, por exemplo, dizem que nós ainda enxergamos hoje a luz de uma estrela que já morreu muito tempo atrás. Você precisa de tempo pra enxergar que aquela estrela morreu. A estrela da educação morreu, mas nós ainda enxergamos a sua luz”, defende.
O POVO - Em suas obras, o senhor chama atenção para forças sociais que se colocam distantes do poder político tradicional. Que forças são essas e que novas políticas elas propõem?
Maffesoli - Se você me permitir ser radical, acho que a política está saturada. Na Europa, as novas gerações realmente não têm muito interesse político. Todas as eleições têm de 60% a 70% de abstenção, pessoas que simplesmente não querem votar. Li que aqui o voto é obrigatório, mas que mais e mais jovens não querem ir votar. O que quero dizer com isso é que atualmente existem novas formas que não são mais políticas no sentido tradicional. Manifestações como estamos vendo na Inglaterra, em Madri, em Paris. Ou seja, estamos num momento onde se busca uma nova maneira de intervir na vida política. Não é mais aquela política como conhecemos, aquela coisa programática, onde tenho um programa reformista, revolucionário ou conservador. Hoje, existe essa ideia da volta à emoção, à parte emocional, às nossas raízes. Ou seja, é uma ordem política diferente.OP - Que nova ordem é essa?
Maffesoli - Uma nova ordem está em fase de gestação. Vou tentar explicar isso de uma forma meio rápida e também de uma forma provocativa. Eu acredito que o que caracteriza a pós-modernidade é uma ordem anarquista, sem estado. É um ajuste, um rearranjo, um convívio a partir dos grupos de base, das comunidades. A ordem verticalizada caracteriza a ordem moderna, os partidos políticos, a democracia. Creio que isso vai deixar lugar para uma nova ordem, uma nova forma de solidariedade e de generosidade, que parte de baixo pra cima, de uma forma indutiva. E não simplesmente de cima pra baixo. Essa é a tendência. O que vemos nas manifestações jovens, é uma verdadeira erupção dessa sensibilidade anarquista, o que chamo de lei da irmandade, dos irmãos.OP - Que avaliação o senhor faz das redes sociais e da internet como ferramentas de mediação e articulação dessas novas forças sociais?
Maffesoli - Na origem grega, a palavra política é a cidade, é a gestão da cidade, a gestão daquilo que está próximo a nós. Hoje, a política é justamente o contrário, é uma coisa que está distante de nós. A vida política é um jogo para alguns, para uma elite, para poucos. Não tem mais nada a ver com o povo. Para mim, temos que voltar ao povo. Então, o povo é arcaico, naquele sentido grego, que é aquele que vem primeiro, que é fundamental. Acho que é isso que está acontecendo na França, esse retorno ao povo. Isso está abrindo caminho para as redes sociais, fóruns de discussão, orkut, twitter, quer dizer, toda essa horizontalidade da vida societária. Ou seja, é algo que é vivenciado com os outros. E essa nova solidariedade com certeza recebe ajuda do desenvolvimento tecnológico. Estamos no início dessa revolução que está acontecendo com o telefone celular, edes sociais, internet, toda a comunicação instantânea. Essa ideia de comunicação viral, de vírus, isso está mudando o convívio das pessoas com a política. Não há mais lugar para a política abstrata em relação à vida social. Eu diria que a política vai continuar, ela não vai desaparecer. Ela faz parte da nossa vida. Mas a vida verdadeira vai ser nos bairros, nas casas, nos lares.OP - Em um livro recente, Saturação, o senhor discute como a solidariedade está migrando do estado social provedor para o quadro comunitário e para as técnicas interativas. Pensando isso à luz da grave crise econômica que afeta alguns países da Europa, que novo tipo de estado pode estar sendo definido por essas forças e por esse cenário que o senhor discute?
Maffesoli - Nós estamos vendo o fim do estado. Estamos voltando ao ideal imperial. Não no sentido do imperialismo americano, por exemplo. Mas da constituição de identidades macroscópicas. Podemos pensar num império norte-americano, mas também num império sul-americano, europeu, asiático, africano, etc. Ou seja, as grandes identidades e, dentro dessas identidades, o retorno, o resgate da comunidade. E, a partir disso, um estado não-centralizado, uma disseminação. Um exemplo: na Europa, nós tínhamos os estados centralizados, e isso se manifestava na aviação e nas ferrovias. Em cada estado, as vias aéreas, as ferrovias começaram a se centralizar em uma capital. E aquilo era o símbolo da centralização do estado-nação. Hoje, existe uma circulação ferroviária ou aérea que liga Barcelona a Milão, Lyon a Colônia, Toulouse a Roma. Quer dizer, simbolicamente falando, isso significa que não existe mais essa centralização por estado. Ao contrário, há o retorno dessa idéia imperial, como acontecia na idade média, sem fronteiras. Há uma espécie de comunicação entre as regiões, entre as cidades, ou seja, entidades humanas. Entidades em que não vemos mais aquele estado provedor, que vem de cima pra baixo. Na verdade, existe uma nova forma de solidariedade, que se exerce nesse conceito de proximidade. E o desenvolvimento tecnológico faz parte disso. Numa pesquisa que realizamos recentemente, discutimos como essa nova geração desenvolve na Europa novas formas de hospitalidade. Se ela vai sair de Paris, onde ela vai ficar em Barcelona? Em Berlim? E vemos que existem essas redes de solidariedade concretas, que fazem com que se crie essa nova forma de hospitalidade, uma nova sociedade.OP - A solidariedade é uma marca da pós-modernidade?
Maffesoli - Gosto da expressão lei dos irmãos ou irmandade. Isso me diz sobre novas maneiras de convívio, que vêm de baixo pra cima. É isso a solidariedade afinal. É ceder algo para comer, para abrigar alguém, para receber ajuda psicológica, espiritual. Algo que tem a ver com os sentimentos, com a emoção. Então, acredito que a palavra solidariedade é uma das palavras-chave da pós-modernidade. É algo que não está relacionado a valores abstratos, mas a valores concretos. Para mim, a cultura verdadeira é comer, se vestir, amar, não é verdade? Nós vemos que é uma nova forma muito concreta, que está se realizando nessas redes. Redes para procurar um par amoroso, para procurar hospedagem, redes para qualquer coisa, fóruns de discussão. Então, solidariedade é isso. Não é uma coisa abstrata. É na verdade uma realidade muito concreta.OP - Em um livro recente, A República dos Bons Sentimentos, o senhor questiona o “bem-pensar”, o politicamente correto que estaria ancorado em conquistas teóricas do século passado e mesmo do século XIX. Grandes narrativas como o marxismo ou a psicanálise estão sendo mal interpretadas em nossos dias ou elas não dão mais conta da nossa realidade?
Maffesoli - Todas são obsoletas para mim (risos). Totalmente ultrapassadas. A intelligentsia – ou seja, os jornalistas, os políticos, aqueles que têm o poder de dizer -, esteve muito no centro da filosofia das luzes e foi alimentada pelos grandes sistemas de emancipação dos séculos XIX e XX, o marxismo, o funcionalismo etc. Tudo mediado pela noção de contrato social. Essa ideia de que você é um homem racional, eu sou um homem racional também e nós podemos ter uma comunicação racional. Então, até o freudismo consiste em liberar e estudar o inconsciente para que ele se torne racional. É por isso que digo que essa intelligentsia, essa elite continua com ideias do século XVIII ou XIX, consciente ou inconscientemente. Nós não temos que conhecer tão bem a teoria marxista para conhecer isso, mas ela está tão entranhada que parece que vem do leite materno. Nós permanecemos com essas ideias e exercemos esse moralismo. Esses são os bons sentimentos. Nós continuamos pensando o que nós devemos fazer. Weber chama isso de a lógica do dever ser. Ou seja, nós continuamos com essa lógica do dever ser e nós não sabemos mais o que somos. Penso que é necessário um resgate do emocional, da paixão. Nós temos de nos purgar dessas grandes interpretações. Em termos filosóficos, nós temos que não simplesmente representar o mundo, mas saber presentar.OP - Esse apego a ideias dos séculos passados não seria uma forma de resistência à pós-modernidade?
Maffesoli - Nós preferimos as certezas do que as incertezas. Mesmo que as certezas nos impeçam de ver o que está acontecendo. A reação essencial, a reação humana, é de medo. Medo ao que é estranho, ao que nós não entendemos. Medo desse mundo que está efervescendo culturalmente. Um exemplo é o caso de Adorno. Ele dizia que o jazz era a barbárie. Porque estava acostumado com a sinfonia, com as orquestrações da música erudita. Ele temia o jazz. É a mesma coisa nos sistemas teóricos. Algo que foi anômico torna-se canônico. É a mesma coisa com os sistemas sociais do século XIX, que eram alternativos e se tornaram conservadores. Eles não souberam prestar atenção ao que estava em gestação. Marx tinha uma fórmula muito boa. Ele dizia que você tem que ouvir as plantas crescerem, as ervas crescerem. O nosso é trabalho é exatamente o de ouvir as plantas e as flores crescerem. Mesmo se isso for alternativo, mesmo se isso nos choca. Nós temos de nos chocar com a vida. E a vida é sempre cheia de desafios, a vida é perigosaOP - Em vez de educação, o senhor prefere falar em iniciação. Eu queria que o senhor falasse um pouco dessa ideia.
Maffesoli - Isso é muito importante pra mim. A tecnologia e as redes comunitárias apontam para um saber coletivo, que é a noosfera, a esfera do conhecimento, o saber coletivo. Isso mostra que o processo educacional é reacionário. Ou seja, continuamos com o processo que é aquele saber que vem de cima pra baixo. Prefiro falar em iniciação. A educação traz sempre a noção de poder, eu sei e você não sabe. Na iniciação, você tem um tesouro que você vai ter que guiar, fazer esse tesouro aflorar. O processo educacional foi uma coisa ótima, que marcou os séculos XVIII e XIX. Mas em meados do século XX, nós vimos a saturação. Em 64 em Berkeley, em 68 nas revoluções estudantis em Paris. Foram os primeiros sinais e daí houve todo um processo mais acelerado de transformação. Quando uma forma social não é mais pertinente, a gente precisa de um tempo pra entender isso. Os astrofísicos, por exemplo, dizem que nós ainda enxergamos hoje a luz de uma estrela que já morreu muito tempo atrás. A estrela da educação morreu, mas nós ainda enxergamos a sua luz. E vai demorar tempo para ver que ela morreu de fato.O POVO - Como o senhor entende a questão das liberdades sexuais na pós-modernidade?
Maffesoli - A maneira de se vestir, a maneira de se comportar, a postura corporal, os cabelos etc. Atualmente, tem alguma coisa de indeterminação sexual. Não é mais simplesmente o heterossexual que é considerado normal. Há uma saturação de identidade sexual típica, única. E podemos dizer a mesma coisa para a identidade política, para a identidade profissional. Eu posso agora ser um professor gente boa, bem vestido, com uma boa aparência e, hoje à noite, posso me vestir completamente diferente numa boate, posso me comportar diferente. São personagens, são máscaras. Não é esquizofrenia. São múltiplas facetas do que nós somos. Existe uma realidade físico-química que é a individualidade, eu sou eu, você é você etc. Mas tem um momento em que essa base, essa individualidade toma a forma da pessoa, plural, múltipla etc. Nós estamos nos deslocando do indivíduo para a pessoa.