segunda-feira, 23 de abril de 2012

Raimundo do Queijo: encontros que reinventam domingos




Nas manhãs de domingo, pode-se saber do Centro pelo aboio alucinado dos camelôs e suas infinitas confecções: fitas e cores de um cruel imaginário. Ou pelos passos maltrapilhos e noiados de seus moradores de rua. Ou ainda pelo silêncio e pela solidão de suas esquinas, exceção que comprova a regra da agitação e da vitalidade do bairro durante a semana.
Mas também se pode saber do Centro pelos sorrisos. Pela conversa espirituosa e pelas piadas boêmias. Pela cerveja gelada e pelos tijolinhos de queijo coalho derretendo na boca. Pela boa música e pela dança dos coroas. Pode-se saber desse um berço da cidade através de encontros e abraços. A delicadeza está nos olhos de quem vê.
Esse último Centro – entre tantos outros possíveis no umbigo mais carismático (e problemático) de Fortaleza – se espreguiça aos domingos na Travessa Crato. Estabelecimento 44, para ser mais preciso. Mas nem carece de tanto detalhe. Ao entrar na General Bizerril, vindo da inércia da Castro e Silva, em poucos passos já é possível saber do Raimundo do Queijo. O “Seu” Raimundo do Queijo, endereço de boemia vespertina que desde 1978 descortina gentilmente uma outra Cidade no Centro.
Faça chuva ou sol. Tudo sob o comando de Raimundo Oliveira Araújo, comerciante, 77 anos, natural de Chaval, que fincou bandeira por aqui em meados dos anos 70. No início, eram apenas os queijos, pimentas, doces e quitutes do sertão. Em seguida, veio a clientela fidelizada - “tudo gente de família, um pessoal tranquilo” -, que fez vingar o comércio e pediu o acompanhamento da cerveja. Há 12 anos, veio a música. Nada de paredões, forró-lixo e suas típicas grosserias sexistas. A música, ali, se escuta com o coração e com os encantos da memória, não com os rins.
Valdecir, cego que comanda um trio pé de serra muito popular no local, se reveza com regionais de choro e samba e grupos que tocam o repertório da jovem guarda. Consta que, certa feita, gritaram à chegada do sanfoneiro: “Todo cego é corno!” Ao que o próprio, gênio da raça, respondeu: “E todo corno é cego!” E fez-se a risadaria geral no ambiente.
Falcão anda por lá, o que assanha os mais espirituosos a se atreverem em “duelos” de piada. Do alto de seus 105 anos, Valdemar Caracas, que fundou o Ferroviário Atlético Clube e, pelo andar da carruagem coral, é capaz de fechá-lo, tem cadeira cativa. A prefeita já dividiu o balcão com seus eleitores e o ex-governador Lúcio Alcântara também dá o ar da graça de quando em quando. Outras “celebridades” da casa circulam entre as mesas, pedindo colaboração pra “interar” o cachê dos músicos ou sendo ironicamente ovacionadas ao microfone.
Há alvinegros e tricolores, que, não raro, dividem mesas e, por ali, são apenas torcedores pacatos que contam vantagem para o rival. Há gente de esquerda e gente “reaça”, que tira folga da política (ou nem tanto) para apenas exercer a doce boemia. Há idosos e crianças. Há os que chegam da boemia do dia anterior e há os que chegam para começar o dia.
Há outros dias em que a casa (e a travessa) também funciona(m). Mas no Raimundo do Queijo, há, sobretudo, o domingo, essa promessa de Cidade em nosso coração.


Texto publicado na edição do jornal O POVO do dia 13 de abril, caderno A cidade das delicadezas, que homenageou a cidade de Fortaleza pelo seu aniversário de 286 anos. Foto de Ethi Arcanjo. 




Verdade Tropical: Caetano responde a Schwarz que responde a Caetano




Roberto Schwarz recolocou em perspectiva o livro Verdade Tropical (1997), de Caetano Veloso, em um dos ensaios que compõem o volume Martinha versus Lucrécia, recentemente lançado pela Companhia das Letras. No texto chamado "‘Verdade tropical’: um percurso de nosso tempo", escrito em 2011, o crítico literário analisa o livro, evidenciando suas contradições e chamando atenção para o que considera um certo entusiasmo de Caetano em relação não só ao golpe militar de 64, mas também à presença da direita no poder e à consolidação da hegemonia do capitalismo em âmbito mundial. O baiano, claro, não gostou nada da revisão de sua obra e deu uma entrevista ao Globo respondendo a Schwarz, que por sua vez, manifestou sua tréplica em nova entrevista à Folha de São Paulo. Abaixo, um trecho dessa última entrevista do crítico ao jornal paulista.

Folha – Como leu a entrevista de Caetano?
Roberto Schwarz – Ele mudou de assunto. Em vez de comentar o meu artigo, que é o que estava em pauta, Caetano falou da Coreia do Norte, da União Soviética, de Cuba, da USP, da esquerda obtusa, de Mangabeira Unger etc. Parece piada. Ao contrário do que a entrevista faz supor, não escrevi para pegar em Caetano o rótulo de direitista, e muito menos de esquerdista, mas de herói representativo e problemático. Procurei acompanhar de perto a sua prosa, concatenar e compactar as suas posições, de modo a tornar visíveis as questões de fundo que estão lá e não são óbvias. Tomei o cuidado de sempre apresentar as próprias formulações de Caetano, para que o leitor possa refletir a respeito e tirar conclusões com independência. É o que [Bertolt] Brecht chamava de apresentar os materiais.
Como crítico literário, sou sensível à força estética do livro, naturalmente para analisá-la. No caso, fazem parte inseparável dela as atitudes mais controvertidas do autor, tais como a autoindulgência desmedida, o confusionismo calculado e os momentos de complacência com a ditadura (os militares tomaram o poder “executando um gesto exigido pela necessidade de perpetuar essas desigualdades que têm se mostrado o único modo de a economia brasileira funcionar”, “Verdade Tropical”, pág. 15), o que não exclui a simpatia pela guerrilha. É ler para crer. À maneira dos romances narrados em espírito de provocação -por exemplo, as “Memórias Póstumas de Brás Cubas”- “Verdade Tropical” deve muito de seu interesse literário a certa desfaçatez camaleônica em que Caetano, o seu narrador, é mestre. Penso não forçar a mão dizendo que a representatividade histórica do livro passa por aí. E o seu caráter problemático também, já que o quase romance não deixa de ser um depoimento.

Folha - O sr. vê fundamento na cobrança de Caetano de que a esquerda comente temas como a Coreia do Norte?
Schwarz - É claro que a reflexão informada e crítica sobre as experiências do “socialismo real” é indispensável à esquerda, e aliás ela existe. [Theodor] Adorno, que Caetano absurdamente menciona como inimigo da liberdade, é uma grande figura dessa reflexão no campo estético. Dito isso, penso que, no caso, o interesse pela Coreia do Norte é sobretudo cortina de fumaça para não falar de meu livro.

Folha - Por que o ensaio vem à tona 15 anos depois do livro de Caetano?
Schwarz - Logo que o livro saiu, vi que era notável à sua maneira e merecia discussão. Como não tenho pressa, levei 15 anos para sentar e escrever. Ainda assim, espero não ter perdido o bonde.

Folha - Em que medida o texto aprofunda os argumentos sobre a Tropicália expostos em seu ensaio “Cultura e Política: 1964-1969″?
Schwarz - “Cultura e Política” foi escrito em 1969, na hora pior da ditadura e logo após a eclosão da Tropicália. “Verdade Tropical”, de Caetano, que reapresenta aqueles tempos, foi publicado 30 anos depois, em pleno triunfo neoliberal. Já “Um Percurso de Nosso Tempo”, redigido em 2011, tem a ver com a crise atual do capitalismo. São três momentos distintos. A Tropicália do fim dos anos 60 debochava -valentemente- do Brasil pós-golpe, quando a ditadura buscava conjugar a modernização capitalista ao universo retrógrado de “tradição, família e propriedade”. A fórmula artística dos tropicalistas, muito bem achada, que juntava formas supermodernas e internacionais a matérias ligadas ao atraso do país patriarcal, era uma paródia desse impasse. Ela alegorizava a incapacidade do Brasil de se modernizar de maneira socialmente coerente. Era uma visão crítica, bastante desesperada, de muito interesse artístico, à qual se misturava certa euforia com a nova indústria cultural, que estava nascendo. Ao retomar o assunto em 1997, nos anos FHC, Caetano atenuou o anterior aspecto negativo ou crítico e deu mais realce ao encanto dos absurdos sociais brasileiros, tão “nossos”. Um tropicalismo quase ufanista e algo edificante. No ensaio procurei acompanhar e discutir estes deslocamentos.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Poemetes araújos - XIX



Apesar de tudo,
apesar de tanto, de tanto tempo. Apesar desse outrora em mim, dos erros velosos 
e das confusões
buarques,
meus e de 
tantos eles -
pequenas
e indecisivas 
postas.


Por querer
firmar essa luz,
descobrir poesia
percorrendo  
intensidades dela,
em carne 
e beijo,
em (mais) 
amiga e
parceira, maior
e mais
bela que este.


É de luz Buenos Aires,
e será margem 
de nosso instante.
E apesar desse 
sempre, 
nosso tango.


Apesar e por
isso.


Ao amor, ao meu
amor, a ela: ergo meu "GilGal em Bethania".