quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Das Redações

"Encaretadas por manuais de doutrina e comportamento, adestradas pela conduta neoliberal dos anos 1990, quando passaram a responder diretamente pelas demandas do Departamento Comercial, as redações brasileiras se desprenderam da ação política, dos movimentos sociais, do protagonismo histórico a favor dos direitos humanos e da luta contra a desigualdade. Passaram, sim, a reproduzir um universo medíocre de classe média, supostamente a favor de uma modernidade pós-muro de Berlim, onde bradar contra privatizações e a adoração ao deus mercado passou a ser encarado como esquerdismo imperdoável e anacrônico".

Leandro Fortes, jornalista, em seu blog.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

A biblioteca do Benfica


Vem aí a Biblioteca Comunitária do Benfica. Formada por livros, revistas, álbuns de família, filmes, cartas, discos, mapas e outros documentos reunidos por um projeto de extensão do curso de Biblioteconomia da Universidade Federal do Ceará, ela vai contar a história e discutir o presente de um dos mais tradicionais bairros de Fortaleza. No acervo, além dos documentos cinevideográficos, imagéticos e bibliográficos, haverá também depoimentos e entrevistas de moradores e frequentadores do bairro, latitude privilegiada da boemia e da agitação intelectual na Cidade.
"Ela pretende ser um espaço democrático de convivência, onde os atores da comunidade possam interagir, criar e resolver demandas, manifestar suas habilidades artísticas, reivindicar, encontrar-se, além de resolver suas demandas informacionais", explica texto publicado na revista Literação, publicação do curso de Biblioteconomia. Coordenado pelo professor Tadeu Feitosa, o projeto foi apresentado em 2009 no Seminário Nacional do Programa de Extensão e Cultura (Proext), do Ministério da Cultura; e recebeu apoio de instituições como a Igreja, os sindicatos, o comércio e a classe artística. Desde então, as ruas do bairro viraram palco para incursões semanais dos bolsistas, que entrevistam antigos moradores e realizam a pesquisa etnográfica e antropológica.
Inicialmente, a Biblioteca Comunitária vai funcionar na Biblioteca Laboratório do curso de Biblioteconomia, na Área II do Centro de Humanidades da UFC no Campus do Benfica. Mais informações sobre o projeto podem ser obtidas através do email bibliofica@ig.com.br

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Geraldo Carneiro


à semelhança
de outras noites
recordar palavras estranhas
de um velho refrão popular
à semelhança
de outros ritos
reconstruir seu ruído
escorpião ao redor da cama
à semelhança
de outros cantos
imaginar estrelas
alimentar os signos da noite
à semelhança
de outras luas
iluminar seu sono
encarcerado atrás de janelas
à semelhança de outros
sonhos
inventar a felicidade
que construímos continuamente
mesmo sem saber
que cada uma de suas muralhas
supõe a seguinte e a anterior

Poema "Muralha Chinesa", de autoria de Geraldo Carneiro

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Os novos (falsos) consensos


Passadas as eleições e na iminência do término do segundo mandato do Governo Lula, o solipsismo da chamada grande imprensa no Brasil vai agora, em suas retrospectivas de fim de ano, erguer a bandeira de que os últimos oito anos não representaram um avanço em relação ao governo de FHC. Mais precisamente, vai creditar o sucesso de popularidade de Lula ao êxito supostamente inexorável das plataformas macro-econômicas implantadas anteriormente por FHC e vai escrever seus erros (do governo petista) com as tintas da suposta incompetência da esquerda, dos riscos da ideologização das ações de Governo, da formação educacional incompleta do presidente, etc, etc.
O Globo, no último fim de semana, abriu os trabalhos. Depois de distorcer números, inverter perspectivas e manipular estatísticas ao sabor de suas conveniências editoriais, o jornal saiu-se com um caderno "especial" que faria um leitor estrangeiro que por ventura não conhecesse o Brasil imaginar que o País vem descendo a ladeira nos últimos tempos e que o povo brasileiro padece de uma hipnose profunda ao ratificar com quase 90% de aprovação tamanha "incompetência" e tamanho "retrocesso".
Não há, claro, nenhuma surpresa nesse esforço dos grandes jornais e revistas identificados com (e financiados por) os setores mais à direita do espectro político brasileiro. Os últimos oito anos balizaram, dentro das grandes redações, o que de pior pode haver na prática jornalística - cartilha que só o distanciamento histórico poderá explicar com contornos mais razoáveis. O mesmo acúmulo histórico, no entanto, mostra que se o patrimonialismo é uma das principais marcas do Estado brasileiro, isso se deve também ao fato de um cartel formado por meia dúzia de famílias se apropriarem de concessões públicas e de conceitos republicanos como a liberdade de expressão.
Voltando à retrospectiva, impressiona a quantidade de mitos que vão embalando esses falsos consensos que se quer vender à opinião pública. Na segunda-feira após a publicação do tal caderno do Globo, o Blog do Planalto rebateu a análise torta e trouxe alguns dados importantes para quem quer esquadrinhar os últimos oito anos com alguma honestidade intelectual - o que não foi o caso do jornal da família Marinho. Os dados estão bem sistematizados e se dividem por áreas do Governo.
Só para citar a suposta "herança bendita" recebida por Lula de FHC segundo o jornal, o texto do Planalto lembra que o risco país em dezembro de 2001 era de 963 pontos básicos e que chegou a 1460 em dezembro de 2002. No mesmo período, a taxa de câmbio real/dólar; norte-americano subiu de 2,32 para 3,53, numa depreciação nominal de 52%. Já a entrada líquida de capital externo caiu de US$ 27 bilhões em 2001 para US$ 8 bilhões em 2002, marola que ajudou a levar as reservas internacionais brasileiras ao patamar de apenas US$ 37,8 bilhões, dos quais mais de US$ 20 bi correspondiam um empréstimo junto ao FMI. A inflação, que vinha se equilibrando em 9%, bateu a casa dos dois dígitos e chegou a 12,5% ao ano em 2002. A dívida líquida, por fim, chegou a mais de 60% do PIB no final de 2002.
Como se vê, o "presente de amigo" deixado pelo venerando FHC praticamente inviabilizava o futuro da economia brasileira - panorama que o Governo Lula, apesar de inúmeros avanços ainda necessários, soube reverter -, mas os repórteres do Globo não souberam (e também não quiseram) desembrulhar a tal "herança".

domingo, 19 de dezembro de 2010

Blake Edwards (1922-2010)


Decididamente, 2010 deixou o mundo mais triste. Depois do diretor italiano Mário Monicelli, na última quinta-feira o cinema perdeu o diretor Blake Edwards, que formou com Peter Sellers uma dupla imbatível nas hilárias aventuras do Inspetor Clouseau na série Pantera Cor de Rosa. O vídeo abaixo faz uma apanhado de algumas das cenas mais clássicas da série, protagonizada por Sellers e dirigida por Edwards.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

2010: dez discos que fizeram a diferença

Em 2010, a lista não é dos dez melhores discos (ou outra hierarquia do tipo) - afinal, não há critérios objetivos que possam justificar tal exercício além das afinidades e da militância do blogueiro. Por isso, optei em fazer uma lista de fim de ano com dez discos que fizeram a diferença em 2010, o que permite uma avaliação, no mínimo, mais palpável, embora ainda órfã de escalas e medidas mais objetivas. São eles:

1. Terreiro Grande e Cristina Buarque cantam Candeia - Terreiro Grande e Cristina Buarque
Na visão (ou na audição) deste blogueiro, o disco mais relevante do ano. Tanto por revisitar em altíssimo nível o repertório do mestre portelense quanto por iluminar a presença do grupo paulista no atual cenário do samba brasileiro. E também, e mais que tudo, por reafirmar o nome de Cristina Buarque - pelo compromisso inadiável com a delicadeza e com os sentidos mais profundos da nossa música - como um dos mais importantes artistas brasileiros vivos. O CD saiu em abril pela Tratore, que também lançou Tuco e Batalhão de Sambistas, outro CD de tutano deste ano que se vai.

2. Papagaio do moleque - Rabo de lagartixa
O disco foi lançado no fim de 2009, mas só ganhou as lojas e as discussões pela internet em 2010. Qualquer CD que reunisse Marcello Gonçalves, Daniela Spielmann e Beto Cazes já seria um grande disco. No caso específico desse trabalho, ao talento dos três somam-se as presenças de Alessandro Valente e Alexandre Brasil, que completam a formação do Rabo de Lagartixa; e o repertório inesgotável de Villa-Lobos, o que garante um disco-monumento, desses de se escutar a vida inteira sem deixar de se surpreender com a arquitetura exuberante de Villa e com a alegria e a virtuose desses intérpretes. O mais importante lançamento envolvendo a obra de Villa-Lobos neste século.

3. Esperança - Hamilton de Holanda
Hamilton é um homem de seu tempo. Reinventa seu instrumento, ampliando suas possibilidades de expressão; conecta ouvintes e músicos de todo o mundo em novas plataformas tecnológicas, onde divulga seu trabalho e funda amizades; revira o baú das nossas melhores memórias musicais; e percorre os cinco continentes desbravando novas audiências e novos encontros (que vão dos venezuelanos do Ensamble Gurrufio ao ex-Led Zeppelin John Paul Jones). Não utiliza a tradição como biombo para certa auto-indulgência criativa nem vende a alma às tentações fugazes da contemporaneidade, da música de mercado e de outros faustos do tipo. Sua carreira é uma celebração permanente e otimista de nossos dias, em que utiliza como armas repertórios de todas as épocas mas também mira o futuro propondo novas composições.

4. Dizzy Gillespie no Brasil com Trio Mocotó - Dizzy Gillespie
Dizzy dispensa maiores apresentações, assim como o Trio Mocotó. Esse encontro do gênio do jazz com os gênios do ritmo, no entanto, requer algum esclarecimento. Trata-se de um disco gravado em 1974, em São Paulo, do qual até 2008 não se tinha notícia. Na época da gravação, Dizzy deixou o Brasil levando a master do registro e nunca deu satisfações sobre o assunto. A matriz foi encontrada por um produtor suíço em 2008 e resultou neste lançamento da Biscoito Fino em parceria com Groovin'High. "Entre os brasileiros reencontrei a sonoridade ideal, porque, pra mim, música boa é aquela que, de um modo ou de outro, tem cor negra", afirmava Dizzy. Um discos mais importantes de 2010, portanto, foi gravado há 36 anos, mas não perdeu seu gingado absurdo nem sua sonoridade exuberante.

5. Hoje - Carmen Miranda 
Remexer no baú dos mortos, em geral, rende (anti-)homenagens de gosto extremamente duvidoso e que não acrescentam nada à obra do artista falecido. Não é o caso desse projeto assinado por Henrique Cazes, que acrescentou uma base de cordas (violão de 7, cavaco e violão tenor), detalhes de sopro e novos elementos de percussão às gravações originais de Carmen Miranda da década de 30. Resultado: é possível ouvir novamente a voz de Carmen rodeada por graves e agudos que se ouviam em suas apresentações ao vivo, mas que não tinham sido registrados em seus discos. Os detalhes são explicados por Cazes numa entrevista que vem como faixa bônus.

6. Jasmine - Keith Jarrett e Charlie Haden
Para todo fã de Jarrett, qualquer novo disco do pianista faz sempre a diferença. Este, no entanto, tem uma razão especial. O disco, gravado na casa de Jarrett, marca o reencontro do pianista com Haden, depois de 35 anos. Haden foi o baixista do primeiro trio de Jarrett, ainda nos anos 60; e de seu Quarteto Americano com o qual atravessou boa parte dos anos 70. Uma experiência intimista entre dois grandes nomes do jazz mundial, que deixam de lado as provocações entre virtuoses para derramar lirismo num dos álbuns mais bonitos do ano.


7. Certa manhã acordei de sonhos intranquilos - Otto
Outro disco que foi lançado oficialmente no fim de 2009, mas que aconteceu em definitivo apenas em 2010. Trata-se do melhor do músico pernambucano, um trabalho que recoloca Otto entre os artistas mais criativos do país. Há quem possa fazer ressalvas à verborragia do músico em suas entrevistas ou a suas letras viajandonas, mas é inegável que Otto sabe, como poucos, criar e explorar texturas e combinações rítmicas passeando e dissolvendo fronteiras entre inúmeros gêneros. A banda afiada, com Catatau, Dengue, Pupilo e outros craques, é ingrediente fundamental nessa receita.  Participação especial de Céu e regravação inspirada de "Naquela Mesa"(Sérgio Bittencourt) são as cerejas do bolo.

8. Pra gente fazer mais um samba - Wilson das Neves
Sobre o disco, o texto de Chico Buarque no encarte já diz tudo: "São vinte e cinco anos de amizade, depois de outros tantos de amiração à distância. Eu conhecia Wilson das Neves dos discos, reconhecia de cara sua batida, vez por outra o peruava através do vidro dos estúdios de gravação. Hoje não subo ao palco sem ele. Camarim dos músicos, sem o Das Neves, não é camarim. Ele é o pulso da banda, termômetro, técnico do time, rei da anedota e pajé. Este disco nos traz de volta o grande melodista que é Wilson das Neves. Escutei-o seguidamente com deleite, com um sorriso, com um ciúme danado dos seus parceiros. Aí está ele com sua graça, com a ginga que é só dele, com essa voz que deve ser a voz rouca das ruas, eis aí Wilson das Neves cantando versos prenhes de sabedoria popular".

9. Orquestra Republicana - Ao vivo na Lapa
A Orquestra Republicana - formada por músicos de diversos grupos cariocas como Tira Poeira, Garrafieira e Anjos da Lua - é um dos grupos mais tradicionais no mapa da boemia musical do bairro. Desde 2005, Gallotti, Pedro Holanda, Mariana Bernardes e cia. pilotam a gafieira moderníssima das noites de sábado no Democráticos, um charmoso e centenário sobrado localizado na Rua do Riachuelo que ferve ao som de muito partido-alto, samba sincopado, choros e valsas. Em 2008, o baile foi registrado e agora, finalmente, virou disco através do selo Bolacha Discos. No repertório, Lapas de diversas épocas se encontram. Mas o destaque é mesmo a novíssima Lapa cantada em composições de Alfredo Del-Penho ("Quebranto", "Pra Essa Gente Boa", "Noite à Lapa"), Pedro Hollanda ("Acontece", "Não Vem que Não Tem"), Eduardo Gallotti ("Partido do Homem Solteiro") e Samuel de Oliveira ("Rosa Branca Maré").  Um disco pra saudar a alegria de ser brasileiro, radicalmente brasileiro.

10. Vidas Volantes - Breculê
Em 2010, mais importante para a música cearense do que remexer, pela enésima efeméride, pela enésima vez, no baú da Massafeira - mais relevante como evento, como marco, do que como movimento (que não foi) -, foi o lançamento do CD Vidas Volantes, da rapazeada inspirada do Breculê. Boas composições embaladas por uma boa produção, vitalizadas num colorido balaio de ritmos, colocam a música cearense novamente olhando pra frente, para novos textos, para novos sentidos. Chega de saudade!

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

De Drummond para Cartola



No Dia nacional do samba, a celebração deste Talabarte vem na forma de crônica, uma crônica de Carlos Drummond de Andrade em homenagem a Cartola publicada no Jornal do Brasil na edição do dia 27 de novembro de 1980, três dias antes da morte do compositor mangueirense. 

Você vai pela rua, distraído ou preocupado, não importa. Vai a determinado lugar para fazer qualquer coisa que está escrita em sua agenda. Nem é preciso que tenha agenda. Você tem um destino qualquer, e a rua é só a passagem entre sua casa e a pessoa que vai procurar. De repente estaca. Estaca e fica ouvindo.

Eu fiz o ninho.
Te ensinei o bom caminho.
Mas quando a mulher não tem brio,
é malhar em ferro frio.

Aí você fica parado, escutando até o fim o som que vem da loja de discos, onde alguém se lembrou de reviver o velho samba de Cartola; "Na Floresta" (música de Sílvio Caldas).

Esse Cartola! Desta vez, está desiludido e zangado, mas em geral a atitude dele é de franco romantismo, e tudo se resume num título: Sei Sentir. Cartola sabe sentir com a suavidade dos que amam pela vocação de amar, e se renovam amando. Assim, quando ele nos anuncia: “Tenho um novo amor”, é como se desse a senha pela renovação geral da vida, a germinação de outras flores no eterno jardim. O sol nascerá, com a garantia de Cartola. E com o sol, a incessante primavera.

A delicadeza visceral de Angenor de Oliveira (e não Agenor, como dizem os descuidados) é patente quer na composição, quer na execução. Como bem me observou Jota Efegê, seu padrinho de casamento, trata-se de um distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do malandro não coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro, tipógrafo e lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom musical, a centelha, não o afetou, não fez dele um homem ácido e revoltado. A fama chegou até sua porta sem ser procurada. O discreto Cartola recebeu-a com cortesia. Os dois convivem civilizadamente. Ele tem a elegância moral de Pixinguinha, outro a quem a natureza privilegiou com a sensibilidade criativa, e que também soube ser mestre de delicadeza.

Em Tempos Idos, o divino Cartola, como o qualificou Lúcio Rangel, faz o histórico poético da evolução do samba, que se processou, aliás, com a sua participação eficiente:

Com a mesma roupagem 
que saiu daqui
exibiu-se para a Duquesa de Kent
no Itamaraty. 

Pode-se dizer que esta foi também a caminhada de Cartola. Nascido no Catete, sua grande experiência humana se desenvolveu no Morro da Mangueira, mas hoje ele é aceito como valor cultural brasileiro, representativo do que há de melhor e mais autêntico na música popular. Ao gravar o seu samba Quem Me Vê Sorrir (com Carlos Cachaça), o maestro Leopold Stockowski não lhe fez nenhum favor: reconheceu, apenas, o que há de inventividade musical nas camadas mais humildes de nossa população. Coisa que contagiou a ilustre Duquesa.

* * *

Mas então eu fiquei parado, ouvindo a filosofia céptica do Mestre Cartola, na voz de Sílvio Caldas. Já não me lembrava o compromisso que tinha de cumprir, que compromisso? Na floresta, o homem fizera um ninho de amor, e a mulher não soubera corresponder à sua dedicação. Inutilmente ele a amara e orientara, mulher sem brio não tem jeito não. Cartola devia estar muito ferido para dizer coisas tão amargas. Hoje não está. Forma um par feliz com Zica, e às vezes a televisão vai até a casa deles, mostra o casal tranqüilo, Cartola discorrendo com modéstia e sabedoria sobre coisas da vida. “O mundo é um moinho...” O moleiro não é ele, Angenor, nem eu, nem qualquer um de nós, igualmente moídos no eterno girar da roda, trigo ou milho que se deixa pulverizar. Alguns, como Cartola, são trigo de qualidade especial. Servem de alimento constante. A gente fica sentindo e pensamenteando sempre o gosto dessa comida. O nobre, o simples, não direi o divino, mas o humano Cartola, que se apaixonou pelo samba e fez do samba o mensageiro de sua alma delicada. O som calou-se, e “fui à vida”, como ele gosta de dizer, isto é, à obrigação daquele dia. Mas levava uma companhia, uma amizade de espírito, o jeito de Cartola botar em lirismo a sua vida, os seus amores, o seu sentimento do mundo, esse moinho, e da poesia, essa iluminação.