segunda-feira, 8 de julho de 2013

Eles, os vândalos



Boa parte da crônica e da classe política teve enorme dificuldade em lidar com os recentes protestos pelo País não só em função de suas reivindicações difusas. Mas também por ter de encarar uma alteridade igualmente difusa em seu perfil. Um dos maiores pesadelos do homem moderno decidiu ir às ruas: o outro. E não havia um rosto disponível. Nem mesmo a tradição sebastianista de nossa cultura se fez valer: não havia salvadores nem mártires à mão.

Havia anarquistas de diversos matizes e aproveitadores de diferentes origens. Mas havia (e há), sobretudo, o estudante que passou a ter um novo padrão de exigência em relação ao País, a partir da melhora de sua própria condição de vida. O adolescente que experimentou as ruas e a discussão política pela primeira vez. O jovem da periferia, em seu desabafo violento contra a mesma polícia e a mesma institucionalidade que lhe esculacham diariamente nas sombras do tal estado de direito.
Entre tantos outros.

Desse caldo heterogêneo, emergiu a figura do “vândalo”, da “minoria baderneira”, apanágio de certa cobertura midiática ao lidar com essa alteridade sem rosto. A mesma cobertura que não consegue enxergar como tal outros vândalos cuja atuação está na raiz de todo esse “excesso” represado até então. Vândalos como Renan Calheiros e Henrique Eduardo Alves, presidentes do Poder Legislativo, despudorados ao fazer turismo em aviões da FAB. Como Garibaldi Alves, ministro igualmente surpreendido custeando seu lazer com recursos públicos. E até, ora vejam, vândalos como Joaquim Barbosa, constrangedoramente flagrado em seus passeios às custas do erário – num dos quais renovou o afeto com o amigo Luciano Huck, apresentador global que é, ora vejam também, patrão de seu filho.

Nos últimos dias, o melhor jornalismo não foi aquele que correu apavorado da anomia dos “vândalos” de rua e se refugiou na comodidade de um imaginário institucionalizado e preconceituoso. O melhor jornalismo tem sido aquele que vem dando um rosto aos verdadeiros vândalos em atividade no País.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

O "violêro" de volta a Fortaleza

Elomar: bachianas sertanejas
“Apois pro cantadô i violero/ só hai treis coisa nesse mundo vão/ amô, furria, viola, nunca dinhêro/ viola, furria, amô, dinhêro não”.
O refrão costura as longas estrofes de “O Violêro”, que abre o primeiro LP de Elomar, Das barranca do Rio Gavião, lançado há quarenta anos e já editado em CD. O disco sucedeu o compacto de 1968 e jogou o trovador baiano em definitivo no mundo da MPB. Na bagagem, Elomar trouxe seu violão rebuscado, embalando um cancioneiro que recendia a idade média e aos improvisos dos cantadores nordestinos. No repertório, já antecipava alguns de seus clássicos, como “O pidido”, “Zefinha”, “Cantiga de Amigo” e “Incelença prum amor ritirante”, uma das mais belas músicas da história da MPB. “Quem sabe não vai ser lá, no barato das galáxias e da música de Elomar, que eu vou acabar amarrando um bode definitivo e ficar curtindo uma de pastor de estrelas...”, escrevia um Vinícius de Moraes encantado com a figura caatingueira de Elomar no texto que acompanhava o encarte do disco. Elomar - cuja missão, segundo ele próprio, é “chiqueirar e pastorar, tangerino de ovelhas e bodes” - formou-se arquiteto, é fazendeiro no interior da Bahia e fez 75 anos em 2012. Quem nunca ouviu falar do homem pode, a partir desse disco - e desses shows este fim de semana em Fortaleza -, começar a se apaixonar por seu blues nordestino e suas bachianas sertanejas.


* Por ocasião dos shows de Elomar em Fortaleza, reescrevi, para o jornal O POVO, um texto já publicado aqui nesta porteira eletrônica.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

A metamorfose (Poemetes araújos - XXII)

Male and female (1942), de Jackson Pollock

Certo dia, acordou
saudoso de intensidades
              outrora sonhadas.
Ou, talvez, tenha
despertado após sonhar com
              intensidades já saudosas.
Em si, restou-lhe
abandonar um lar,
trair um país,
              sabotar sorrisos.
Restou esquecer a palavra no altar;
e virar sentido
em busca de altar
para sua palavra.

Quis saber dos atores para além
das cortinas.
Quis saber dos poetas em
suas esquinas.
Rasgou o livro da formalidade.
Restou-lhe ele próprio, saudoso
de um sonho de que já esquecera.
Restaram-lhe essas escaras,
esse vagar pesado,
essas queimaduras de paixão
               de terceiro grau.
Restou-lhe espiar
amores alheios, sem
saber que,
desde antes,
era o amor que lhe espiava:
               pacato, resignado.

Monumento ao soldado morto,
e desconhecido,
perdeu uma guerra que lutou
de trás pra frente.
Médico, fez-se paciente.
E ficou, à mão, sem qualquer verdade.

Resultado:
segue já não tão convicto
em suas dúvidas sobre
a felicidade.


segunda-feira, 1 de julho de 2013

O velho novo Maracanã



No início era o rádio, mais precisamente a rádio Nacional, que fazia o futebol carioca - assim como o samba - galvanizar o País. Com isso, para algumas gerações de torcedores brasileiros os clubes do Rio de Janeiro eram, ao lado de suas paixões regionais, efetivamente uma paixão nacional. Até os anos 90, raros eram os torcedores que, fora de São Paulo, por exemplo, torciam para clubes paulistas. Até então, salvo as disputas locais, o Brasil parecia se dividir entre os torcedores de Flamengo, Vasco, Fluminense e Botafogo. E os ídolos vinham quase todos de lá: Zizinho, Zico, Garrincha, Roberto Dinamite, Dida, Manga, Nilton Santos, Didi, Gerson, Assis etc.
Todo aquele carisma irradiado nacionalmente a partir do Rio tinha um palco, um templo que calava no coração e no imaginário de todo torcedor; o estádio Jornalista Mário Filho, o Maracanã, patrimônio material - e imaterial, pelas suas lendas, histórias e dramas - de todo apaixonado por futebol.
“Maracanã é nossa catedral /E com a Mangueira do seu lado, é bom sinal. /É futebol! /É carnaval! /Paixão igual a do meu povo /Eu não conheço nada igual”, canta Francis Hime na letra de Paulo César Pinheiro. “Domingo, eu vou ao Maracanã /vou torcer pro time que sou fã”, arrebatava Neguinho da Beija Flor. E, durante décadas, o Brasil inteiro, mesmo o torcedor que restava a milhares de quilômetros da Cidade Maravilhosa, “ia junto” com o sambista, com foguetes e bandeiras imaginárias, sagrar-se campeão.
O jogo de hoje entre Espanha e Brasil - para o bem e para o mal - leva novos tempos ao velho Maraca. Os clubes cariocas já não desfrutam do mesmo prestígio em âmbito nacional e vivem em estado pré-falimentar. O futebol, cada vez mais elitizado, virou um business cínico e calculista e a alegria popular da geral foi expulsa da arquitetura corrente. 
A quem serve esse novo gigante de concreto, não sei ao certo. A Copa das Confederações é um torneio atípico e, em sua partida final, certamente vai lotar todos os setores do estádio. Mas fico me perguntando como será a relação entre o estádio e o torcedor em campeonatos “reais”, como os deficitários campeonatos Carioca e Brasileiro.
Jogar no Maracanã era motivo de orgulho para todo desportista. Ser campeão em seu gramado, então, a glória suprema do futebol. Nesta Copa das Confederações, entretanto, atletas espanhois e italianos, por exemplo, já esbanjaram certa indiferença em relação à mitologia e à história do estádio. E mesmo para alguns jogadores brasileiros, tenho lá minhas dúvidas se fará tanta diferença ser campeão no Maraca ou em outro estádio qualquer.
É que a reforma recente, por mais luxuosa (e imoral em seus gastos), fez do Maracanã justamente um estádio qualquer. É o mesmo tipo de estádio que poderíamos encontrar em outros países; e, para completar, ainda bem menor, não mais o maior do mundo. Algo de muito valioso se perdeu junto com seus traços arquitetônicos originais. A partir de hoje, uma nova história começa a ser escrita.
* Texto publicado no caderno de Esportes do O POVO, edição de domingo, dia 30 de junho de 2013

FHC e o chá dos "umbigos delirantes"


A Academia Brasileira de Letras (ABL) – desde muito tempo – deixou de ser uma instituição relevante. Há anos, seu protagonismo se restringe a intervir nas cotações do mercado nacional de vaidades, afagando políticos e empresários. Vigora no casarão da avenida Presidente Wilson uma economia simbólica estéril e anacrônica que deixa para a história não mais que uma embolorada galeria de encômios casuístas. A ABL é a casa da burocracia do elogio fácil; um porfioso Baile da Ilha Fiscal da “inteligência” nacional.
Na semana passada, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi eleito “imortal”. Cadeira 36, cujo patrono é Afonso Celso – aquele do Por que me ufano do meu país. FHC, o superlativo de PhD, como definiu Millôr Fernandes. O intelectual que, chegando ao poder, pediu aos brasileiros que esquecessem o que havia escrito. O sociólogo outrora elevado à condição de “príncipe da sociologia”, mas que carrega em seu currículo graves acusações de plágio, sobretudo na formulação da sua “Teoria da Dependência”, cujas ideias centrais teriam sido despudoradamente copiadas de autores como Ruy Mauro Marini. Sem falar em sua “Mein Kampf” tropical, a biografia A soma e o resto, mesmo título de um livro do marxista francês Henri Lefebvre.
Não creio que cada país tenha os “imortais” que mereça. A Academia Brasileira de Letras, há muito, não vive no Brasil real, não dialoga com sua cultura, com seu povo, com os impasses de seu tempo. Prefere convidar “umbigos delirantes” para o chá dos fardões. “O que me impressiona é que esse homem, que escreve mal e fala pessimamente, as frases se contradizem entre si, é considerado o maior sociólogo brasileiro”, escreve Millôr Fernandes no genial O primado da ignorância, em que demole a escrita do ex-presidente ao analisar seu principal livro, Dependência e desenvolvimento na América Latina.
A história tratou de condenar o FHC presidente ao ostracismo - por seus malfeitos ao País. O FHC sociólogo, o próprio FHC presidente tratara de enterrar. Fico em dúvida sobre qual FHC a ABL tenta ressuscitar agora.
* Artigo publicado na página de opinião no jornal O POVO, edição de 01 de julho de 2013